Crítica | I Am Not Okay With This: 1ª Temporada - Um Divertido Coming-of-Age Adolescente
As comédias dramáticas adolescentes ganharam popularidade imensurável entre os anos 1980 e 1990, viralizando com um público mais jovem que se deliciava com retratos interessante (e comumente hilários) da vida juvenil em seus círculos sociais e, mais do que isso, no colégio. É claro que, levando em consideração o teor ficcional das obras, grande parte das narrativas pendia para um lado mais irreverente e impalpável, tudo para que mantivesse sua carga emocional e envolvente explorada ao máximo.
Com a virada do século, outras produções começaram a ser revitalizadas e trazidas para um espaço mais contemporâneo e menos maniqueísta, por assim dizer: a construção estereotípica de certos tipos sociais deu lugar a filmes como Meninas Malvadas, A Mentira e Quase 18, representando uma evolução considerável no jeito de contar esses enredos. Em 2020, chegou a vez da Netflix investir seus esforços na adaptação dos clássicos quadrinhos I Am Not Okay With This, assinados por Charles Forsman (o mesmo criador da bizarra e aclamada graphic novel que deu origem a The End of the F***ing World). Aliás, é perceptível o apreço que a gigante do streaming nutre por tramas que vão além do que imaginamos e que misturam, em um mesmo cenário, os elementos da estética gore, as quebras de expectativas das ácidas rom-coms e uma pitada arrepiante de suspense sobrenatural.
Querido Diário é a frase que sumariza e abre cada um dos breves sete capítulos da primeira temporada – cujo gancho já nos prepara para um próximo ciclo com muito mais amadurecimento e relações conturbadas entre seus personagens. A narradora, encarnada por Sophia Lillis em mais uma fantástica atuação que revela um lado mais recuado e introvertido que o visto em It: A Coisa e afastando-se do comportamento maternal em Maria e João, posta-se na figura da rebelde Sydney Novak, uma jovem de dezessete anos que vive com a mãe e o irmão numa pequena e claustrofóbica casa depois que o pai se suicidou sob misteriosas circunstâncias. O trágico escopo ganha uma nova camada quando Sydney começa a desenvolver poderes estranhos e inexplicáveis, que vem à tona em momentos de grande frustração, raiva ou rancor.
Jonathan Entwistle e Christy Hall, que entram como showrunners da produção, carregam consigo uma vantagem incrível, visto que estão frente a frente com o material original e já trazem elementos de iterações anteriores para repaginá-las a uma nova mídia, adornando uma trama modernizada com resquícios clássicos do suis-generis mencionado no primeiro parágrafo. Desde a presença de uma perspectiva onisciente até o desmembramento em linhas secundárias que, apesar de superficiais, se entrelaçam em uma costura compreensível e que talha um grandioso potencial para o futuro.
Lillis comanda a série com a mesma fluidez já entregue ao público, desenvolvendo sua personalidade traumatizada como respaldo de relações com outros membros de sua contida esfera: apesar de solitária, ela tem um sentimento de afeição gigantesco com Dina (Sofia Bryant), sua melhor amiga e confidente – sentindo-se assustada por perceber que os laços de amizade podem não ser o suficiente. Além disso, a atriz reúne-se com seu colega Wyatt Oleff, que encarna o desinibido Stanley Barber (um nerd independente que descobre da maneira mais chocante possível que sua paixão secreta é dotada de habilidades incríveis. Aliás, é até engraçado observar como Lillis e Oleff trocam de lugar, abandonando as características de seus personagens anteriores e vestindo trajes diferentes do que já havíamos visto.
Se o roteiro já nos chama a atenção por seu cuidado redobrado, é a inebriante e saudosista estética que nos faz mergulhar de cabeça nesse mundo localizado nos entremeios do impossível e do aterrorizante. A equipe criativa não pensa duas vezes antes de imprimir uma versão revitalizada de inúmeros longas-metragens icônicos e atemporais: a paleta de cores oscila das vestimentas impetuosas de Juno até as escolhas pastéis de Wes Anderson para O Grande Hotel Budapeste; O Clube dos Cinco volta com força e relembra seus tempos de glória ao ser inspiração para um episódio inteiro; e, gradativamente, a leve atmosfera transforma-se num sombrio mimetismo de Carrie – A Estranha, culminando em um season finale inesperado.
É necessário lembrar que estamos lidando com uma produção jovem-adulta livre de quaisquer tabus e, por essa razão, algumas fórmulas são engatadas como força-motriz para o desenrolar da trama. Mesmo assim, certas adesões erguem-se como obstáculos para o ritmo da narrativa: a repetição das “explosões” psicóticas de Sydney, a adição de coadjuvantes descartáveis e o didatismo redundante de certas explicações. O resultado final, todavia, é positivo e coerente o bastante para querermos mais (principalmente se encararmos essa iteração inicial como uma apresentação breve do que nos aguarda).
I Am Not Okay With This é recheado de sequências e momentos de tirar o fôlego, mesmo que brinque na zona de conforto e deixe ousadias técnicas e artísticas para um futuro próximo. Movido pela química e pelo charme de seu elenco protagonista, a nova série da Netflix transborda nostalgia e dinamismo em quase todas as suas cenas.
I Am Not Okay With This – 1ª Temporada (Idem, EUA – 2020)
Criado por: Jonathan Entwistle, Christy Hall
Direção: Jonathan Entwistle
Roteiro: Jonathan Entwistle, Christy Hall, Liz Elverenli, Tripper Clancy, Jenna Westover, baseado nos quadrinhos de Charles Forsman
Elenco: Sophia Lillis, Wyatt Oleff, Sofia Bryant, Kathleen Rose Perkins, Richard Ellis, David Theune, Zachary S. Williams, Aidan Wojtak-Hissong
Emissora: Netflix
Episódios: 07
Gênero: Fantasia, Comédia, Terror
Duração: 30 min. aprox.
Crítica | Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica - Jogando na Defensiva
Surgida ainda nos anos 1980, a Pixar ascendeu ao patamar de um dos maiores estúdios cinematográficos da história – principalmente depois que se tornou subsidiária da gigantesca Walt Disney Studios. Desde 1995, quando lançou o icônico e atemporal Toy Story, a companhia vem mostrando que não veio para brincar e, em sua breve vida, já nos entregou algumas das narrativas mais emocionantes da indústria do entretenimento, sempre renovando a si mesma com aventuras divertidas e que não se direcionam apenas a um público infantil, e sim a qualquer um que aceite o convite de embarcar em filosóficas jornadas de amadurecimentos e de autorreflexão.
Entretanto, é inegável dizer que certas produções não se encaixam no alto calibre endossado com obras-primas como Ratatouille, Up – Altas Aventuras ou o apaixonante Divertidamente. De fato, um pequeno número de contos mirabolantes que sua extensa equipe criativa nos conta falha em mergulhar da cabeça, preferindo optar por jogadas confortáveis e superficiais em detrimento de investidas ousadas e envolventes (como é o caso da trilogia Carros e da esquecível, porém fofa, animação O Bom Dinossauro). Não é surpresa que, depois de regressar à sua Era de Ouro com as sequências Os Incríveis 2 e Procurando Dory, ficássemos com um pé atrás com o anúncio de Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica, cuja familiar estética poderia sair pela culatra.
O resultado se assemelha a uma faca de dois gumes, funcionando em grande parte como um conto de fadas repleto de quebras de expectativas que será mais aproveitado pelas crianças do que pelo público em geral – com exceção de algumas sequências de tirar o fôlego e que valem pelo arrastado ato introdutório. A trama principal é carregada pelos irmãos Ian e Barley Lightfoot, interpretados pela dupla Tom Holland e Chris Pratt, respectivamente. Ian é um jovem elfo que acabou de fazer dezesseis anos e que vive na sombra de uma família dividida entre dois momentos: o passado, marcado pela alegria de ter a companhia do falecido pai, e o presente, pincelado com atribulações morais exploradas de modo simplório e quase frustrante.
As coisas mudam drasticamente – ou ao menos é o que o diretor Dan Scanlon promete desde o breve prólogo – quando a matriarca Laurel (Julia Louis-Dreyfus) revela que seu marido deixou um presente único para os dois, que deveria lhes ser entregue depois que ambos fossem maduros o suficiente: um cajado mágico e uma Gema da Fênix capaz de “ressuscitá-lo” por um dia inteiro. Todavia, como já era de se esperar, a missão de trazê-lo de volta sofre um complicado empecilho quando Ian não consegue manejar a magia da forma correta, invocando apenas metade do corpo do pai e levando os irmãos a sair numa instigante busca atrás de outra Gema – antes que o tempo acabe e o rapaz nunca consiga conhecê-lo.
Logo de cara, percebe-se que a Pixar consegue manter o definido estilo artístico que nos apresentou nas iterações predecessoras – algo difícil a se manter, considerando o prolífico ano que teve com Toy Story 4, que inclusive garantiu para a empresa mais uma estatueta do Oscar de Melhor Animação. O cuidado visual volta a nos chamar a atenção pelo mundo arquitetado (unindo em um mesmo pano de fundo criaturas mitológicas de diversas culturas) e por sua cômica verossimilhança que transforma uma outrora fervilhante ficção fantástica em uma versão interessante de Los Angeles – ora, nem mesmo os próprios personagens parecem acreditar em magia, rendidos às maravilhas e às facilidade advindas com a ciência.
É irônico perceber que Scanlon investe seus esforços em nuances tão mínimas, que chegam a passar despercebidas pelo majestoso (e por vezes excêntrico demais) primeiro plano que apresenta à audiência. Momentos catárticos, como a real importância da memória e dos entes que já partiram (tema visto em Viva – A Vida É uma Festa) e os conceitos reconstruídos de amor, criação e paixão (referenciando a Up e Ratatouille), são banalizados em prol de uma saudosista jornada de herói que nutre-se de elementos vistos em franquias de ficção fantástica (literalmente, qualquer uma que se consiga imaginar). Não é surpresa que a narrativa só engate no instante em que os heróis fazem de tudo para cumprirem um desejo antes adormecido e que agora veio à tona num turbilhão de emoções e guiado pela necessidade da autoprovação.
Eventualmente, a adição de vários coadjuvantes – incluindo a presença desperdiçada de Octavia Spencer como Corey, uma Manticora aposentada que agora cuida de um restaurante – não auxilia em quase nada no peso dramático do longa, servindo mais como fugazes escapes cômicos que acabam convergindo em uma conclusão dilacerante (uma das únicas seções que nos força a lembrar de sequências um tanto quanto imemoráveis). Além disso, é redundante observar o modo como a obra caminha para um fabulesco finale, imprimindo várias morais otimistas provindos de arcos titubeantes, mas práticos em sua maior parte.
Dois Irmãos sofre ao se residir na tênue linha que separa as grandes produções da Pixar daquelas menos consistentes, pendendo mais para aquele lado devido a uma expressão artística fenomenal e repleta de trejeitos oníricos. É certo dizer que a história irá encantar os jovens espectadores, mas deve falhar em cumprir uma promessa feita há quase um ano de reviver as glórias da companhia – e nos emocionar como antes conseguia.
Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica (Onward – EUA, 2020)
Direção: Dan Scanlon
Roteiro: Dan Scanlon, Jason Headley, Keith Bunin
Elenco: Tom Holland, Chris Pratt, Julia Louis-Dreyfus, Octavia Spencer, Lena Waithe, Ali Wong, Mel Rodriguez
Duração: 112 min.
https://www.youtube.com/watch?v=IQkr2FwGygM
Crítica | Maria e João: O Conto das Bruxas - Abrace a Escuridão
É muito difícil encontrar alguma pessoa que nunca tenha ouvido falar dos contos dos Irmãos Grimm. Dentre suas obras mais famosas, podemos citar A Bela Adormecida, Rapunzel, Cinderela e muitos outros – que foram imortalizados em versões mais sombrias com o filme homônimo lançado em 2005. Entretanto, é João e Maria que funciona como uma das narrativas mais fantásticas e que até hoje é passada de boca e boca, encantando as crianças e ensinando-lhes algumas lições de moral bem-vindas e amedrontadoras. O enredo original gira em torno dos dois irmãos titulares que são abandonados na floresta e acabam cruzando caminho com uma casa de doces, lar de uma terrível bruxa que os prende para se alimentar deles.
Seguindo os passos dos inúmeros remakes e readaptações de clássicos da literatura mundial, o diretor Oz Perkins (I Am the Pretty Thing That Lives in the House) resolveu imprimir sua própria perspectiva para a trama, desconstruindo-a e reerguendo-a dentro de uma atmosfera ainda mais horrenda que resgata (ou ao menos tenta resgatar) os melhores estilos de filmes de terror. Entretanto, o resultado final não é tão espetacular quanto pensamos e não aproveita todo o potencial que cultiva nas primeiras cenas e até mesmo nos trailers, ficando no meio do caminho. Na verdade, Perkins canaliza seus esforços para o tecnicismo do longa-metragem, preferindo arquitetar um cenário deslumbrante em vez de lapidar um roteiro excessivamente metafísico e filosófico que sai de lugar nenhum e chega a nenhum lugar.
Antes de mais nada, Maria e João: O Conto das Bruxas procura se situar no tempo e no espaço, voltando séculos no passado para um pequeno vilarejo tomado pela peste e pela total desesperança. Lá, Maria (Sophia Lillis) e João (Sam Leakey) procuram ao máximo encontrar algum trabalho para levarem comida para casa, que está à beira da ruína depois da morte do pai. É a partir dessa necessidade de sobrevivência que o roteiro, assinado por Rob Hayes, se curva a um amadurecimento obrigatório e traz elementos do mundo adulto para duas crianças que foram forçadas a abandonar sua infância – ainda que João ainda tenha algumas brechas para se manter esperançoso e ingenuamente atado a um falso otimismo. Eventualmente, a matriarca da família os expulsa de casa e ambos adentram a floresta para encontrar um novo lar.
A história já é conhecida por todas: depois de se embrenharem nas densas árvores nórdicas, eles encontram uma misteriosa casa isolada do resto do mundo e com um convidativo cheiro de comida – uma fraqueza imediata de quem já se rendeu à abarcia. Logo na transição do primeiro para o segundo ato, percebe-se que Perkins decide tornar as coisas mais palpáveis e opta por não transformar a moradia de Holda (Alice Krige) em uma construção de doces, arrancando a petrificação do público a partir de uma estrutura geométrica ao extremo, como a ponta triangular de um iceberg insurgindo no meio do nada.
Tudo a partir daí derrapa em deslizes amadores que vão desde a delineação da narrativa até o processo de edição. Na verdade, a obra é autofágica; procura desenvolver um pano de fundo complexo com o apoio de diálogos existencialistas e metafóricos, mas torna-se pedante à medida que nos aproximamos do final e percebemos que sua essência foi perdida há muito tempo. A começar, o diretor parece preso a um passado remoto e destrincha-se em dois narradores – o primeiro se restringindo à voz perturbada e agourenta de Krige; o segundo, encontrando-se na voz mais cândida de Lillis. Ambas mergulhando de cabeça nas versões de fábulas de terror que ouviram quando criança e que estão prestes a ganhar mais um capítulo – mas o intimismo não muda em nada o desenrolar dos eventos e não auxilia em nada nos arcos do personagens (que também não estão fixados numa estrutura de apoio sólida).
De qualquer forma, não podemos tirar mérito de alguns pontos aplaudíveis da produção. De um lado, o estilo artístico de Perkins funde-se num equilíbrio perfeito entre o expressionismo alemão, utilizando de sua literariedade para condensar os personagens em uma névoa constante e inebriante, e da perspectiva noir dos filmes detetivescos (principalmente quando um dos protagonistas está prestes a fazer alguma descoberta ou ser engolfado numa revelação cosmológica); do outro, as performances de Krige e Lillis é soberba, afastando-se de seus trabalhos anteriores ao mesmo tempo que traz certos elementos para as telonas. Apesar dos picos de glória supracitados, tudo não passa de uma medida paliativa para uma montagem datada e uma resolução ridiculamente fácil para a história apresentada no começo.
Maria e João prende a si mesmo numa zona de conforto frustrante, brincando na superfície de algo que poderia ser bem maior – ou ao menos que poderia se contentar com as expectativas que cultivou desde o início. Ademais, é provável que o longa seja satisfatório ou aprazível o bastante para abrir espaço para um suposto universo compartilhado que já foi premeditado pelo próprio Perkins.
Maria e João: O Conto das Bruxas (Gretel & Hansel – EUA, 2020)
Direção: Oz Perkins
Roteiro: Rob Hayes, baseado no conto dos Irmãos Grimm
Elenco: Sophia Lillis, Sam Leakey, Alice Krige, Jessica De Gouw, Charles Babaloa
Duração: 90 min.
https://www.youtube.com/watch?v=F91kOzoHFwQ
Crítica | Locke & Key: 1ª Temporada - Uma Aventura Mística
Doze longos anos depois de ser lançada (e algumas tentativas falhas de adaptá-la para as telinhas), a HQ Locke & Key, assinada por Joe Hill e Gabriel Rodriguez, finalmente ganhou sinal verde da Netflix e, durante seu período de gestação, tornou-se um dos projetos mais aguardados da plataforma e um de seus mais promissores. Misturando elementos de terror e aventura em uma clássica jornada de ficção fantástica que nos relembra bastante das icônicas histórias de C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien, os showrunners desse interessante enredo conseguiram imprimir sua própria perspectiva ao passo que resgatavam a essência dos quadrinhos originais – acrescentando alguns elementos muito bem-vindos, ainda que perdessem um pouco o ritmo dos episódios.
A primeira temporada da série, na verdade, é envolvente por sua familiaridade: a família Locke se muda para uma gigantesca mansão intitulada Keyhouse depois de uma tragédia levar o patriarca da família. Buscando recomeçar uma vida marcada por traumas, Nina (Darby Stanchfield) resolve se mudar com seus filhos para Matheson, Massachusetts, secretamente desejando encontrar alguma pista que revele os motivos do assassinato do marido, Rendell (Bill Heck), ao mesmo tempo arrastando as crianças para um mistério que vai para muito além de uma compreensão lógica e palpável das coisas. É a partir dessa condensada, porém transbordante premissa, que o trio formado por Carlton Cuse, Meredith Averill e Aron Eli Coleite desenvolve um satisfatório pontapé inicial, cultivando o terreno para os próximos anos.
De fato, o episódio piloto nos dá uma sensação levianamente apressada, como se não tivesse tempo o suficiente para construir os múltiplos arcos principais de seus protagonistas. O ato de abertura, na verdade, é sólido o bastante em seus minutos iniciais, apenas para perder-se em um frenesi de acontecimentos que inclui a descoberta de chaves místicas escondidas pela casa; a libertação não intencional de um perigoso demônio de sua prisão eterna (no caso, um profundo poço nos arredores da Keyhouse; e uma luta pela sobrevivência que é ameaçada por forças sobrenaturais e por mentiras enterradas que insistem em vir à tona e prometem destruir laços sólidos de confiança e fraternidade.
No centro desse turbilhão de eventos, temos os três jovens irmãos formados por Bodi (Jackson Robert Scott), Tyler (Connor Jessup) e Kinsey (Emilia Jones). Bodi é o caçula dos Locke e o primeiro a ouvir os tétricos sussurros das pequenas chaves que outrora pertenceram a seu pai e a seus amigos. Ele logo descobre que esses objetos são dotados de poderes incríveis (e um tanto quanto imprudentes) e é atraído pela sedutora voz de Dodge (Laysla De Oliveira), uma criatura que representa uma interpretação modernizada do Succubus e que utiliza todo o seu poder para enganá-lo e fazê-lo entregar a Chave de Qualquer Lugar para escapar de lá; seu objetivo principal ainda fica às escondidas nos capítulos seguintes, mas sabemos que ela quer tomar posse das outras Chaves.
Basicamente, a história inteira é calcada nesse complexo pano de fundo, que poderia se render aos comodismos de uma narrativa supersaturada, mas transforma-se em uma explicação didática, comovente e que nos mantém envolvidos do começo ao fim, nos fazendo desejar ardentemente pela próxima iteração. Tal empenho nutre-se de quase todos os elementos que são apresentados ao público, incluindo competentes atuações, personagens com arcos críveis e delineados com cautela extrema – e uma estética híbrida de surrealismo e expressionismo que em momento algum rende-se às fórmulas pedantes do gênero que explora.
As características identitárias de Andy e Barbara Muschietti (a dupla por trás do remake de It: A Coisa), que entram como produtores executivos, servem como inspiração para que os criadores deem vida à adaptação: afinal, temos um monstro que é capaz de mudar de forma e que se vale do medo dos heróis para conseguir o que almeja –culminando em um season finale que, apesar de previsível pela condução em foreshadowing do capítulo, é aprazível e resolutamente caótico, premeditando um “fim do mundo” que deve servir de base para as próximas temporadas.
Mais do que isso, são alguns elementos-chave que nos convidam a mergulhar de cabeça na aventura. Não me refiro apenas ao coeso roteiro, e sim às chocantes performances de certos membros do elenco, como Scott, que dá um salto de amadurecimento desde sua breve aparição em It, e Oliveira, que é um dos ápices da produção. Saindo de seu recente papel em Campo do Medo, a atriz abandona a concepção de vítima para encarnar Dodge, transformando um arquétipo a princípio maniqueísta em uma impiedosa força cosmológica que atravessa a fenda de nosso mundo para destruir qualquer um que ouse ficar à sua frente. A antagonista praticamente se recusa a sujar suas mãos e tem como alvo mentes mais fracas para que façam o árduo trabalho de destruir a família Locke e seus aliados.
A série por vezes deixa de situar os espectadores em certas reviravoltas, crente de que os quadrinhos darão conta do recado – como é o caso do surgimento espontâneo de Chaves que nem ao menos foram mencionadas por personas coadjuvantes (Sherri Saum como Ellie Whedon é um desses exemplos). Felizmente, a trama principal se isola numa confortável superfície que não faz dessas explicações tão necessárias assim, permitindo que os leigos ao mundo arquitetado por Hill não fiquem perdidos.
Locke & Key é uma adição muito bem-vinda ao crescente catálogo da Netflix e, em poucas semanas, deve conquistar o patamar de uma das produções mais adoradas pelos fãs. É inegável notar os poucos deslizes trazidos pela temporada; mas os pequenos erros conseguem ser ofuscados pelo modo como toda a trajetória é guiada.
Locke & Key – 1ª Temporada (Idem, EUA – 2020)
Criado por: Carlton Cuse, Meredith Averill, Aron Eli Coleite
Direção: Michael Morris, Tim Southam, Mark Tonderai-Hodges, Dawn Wilkinson, Vincenzo Natali
Roteiro: Carlton Cuse, Meredith Averill, Aron Eli Coleite, Vanessa Rojas, Liz Phang, Michael D. Fuller, Andres Fischer-Centeno, Mackenzie Dohr, baseado nos quadrinhos de Joe Hill e Gabriel Rodriguez
Elenco: Darby Stanchfield, Connor Jessup, Emilia Jones, Jackson Robert Scott, Laysla de Oliveira, Petrice Jones, Griffin Gluck, Bill Heck
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Fantasia, Aventura
Duração: 45 min. aprox.
https://www.youtube.com/watch?v=_EonRi0yQOE
Crítica | Luna Nera: 1ª Temporada - A Ascensão das Bruxas
Desde que a indústria do entretenimento deu uma guinada surpreendente – primeiro o cinema no começo do século XX e então a televisão a partir de 1950 -, as místicas figuras das bruxas dominaram o imaginário popular e foram transcritas das mais diversas formas para as telonas e telinhas. É claro que essas mágicas criaturas, muitas vezes associadas a algo maligno, já existiam há milênios e até hoje existem, congregadas em clãs wiccanos, por exemplo, ou então em grupos que prezam mais pela bruxaria tradicional. De qualquer forma, o conceito simbológico delas foi arquitetado, desconstruído e virado do avesso com o passar dos anos, protagonizando obras adoradas como As Bruxas de Eastwick, Abracadabra e Convenção das Bruxas.
Recentemente, contos de terror foram adaptados em macabras e envolventes histórias, como é o caso de A Bruxa e Hereditário – chegando, finalmente, à nova produção da Netflix que visa retornar ao passado e trazer como foco um grupo de mulheres italianas que se exilaram da sociedade por serem tratadas como demônios. Na verdade, esse grupo era formado por bruxas, desafiando o patriarcado renascentista fruto de um retrógrado e conservador pensamento e, por conta disso, condenadas às mais diversas formas de tortura e execução. Apesar das claras e empoderadas mensagens promovidas pelo show, Luna Nera não explora o seu incrível potencial, valendo-se mais de formulaicos acontecimentos em vez de almejar a algo original.
A primeira temporada já nos chama a atenção por ser comandada inteiramente por mulheres – além de ser baseada na trilogia Le Città Perdute (A Cidade Perdida), de Tiziana Triana. Logo no primeiro episódio, nos deparamos com uma atmosfera densa, marcada por estilos que remontam ao clássico expressionismo alemão, tanto pela constante névoa que cerca as protagonistas quanto pelo inteligente jogo de luz e sombra que tenta ao máximo nos manter interessados para passarmos ao próximo episódio. No centro disso tudo, existe Ade (Antonia Fotaras), uma jovem que auxilia sua avó como parteira – isso é, até as duas serem acusadas de matarem o recém-nascido dos Benandanti. A partir daí, Ade acaba fugindo de sua casa com o irmão, Valente (Giada Gagliardi), e segue rigorosamente as instruções da avó para se encontrar com um grupo de feiticeiras extremamente poderoso.
Diferente do que poderíamos imaginar, a série nutre-se de uma vida própria: enquanto alguns elementos são resgatados da icônica franquia As Brumas de Avalon, as showrunners tomam cuidado para que as escolhas artísticas e narrativas não sejam apenas um simulacro do cenário inglês; não é à toa, pois, que elas optem por se centrar nas construções romanas que ainda permanecem revoltas de mistério. Eventualmente, o próprio cenário grita com uma história que não pode ser apagada, e resolve seguir um caminho que se aproxima de O Nome da Rosa, mergulhando numa visceralidade que poderia ser bem melhor explorada.
Apesar de Ade ser a protagonista, são as outras personas que roubam o foco, mesmo residindo em arquétipos bastante conhecidos de arcos coming-of-age. Aliás, talvez seja esse paralelo significativo que ‘Luna Nera’ faz com tantos enredos familiares que a torne tão saudosista para o público, convidando-os a algo que já conhecem (mas não da mesma forma que ouviram falar): de um lado, temos a líder do clã, Tebe (Manuela Mandracchia), que livra-se das amarras sexistas de outra vida para se juntar à humana Leptis (Lucrezia Guidone). De outro, Janara (Federica Fracassi) serve como braço-direito de Tebe, e Persepolis (Adalgisa Manfrida) é o escape cômico e uma das confidentes de Ade.
É claro que a solidez dessa irmandade não poderia ser plena: como mencionado, seu principal inimigo insurge no rosto dos Benandanti, cuja perspectiva sanguinária é canalizada principalmente por Sante (Giandomenico Cupaiulo), o qual recruta vários jovens religiosos para caçar as “aberrações satânicas” que resolveram tornar suas costas para seu deus cristão. Porém, um deles, conhecido como Pietro (Giorgio Belli), que se formou nas artes médicas em Roma, renega esse fervor irracional e se apaixona por Ade (não acreditando que ela possa ser bruxa). Com todas essas intrincadas tramas, era de se esperar que os seis longos episódios ao menos culminasse em críveis transformações de personalidade – mas isso só ocorre com poucos protagonistas.
Luna Nera se vale muito de sua estética incrível para mascarar alguns erros amadores, dentre eles a inserção de reviravoltas inexplicáveis que nem ao menos foram premeditadas por algum elemento do roteiro. Valente, por exemplo, não é um menino, e sim a menina-chave que nasceria para proteger as bruxas e que foi enfeitiçada pela própria mãe para que não corresse perigo; Marzio Oreggi (Roberto De Francesco), a eminência suprema da igreja local, é, na verdade, um feiticeiro banido de seu clã que se voltou contra a própria raça e que é, ao que tudo indica, pai biológico de Ade (ou um adorador de Satã que deseja trazer ainda mais caos àquele mundo decadente); e, para terminar, Pietro acaba se voltando contra seus próprios princípios e declara uma guerra santa logo depois que Ade assassina seu pai em autodefesa.
No final das contas, as mensagens positivas sobre sororidade e autoaceitação são ofuscadas por reticências gritantes e por uma necessidade indescritível de chocar o público e levá-lo a uma catarse que nunca se consolida. Apesar dos ganchos para a próxima temporada, a série tangencia um ciclo sem fim que, sem sombra de dúvidas, deverá ser lapidado ou destrinchado com urgência.
Luna Nera – 1ª Temporada (Idem, Itália – 2020)
Criado por: Francesca Manieri, Laura Paolucci, Tiziana Triana
Direção: Francesca Comencini, Susanna Nicchiarelli, Paola Randi
Roteiro: Francesca Manieri, Laura Paolucci, Vanessa Picciarelli
Elenco: Antonia Fotaras, Gorgio Belli, Manuela Mandracchia, Federica Fracassi, Lucrazia Guidone, Adalgisa Manfrida, Giada Gagliardi
Emissora: Netflix
Episódios: 06
Gênero: Fantasia, Drama
Duração: 50 min. aprox.
Crítica | Os Órfãos - A Desonra dos Filmes de Terror
Em 1898, o lendário autor britânico Henry James lançava sua obra-prima A Outra Volta do Parafuso, romance sobrenatural que se tornou referência literária para diversos estudos científicos, incluindo a vertente intitulada Neocrítica. Publicado no auge do gênero gótico – e aproximando-se de obras ultrarromânticas e até mesmo do conterrâneo Bram Stoker -, o livro logo caiu no gosto popular e, décadas depois, ganhou uma versão para os teatros e um filme dirigido por Jack Clayton que, até hoje, é considerado um clássico da indústria cinematográfica. E ainda que grande parte das pessoas esteja familiarizado com o título dessa obra, não foi até os últimos meses de 2019 que os escritos ganhariam mais duas versões modernizadas – uma delas em formato seriado e supervisionado por Mike Flanagan e a outra a encargo da diretora ítalo-canadense Floria Sigismondi, que ganhou fama com o longa The Runaways: Garotas do Rock.
Entretanto, diferente da interessante cinebiografia que comandou alguns anos atrás, a cineasta parece ter se perdido completamente ao levar sua própria perspectiva acerca de James para as telonas: o resultado de Os Órfãos, que tenta se nutrir de quaisquer elementos conhecidos do suspense e do terror, é uma frustrante aproximação de thrillers expressionistas que não faz o menor sentido e culmina em um finale incompreensível e aberto a todas as interpretações que os espectadores desejam transportar para a peça fílmica. E, por mais que Sigismondi almeje a uma construção com causa e consequência, eventualmente mergulha num surrealismo datado com efeitos visuais medíocres para nos arrancar ao menos uma centelha de emoção de um roteiro sem vida.
A história parte do mesmo princípio: aqui, a governanta protagonista retorna como uma narradora deturpada que é tratada o tempo todo como uma personagem aos cuidados de um narrador onisciente em terceira pessoa. Mackenzie Davis, saindo de participações em obras como Tully e Black Mirror, dá vida à professora infantil Kate Mandell, que é contratada pela família puro-sangue Fairchild (na verdade pela caseira, visto que os pais morreram num trágico acidente de carro) para ser tutora da jovem Flora (Brooklynn Prince), que nunca saiu da propriedade e não teve praticamente nenhum contato com o mundo exterior. Entretanto, assim que abandona sua vida na cidade grande e se instala nos aposentos da arrepiante mansão vitoriana, Kate começa a ter experiências do além-mundo que a colocam em uma saia justa e numa luta para descobrir se está enlouquecendo ou se está correndo grande perigo.
A promissora premissa é a melhor parte do filme – e um convite para que a audiência opte por se aventurar nas páginas do livro original em vez de perder quase duas horas em frente a uma insípida viagem injetada com reviravoltas idióticas. Para ser franco, não se pode tirar mérito das escolhas artísticas que Sigismondi faz ao lado da equipe criativa, ainda mais levando em conta que consegue capturar a essência do vanguardismo alemão do século XX e atribuir-lhe alguns aspectos contemporâneos e que vagam na tênue linha entre o anacronismo e a atemporalidade. Porém, a densa atmosfera, pincelada com uma névoa ao mesmo tempo convidativa e repugnante, não é o bastante para livrar o longa de tantos defeitos.
Em se tratando de uma incursão de gênero, a iteração não funciona por ser superficial e pedante demais; em se tratando de um bom entretenimento, sofre do mesmo mal. Davis e Prince entram em um princípio de relacionamento no primeiro ato que nunca se desenvolve, mergulhando, ao invés disso, em uma ruína inesperada que simplesmente existe por existir e não se vale da arquitetura predecessora. É costume, em filmes de terror, que as aparições fantasmagóricas e os contatos espirituais entrem em um crescendo crível e que siga um caminho formulaico e prático ao mesmo tempo – com exceções claras quando pensamos em James Wan, por exemplo, que excede nossas expectativas em quase todas as suas obras. Aqui, essa exponencial tensão parece estar infiltrada com a incapacidade do roteiro em seguir uma linha clara de raciocínio, valendo-se mais de jumpscares baratos do que a agonia de não saber o que espreita na escuridão.
Finn Wolfhard também deixa para trás seu papel como Mike na série sci-fi Stranger Things e é desperdiçado em todos os momentos que aparece. Encarnando o rebelde e perturbado Miles, Wolfhard é outra das vítimas de um frágil arco narrativo, mudando sua personalidade de uma hora para outra e nunca representando uma ameaça real da forma que deveria. Na realidade, o filme nos leva numa direção clara, deixando explícito que Miles havia sido possuído por Quint, um bruto cavalariço que havia se apropriado da casa depois da morte dos pais dos Fairchild e que abusara física e psicologicamente da última tutora – um cenário caótico que teria terreno extenso para twists inteligentes e cabíveis.
Todavia, das duas uma: ou a mudança é previsível, ou intangível. Os diálogos e as sequências são redundantes e não acrescentam em nada para nosso envolvimento, repetindo a mesma coisa durante os três atos; e, quando nos aproximamos do final, Sigimondi resolve transformar o terror em uma íntima psicose que transforma Kate numa mulher sem escrúpulos e que estava louca desde o começo – transferindo a própria responsabilidade emocional a uma esquizofrenia hilária de tão ridícula que é.
Os Órfãos é um forte candidato a um dos piores longas do ano e da nova década – e é muito difícil que alguma produção se equipare no tocante à quantidade de erros amadores que um talentoso time leva para as telonas.
Os Órfãos (The Turning – EUA, 2020)
Direção: Floria Sigismondi
Roteiro: Carey W. Hayes, Chad Hayes, baseado no romance de Henry James
Elenco: Mackenzie Davis, Finn Wolfhard, Brooklynn Prince, Joely Richardson
Duração: 94 min.
https://www.youtube.com/watch?v=qMTRBt8H8pI
Crítica | O Mundo Sombrio de Sabrina: 3ª Temporada - E Não Sobrou Nenhum
Melissa Joan Hart tornou-se um fenômeno teen nos anos 1990 ao dar vida a uma das primeiras versões de Sabrina Spellman na indústria audiovisual. Depois de ter conquistado o público ao longo de sete ano, Sabrina alcançou o patamar de um dos grandes símbolos da cultura pop contemporânea – não demorando muito até que a personagem ganhasse uma nova roupagem para a Netflix. E, dessa forma, Roberto Aguirre-Sacasa (criador da fan-favorite Riverdale) dava vida a O Mundo Sombrio de Sabrina, adaptação dos quadrinhos homônimos da Archie Comics com uma pegada bem mais dark, mais sensual e mais envolvente que a comédia estrelada por Joan Hart.
É claro que, a princípio, grande parte dos fãs viu-se frente a frente com mais um reboot sem sentido e vazio no tocante – ainda mais levando em conta que o gatinho preto conhecido com Salem não teria uma fala sequer nos novos episódios. Felizmente, o charme encantador de seu elenco e um visual incrível nos livraram de quaisquer dúvidas e nos levaram em uma mística aventura pela Terra e pelo Inferno, seguindo as aventuras de uma personagem titular agora encarnada pela talentosa Kiernan Shipka. Agora, entrando no terceiro aguardado ciclo da produção, Sabrina mostra que ainda há muito a ser mostrado – e que algumas reviravoltas nunca são datadas o bastante para nos surpreender e nos engolfar em uma mixórdia de sentimentos sem igual.
Depois de ter conseguido prender seu pai, Lúcifer Estrela da Manhã (Luke Cook), em um receptáculo de carne conhecido como Aqueronte – no caso, canalizado para o corpo do sedutor Nick (Gavin Leatherwood), Sabrina resolve seguir seus instintos altruístas e viajar até o Inferno para resgatar seu namorado e livrá-lo tanto do pai quanto das garras da perigosa Lilith (Michelle Gomez), que se apropriou do trono do submundo e agora é responsável por manter o equilíbrio entre os três reinos. Como sempre, a jornada é mais difícil do que aparenta e obrigará os protagonistas a enfrentarem seus piores medos – e é aqui que jaz um dos principais deslizes da terceira iteração: a falta de exploração.
Diferente dos esforços anteriores, Aguirre-Sacasa e sua extensa equipe criativa parecem querer resolver as coisas em um frenético ritmo de causa e consequência, talvez para que consigam investir suas forças nas outras subtramas que, sem sombra de dúvida, têm peso dramático muito maior. Entretanto, os equívocos técnicos e artísticos ganham forma no momento em que a obra tenta alcançar uma espécie de releitura macabra de ‘A Divina Comédia – Inferno’, de Dante Alighieri, é a resume em uma sucessão de eventos previsíveis do começo ao fim. Felizmente, as performances do elenco principal e do coadjuvante (aqui com mais força do que nunca) auxiliam a lustrar os obstáculos em questão e pavimentar uma estrada mais sólida em direção a um belíssimo season finale.
Como já era de se esperar, Sabrina resgata Nick e dá início a um novo capítulo – o mais assustador de sua breve vida como bruxa: em meio a tantas mudanças, ela se exalta e acaba assumindo controle do submundo, impedindo que tudo desmorone. Porém, não demora muito até que Caliban (Sam Corlett), um golem humanizado, a desafie pela coroa e prometa para seus conterrâneos demoníacos que, caso vença o desafio, transformará o mundo dos mortais no décimo círculo do Inferno – cumprindo a promessa há muito feita pelo desertado Lúcifer.
Apesar das múltiplas linhas narrativas que ganham profunda arquitetura, é inegável mencionar como elas convergem para uma organicidade invejável, que em momento algum beira a saturação. Afinal, em meio a apenas oito episódios, era de se esperar que o roteiro se apressasse em diversos momentos para que as pontas soltas fossem amarradas – o que nos leva a entender o frenesi imagético dos capítulos iniciais. Além disso, enquanto Sabrina parte em uma missão para salvar mais uma vez o mundo do apocalipse, Zelda (Miranda Otto) assume a supervisão da Igreja da Noite e da Academia de jovens bruxos, até perceber que sua traição para o Lorde das Trevas trouxe corolários assustadores; Prudence (Tati Gabrielle) e Ambrose (Chance Perdomo) continuam em sua jornada para encontrar o Padre Blackwood (Richard Coyle) e matá-lo de uma vez por todas; e uma força antiga ameaça a continuidade da pequena Greendale (e a perpetuidade da vida humana).
Enquanto os gritantes deslizes de certa forma se tornam compreensíveis à medida que a série se eleva a caminhos nunca antes sondados, o showrunner também pontua com cautela sua necessidade e seu apreço por uma crível expansão mitológica. Se pararmos para pensar, a primeira temporada serviu como apresentação do religião satânica seguida pelos bruxos e bruxas locais; agora, mergulhamos em um conflito bélico de crenças sobrenaturais que data de séculos e que nos leva de volta ao passado, expandindo-se durante séculos e mais séculos até o momento em que os humanos acreditavam piamente na força dos Antigos. Não é surpresa que a iteração estabeleça relações com divindades clássicas das mitologias grega, romana e celta, trazendo para as telinhas versões modernizadas de Circe, Medusa, Pan – e até mesmo Judas, e Pôncio Pilatos.
Mais do que isso, é notável como a concepção antológica regente dos capítulos de outrora dá lugar para uma convecção transbordante de referências, fazendo questão de não meramente reapresentar rostos familiares e apresentar novas figuras, mas sim colocá-los em arcos reduzidos que culminem em uma explicação palpável o bastante para assegurar a envolvência dos telespectadores, mas fantasiosa o suficiente para que sejamos arrastados para um universo mítico e aterrorizante.
O Mundo Sombrio de Sabrina volta a se afastar de possíveis maniqueísmos, preferindo explorar desejos, fraquezas e medos, ao passo que não entrega de bandeja um fabulesco “final feliz”, e sim uma derradeira perspectiva que prenuncia o fim do mundo e a completa falta de esperança. Apesar de alguns erros, a qualidade da produção mantém-se lá em cima e, como era de se esperar, cultiva um terreno fértil para mais uma temporada.
O Mundo Sombrio de Sabrina – 3ª Temporada (Chilling Adventures of Sabrina, EUA – 2020)
Criado por: Roberto Aguirre-Sacasa
Direção: Rob Seidenglanz, Alex Pillai, Viet Nguyen, Roxanne Benjamin, Michael Goi, Craig William Macneill
Roteiro: Roberto Aguirre-Sacasa, Ross Maxwell, Oahn Ly, Donna Thorland, Matthew Barry, Joshua Conkel, Lindsay Calhoon Bring, Daniel King
Elenco: Kiernan Shipka, Richard Coyle, Miranda Otto, Lucy Davis, Tati Gabrielle, Michelle Gomez, Ross Lynch, Chance Perdomo, Bronson Pinchot, Jaz Sinclair, Gavin Leatherwood
Emissora: Netflix
Episódios: 08
Gênero: Fantasia, Terror, Drama
Duração: 60 min. aprox.
Crítica | Sex Education: 2ª Temporada - A Dramédia do Sexo
Sex Education estreou ano passado e tornou-se uma das séries mais irreverente e favoritas da Netflix, conquistando fãs ao redor do mundo com exponencial crescimento – principalmente por fazer algo que muitas pessoas não queriam fazer: quebrar os tabus sobre temas como sexualidade, aceitação, feminismo, sororidade e tantos outros de extrema importância para a complexo organismo social que insurge na contemporaneidade. Não isento de falhas, a primeira temporada investiu em dois lados da mesma moeda, brincando com os conceitos de comédia e tragédia de modo sutil e envolvente – apenas para acrescentar mais algumas camadas de ambos os elementos para seu segundo ano.
Laurie Nunn retorna como a showrunner e a roteirista principal do novo ciclo, iniciando com o explícito “expurgo” que Otis (Asa Butterfield) realizou em si mesmo ao deixar para trás suas inseguranças e finalmente conseguir se masturbar – eventualmente ficando viciado e percebendo que sua recém-descoberta sobre o corpo pode colocá-lo em situações um tanto quanto desconfortáveis, seja com a mãe, Jean (Gillian Anderson), seja com a namorada, Ola (Patricia Allison). Seguindo os passos da iteração predecessora, os capítulos usam de uma subvertida técnica de foreshadowing para arquitetar as narrativas principais, focando em uma pessoa ou um casal que esteja tendo algum problema e que será resolvido (ou explorado) no decorrer de sessenta minutos.
Como sempre, temos o elenco principal permeado por diversos coadjuvantes que em momento algum perdem seu brilho, trazendo para as telinhas um peso necessário para mostrar que o sexo não é algo perfeito, utópico e idealizado – como vemos em tantas produções audiovisuais (inclusive na controversa indústria pornográfica). Cada personagem encarna uma “vertente” sexual diferente para que o roteiro, construído em perfeição orgásmica por uma competente equipe criativa, traga para os telespectadores explanações acerca de fetiches, medos, traumas, desejos e infinitas outras proposições. Ademais, a obra pode ser encarada como um didático guia em que assuntos considerados inapropriados perdem suas características pré-concebidas e estendam-se sem fronteiras e sem restrições conservadores e retrógradas.
Mais uma vez, o personagem de Butterfield não consegue roubar a atenção para além de sua configuração como protagonista – e o antiético expert em terapia sexual que se apropria do trabalho da mãe e o leva para a escola. É claro que seu arco se aprofunda com força, ainda mais levando em conta que Jean é contratada pela escola para supervisionar as cartilhas oferecidas aos alunos e que Otis continua lutando contra o sentimento conflitante entre duas garotas; entretanto, Anderson é um dos exemplos de uma crível evolução “heroica”, desenterrando um passado conturbado e enfrentando mudanças inesperadas no funcionamento de seu antro pessoal (sua casa).
Maeve (Emma Mackey), que já havia nos encantado na temporada anterior com uma incrível performance, volta para mais uma árdua trajetória que se inicia com a retomada de controle sobre sua própria vida – marcada pelo retorno da problemática mãe, Erin (Anne-Marie Duff), para casa, e por seu desejo de reingressar na escola após ser injustamente expulsa. Cansada de tomar o problema dos outros para si, ela pretende focar nas suas conquistas e em seu crescimento, entrando para a equipe de gênios do colégio e canalizando esforços para proteger suas amigas. Porém, não estamos lidando com um capítulo de romances românticos, e sim com a realidade nua e crua da vida adolescente na Inglaterra – e Maeve não fica fora de uma resistência pré-programa sobre o que sente por Otis, refugiando-se com um novo morador de seu bairro para superá-lo ou tomar coragem para dizer o que sente.
Enquanto isso, Eric (Ncuti Gatwa) é um tanto quanto deixado de lado – com um arco que poderia ser resumido em alguns minutos. É sempre interessante vermos representatividade em produções mainstream, ainda mais quando estamos frente a frente com um protagonista extremamente humanizado e repleto de qualidades e defeitos; o jovem, aqui, sai de sua concha martirizada no ano de estreia do show e começa a se relacionar com o intercambista francês Rahim (Sami Outalbali), cuja personalidade oposta à de Eric é o que os une em um apressado namoro. Mais uma vez, as coisas não jazem na perfeição melódica de um sonho e premeditam o retorno de Adam (Connor Swindells), um ex-valentão que foi mandado para o colégio militar e voltou para sua cidade natal depois de ser expulso – reacendendo uma enviesada chama com Eric.
Apesar das repetições, é visível que a série supera a si mesma em praticamente todos os aspectos: para além de um roteiro costurado com exímia cautela, Nunn colabora com um quarteto de diretores que reproduz com fidelidade a estética criada em 2019 à medida que almeja a uma identidade única – ousando referenciar algumas obras de alto calibre (incluindo com planos-sequências e frames propositalmente ultrassimétricos). Essa preocupação artística expande-se também para a paleta de cores, que não tenta fundir as diferentes ambientações, e sim separá-las em uma justaposição contrastante e bastante prática.
Mesmo com certos excessos desnecessários, Sex Education eleva seu nível ainda mais, trilhando uma dramédia inebriante sem quaisquer hesitações sobre o que apresenta. Apesar da narrativa fechada, há, como sempre, um cliffhanger chocante para o terceiro ano – que deve nos conduzir para um necessário amadurecimento dos personagens.
Sex Education – 2ª Temporada (Idem, Estados Unidos – 2020)
Criado por: Laurie Nunn
Direção: Ben Taylor, Sophie Goodhart, Alice Seabright
Roteiro: Laurie Nunn, Sophie Goodhart, Richard Gaad, Rosie Jones, Mawaan Rizwan
Elenco: Asa Butterfield, Gillian Anderson, Ncuti Gatwa, Emma Mackey, Connor Swindells, Kedar Williams-Stirling, Alistair Petrie, Aimee Lou Wood, Tanya Reynolds, Patricia Allison, Sami Outalbali, Anne-Marie Duff, Chinenye Ezeudu
Emissora: Netflix
Episódios: 08
Gênero: Comédia dramática
Duração: 60 min.
https://www.youtube.com/watch?v=qdfzVvMDoYY
Crítica | Grace and Frankie: 6ª Temporada - Amadurecendo na Terceira Idade
É inegável dizer que Grace and Frankie tornou-se uma das obras mais amadas e mais divertidas da Netflix – principalmente depois de um trôpego começo ainda em 2015 que conseguiu se desenrolar em uma competente narrativa movida pela graça e pela química de seu elenco veterano. Agora, são poucas as pessoas que ainda não ouviram falar das aventuras de duas senhoras que descobriram que seus maridos são gays e estavam tendo um caso há mais de dez anos e que, depois da brusca mudança que suas vidas sofreram, foram obrigadas a enterrar as diferenças e compartilhar uma casa de praia – eventualmente construindo uma das amizades mais belas da indústria do entretenimento contemporânea.
E, um ano depois da quase separação de nossas duas protagonistas titulares, a plataforma de streaming nos presenteou com a sexta temporada do show, que configurou-se como uma das melhores e mais envolventes de toda a produção. Na verdade, Jane Fonda e Lily Tomlin provaram mais uma vez que uma boa performance não tem idade – e que até personagens já bastante explorados têm bastante a nos oferecer. Como já é costumeiro, os dramas e as irreverentes situações em que a dupla se envolve permeiam praticamente todos os treze novos episódios; entretanto, Martha Kauffman e Howard J. Morris cuidam para que os múltiplos eventos não mergulhem numa simples e repetitiva fórmula, e sim insurjam como força-motriz para um inesperado amadurecimento.
Basicamente, os criadores provam que comédias coming-of-age nunca se destinaram apenas a um tipo de público e podem vir das mais diversas formas: é a partir dessa premissa as “heroínas” passam a viver separadas uma da outra, ainda mais com o casamento surpresa entre Grace (Fonda) e Nick (Peter Gallagher), o milionário excêntrico que conseguiu conquistar o coração de uma mulher que outrora só desejava reafirmar sua personalidade forte e independente. Invertendo os papéis, chegou a vez de Grace preocupar-se além da conta com Frankie (Tomlin), acreditando com todas as forças que ela está em crise e que está em negação sobre tudo o que aconteceu – quando é o contrário que acontece. Frankie, ainda que queira se desvencilhar de pensamentos mesquinhos, acha que sua melhor amiga tomou uma decisão precipitada (que serve como foreshadowing para os últimos episódios).
De qualquer forma, ambas devem se adaptar a estilos de vida diferentes do que tinham, jurando que permanecerão como parceiras de negócios e que darão a volta por cima depois da obrigatória declaração de falência da Vybrant. E, retornando às raízes que nos conquistaram da primeira vez, o roteiro mescla simplicidade e profundidade em uma análise didática sobre a terceira idade que nunca fica datada, e sim renova-se a cada reviravolta: não é surpresa que, em uma infelicidade física, as duas tenham a arriscada ideia de arquitetar um projeto chamado Rise Up (um vaso sanitário automatizado que ajuda pessoas mais velhas).
Enquanto o pano de fundo rende-se a performances irretocáveis de duas atrizes incríveis, as subtramas ousam explorar ainda mais aqueles que vivem ao redor delas. Como já mencionado, o conceito de “amadurecimento” é o que rege o sexto ciclo da série, e é refratado ao relacionamento de Brianna (June Diane Raphael) e Barry (Peter Cambor), que parecem seguir em frente a passos de formiga até perceberem que precisam também de uma mudança, e de Sol (Sam Waterston) e Robert (Martin Sheen), cujo casamento começa a se nutrir de leves mentiras que se transformam numa bola de neve – culminando num empréstimo chocante de 20 mil dólares e num tratamento de câncer de próstata que os traz de volta para a realidade.
É interessante observar de que forma a habilidosa equipe criativa se recusa a tangenciar temas de bastante importância para a atualidade, mas ao mesmo tempo escolhe cuidadosamente como abordá-los: com suavidade e com uma transgressão narrativa pincelada com doses de humor inteligente e diálogos ácidos e leves que apenas melhoram a cada episódio. É claro que o absurdo também é imprescindível para que todos alcancem o que almejam – porém, é justamente isso que nos mantém tão envolvidos. As mensagens positivas declaradas pela série são tão palpáveis como qualquer outra que recebemos de tantas obras audiovisuais, e ganham forma dentro de uma sinestésica “zona de conforto” repleta de potencial e de enredos infinitos (ora, as protagonistas até mesmo resolvem participar do programa Shark Tank para conseguirem empréstimo para o Rise Up).
Com um season finale bem ritmado, ainda que previsível pelas dicas que a própria história nos entrega, Grace and Frankie retorna para uma divertida sexta temporada que já não nos precisa mais provar nada. De fato, Fonda e Tomlin mais uma vez carregam a maior parte da beleza do show por uma solidez artística inebriante – e não podemos deixar de pensar que assistiríamos às duas fazerem basicamente qualquer coisa o tempo todo.
Grace and Frankie – 6ª Temporada (Idem, Estados Unidos – 2020)
Criado por: Marta Kauffman, Howard J. Morris
Direção: Marta Kauffman, David Warren, Ken Whittingham, John Hoffman, Betty Thomas, Marta Cunningham, Rebecca Asher, Alex Hardcastle
Roteiro: Marta Kauffman, Howard J. Morris, David Budin, Brendan McCarthy, Julie Durk, John Hoffman, Julieanne Smolinski, Alex Burnett
Elenco: Jane Fonda, Lily Tomlin, Sam Waterston, Martin Sheen, Brooklyn Decker, Ethan Embry, June Diane Raphael, Baron Vaughn
Emissora: Netflix
Episódios: 13
Gênero: Comédia
Duração: 30 min.
https://www.youtube.com/watch?v=useJWxOqbJI
Crítica | Drácula (2020) - As Vulnerabilidades de Conde Drácula
A mitologia acerca de Conde Drácula vem assombrando gerações e, desde seu marcante surgimento no final do século XIX, o vampiro mais famoso de todos os tempos ganhou inúmeras releituras dentro da indústria do entretenimento contemporânea – viajando para o espaço em uma investida futurista, embebido em aspectos teatrais com o icônico Bela Lugosi e transformando-se num guerreiro secular em Drácula: A História Nunca Contada. Agora, chegou a vez da Netflix oferecer sua própria versão do ovacionado romance de Bram Stoker, optando por brincar com elementos de vulnerabilidade e força enquanto estende a narrativa principal através das eras e o traz para a conturbada sociedade atual.
O resultado, por mais satisfatório que seja (e mesmo se afastando de alguns aspectos canônicos do livro original), não está livre de certos erros amadores e escolhas estéticas que simplesmente não têm lugar dentro da proposta da gigante do streaming; é claro que, considerando que Mark Gatiss e Steven Moffat já haviam nos entregado a deliciosa e envolvente Sherlock, era mais que natural que se aproximassem de vertentes anacrônicas, almejando a um state-of-art sanguinolento ao invés de simplesmente deixarem se levar pelos comodismos de qualquer drama de época. Porém, não podemos deixar de notar que o ritmo da obra é frenético demais tanto para se aprofundar em seus personagens principais quanto para fornecer uma explicação plausível de tantos elementos.
De qualquer forma, a beleza da minissérie de três capítulos reside nas convincentes performances do elenco protagonista e coadjuvante e nos belíssimos e assustadores cenários que erguem-se imponentes a cada sequência. Logo de cara, somos transportados para a medonha Transilvânia e a chegada de Jonathan Harker (John Heffernan) ao imenso castelo do Conde Drácula (Claes Bang), um velho senhor romeno que vive isolado de todos na labiríntica construção no topo da montanha. Jonathan está ali para um trabalho simples: ele deve pedir para que seu cliente assine alguns papéis da propriedade que acabou de comprar e, depois, retornar para os braços de sua amada noiva Mina (Morfydd Clark), que o aguarda ansiosamente para o enlace matrimonial.
Gatiss e Moffat, que ficam a encargo do roteiro, dividem o episódio piloto em dois momentos diferentes: o primeiro nos mostra a decadência de Jonathan depois de ter conseguido escapar das garras do Conde; o segundo, voltando no tempo, nos mostra o processo de sua ruína ao deixar se levar por uma figura repleta de segredos e extremamente sedutora – o que explica em partes sua “decisão” de ficar encarcerado nas fortalezas mais tempo do que pretendia. E, ainda que respalde em quebras de expectativa incoerentes para desconstruir a tensa atmosfera que arquiteta desde os minutos iniciais, a tensão constante é inebriante e nos vicia do começo até o fim.
No tempo presente, Jonathan se exilou no Convento de Budapeste e passa os dias relatando o ocorrido para a irreverente freira Agatha Van Helsing (Dolly Wells), cujos estudos acerca de Drácula já datam de anos e, agora, ela finalmente encontrou o momento certo para atraí-lo para sua armadilha. Apesar da competente performance de Wells, a personagem de Agatha mantém-se numa tênue e complexa linha que oscila entre o drama e a comédia – com tiradas sem qualquer tipo de contexto para o tipo de suis-generis explorado. É claro que, levando em conta seu famoso sobrenome, ela insurge como fator essencial para a abertura da mitologia de Stoker, mas alcança uma estrutura mais sólida apenas na segunda iteração antes de se perder novamente no season finale.
As nuances do personagem titular são deixadas de lado em prol de uma mixórdia visual que poderia ser melhor elaborada – ainda mais considerando a extensa equipe ao lado dos showrunners. Entre bruscos cortes e uma edição fragmentada demais para ser compreendida de imediato, a série diverge de sua identidade apresentada para encontrar-se em uma espécie de suspense cru no segundo episódio, avançando para características de romances de mistério dentro de uma reviravolta blasé e previsível. Sem sombra de dúvida, e a revelação para o terceiro episódio que nos chama mais a atenção e que brinca com os conceitos de dilatação e contração temporal de modo inimaginavelmente sagaz.
Enquanto Drácula é retratado com costumeira canalhice e vilania – quando não é envolvido uma manta beligerante que dialoga com sua inspiração medieval -, Gattis e Moffat fazem questão de apresentarem dois lados de uma mesma moeda na produção: o vampiro é charmoso e amigável a princípio, revelando as verdadeiras intenções quando tem suas vítimas na palma da mão; porém, a resiliência que exala serve apenas de máscara para uma podridão interior que é também lar de seus medos, de uma covardia inexorável que estende-se para seus irracionais medos – da cruz e da luz do sol, por exemplo. Não é surpresa que Agatha (e sua consecutiva herdeira, Dra. Zoe) passem a vida estudando uma patológica necessidade de autoproteção que é a chave para sua ruína.
Drácula é envolvente e simpatizante dentro da proposta que visa entregar ao público, mas sumariza em excesso o arco de seu protagonista para talvez cumprir as necessidades mercadológicas nas quais se insere. Mesmo assim, a série da Netflix vai além do que poderíamos imaginar e prepara um terreno considerável para futuras produções originais – e que possam recontar clássicas histórias de terror dos séculos passados.
Drácula (Idem, Reino Unido – 2020)
Criado por: Mark Gatiss, Stephen Moffat
Direção: Jonny Campbell, Damon Thomas, Paul McGuigan
Roteiro: Mark Gatiss, Stephen Moffat
Elenco: Claes Bang, Dolly Wells, John Heffernan, Morfydd Clark, Joanna Scanlan, Lujza Richter, Jonathan Aris, Sacha Dhawan
Emissora: Netflix, BBC One
Episódios: 03
Gênero: Drama, Terror, Fantasia
Duração: 90 min.