Crítica | (Des)Encanto: 1ª Temporada - Parte 2 - A Ascensão e a Queda de Tiabeanie

Se Matt Groening se viu diante de um complicado terreno na construção da primeira parte de (Des)Encanto e falhou de maneiras amadoras, por assim dizer, é fato comentar que a segunda leva de episódios representou uma considerável melhora para a qualidade da série. Na parte final de sua temporada de estreia, o showrunner e criador – que conquistou o público com a sagaz e ácida narrativa de produções como Futurama e Os Simpsons – nos convida para retornar à mística e um tanto quanto diferente Terra dos Sonhos (também conhecida como Dreamland), oferecendo a seu público os corolários de uma traição inesperada que colocou todo o reino à mercê da poderosa e recém-trazida à vida Rainha Dagmar (Sharon Horgan).

Para aqueles que não se recordam, a jovem e rebelde princesa Tiabeanie (Abbi Jacobson), apelidada de Bean, teve que fazer uma difícil escolha entre salvar a mãe, Dagmar, condenada a viver o resto de seus dias na forma de pedra por causa de um poderoso feitiço; ou Elfo (Nat Faxon), seu inocente e crédulo companheiro de viagens que esteve ao seu lado desde o princípio de sua jornada. Por sentir falta de uma figura materna em sua vida, Bean acabou escolhendo a primeira opção, mas não percebeu que Dagmar, na verdade, era a vilã da história. Sem deixar que os outros descobrissem, ela transformou todo o continente em pedra, deixando para trás seu marido, Zog (John DiMaggio), e levando a filha para a longínqua Maru.

É a partir daí que a história se desenrola e toma o que só podemos encarar como pouco tempo do que realmente esperaríamos: afinal, a anti-heroína protagonista se vê em uma espécie de segunda casa, obrigando a si mesma a se adaptar a um mundo abandonado, sem a companhia de seus amigos e tendo como únicos confidentes a mãe e os tios, feiticeiros da primeira parte que volta e meia apareciam para tentar controlar o destino de Bean – e que também invocaram o demônio Luci (Eric Andre) para corrompê-la. Entretanto, em meio a apressadas revelações e a reviravoltas incríveis (no sentido epistemológico do termo), ela se livra de um destino pior que a morte e decide abandonar esse lado da família em prol daqueles que verdadeiramente a amaram.

A princípio, Groening e seu time de roteiristas voltam a cometer deslizes óbvios, pecando inclusive no tocante ao envolvimento do público: as tramas e subtramas se aglutinam em um mesmo lugar de forma incompreensível, tomando forma apenas no momento em que Bean enfrenta Dagmar e decide se envolver numa missão para resgatar Elfo – e que a leva direto para o Inferno. Com a adição dessa não tão complexa subtrama, a série em si começa a retornar para os eixos e progride até culminar em um interessante season finale – tão interessante quanto o seu predecessor.

Em meio aos rápidos dez episódios (cujas construções são pensadas justamente para não cansar os espectadores), o nada ortodoxo trio de amigos também passa por um compreensível e muito bem-vindo amadurecimento que os obriga de forma quase imperceptível a abandonar certos aspectos de personalidade. Entretanto, não pense que o roteiro se vale de convencionalismos ou fórmulas prontas para permitir que isso ocorra: na verdade, tais sutilezas são engolfadas sem quaisquer escrúpulos em ácidos diálogos e em fragmentos que, na maioria das vezes, dizem muito mais do que nossos olhos podem ver. E não é surpresa, pois, que a produção em si mergulhe em uma deliciosa metalinguagem, abrindo espaço para que seu idealizador referencie a si mesmo sem se render a um completo e exagerado saudosismo cênico.

À medida que Bean percebe que sempre estará conectada à Terra dos Sonhos (não importe o quanto tente fugir de seu destino), ela se envolve em um recorrente desejo de independência, afastando-se de seus deveres como membro da Família Real e buscando por algo que realmente lhe dê prazer. Como resposta, Groening arquiteta em um breve capítulo uma jornada com começo, meio e fim no meio teatral – aproveitando a proposital e anacrônica modernidade de suas loucuras para debater acerca de temas como desigualdade de gênero e feminismo.

Se o show peca no tocante à própria fluidez, ao menos não transforma suas controversas mensagens em um panfletário monólogo – exceto por obviedades que adicionam certos elementos dramáticos aos arcos de cada personagem. A adição constante de coadjuvantes, na verdade, serve como estrutura arquetípica para o desenrolar das tramas, até mesmo para o esquecido Derek (Tress MacNeille), o príncipe-anfíbio herdeiro do trono. E, em uma relação de causa e consequência adornada com certos fillers próprios de uma delineação antológica (já vista em iterações similares), não podemos deixar de nos chocar com a insurgência dos surpreendentes episódios finais.

Além de expandir a mitologia e cultivar um terreno para anos futuros, a segunda parte de (Des)Encanto representa um considerável progresso para essa distorcida e hilária perspectiva das famosas “novelas de cavalaria”. Se não acerta em todos os aspectos, como fica claro em gritantes, porém pontuais momentos, ao menos Matt Groening colabora para nos deixar animados para as próximas temporadas. E, no final das contas, é isso o que realmente importa.

(Des)Encanto – 1ª Temporada: Parte 2 ((Dis)Enchantment, EUA – 2019)

Criado por: Matt Groening
Direção: Wesley Archer, Frank Marino, David D. Au, Peter Avanzino, Albert Calleros, Dwayne Carey-Hill, Brian Sheesley, Ira Sherak
Roteiro: Matt Groening, John Weinstein, Jamie Angell, Jeff Rowe, Shion Takeuchi, Jeny Batten, David X. Cohen, M. Dickson, Rich Fulcher, Reid Harrison, Eric Horsted, Bill Oakley, Patric M. Verrone
Elenco: Abbi Jacobson, Eric André, Nat Faxon, John DiMaggio, Tress MacNeille, David Herman, Maurice LeMarche, Sharon Horgan
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Comédia, Animação, Fantasia
Duração: 30 min. aprox.


Guia de Episódios | American Horror Story - 9ª Temporada: 1984

Confira nossas críticas semanais da 9ª e penúltima temporada da antologia American Horror Story, criada por Ryan MurphyBrad Falchuk.

09x01: CAMP REDWOOD

Publicado originalmente em 20 de setembro de 2019.

09x02: MR. JINGLES

Publicado originalmente em 27 de setembro de 2019.

American Horror Story  – 9ª Temporada: 1984 (Idem, 2019 – EUA)

Criado por: Ryan Murphy, Brad Falchuk
Direção: Bradley Buecker
Roteiro: Ryan Murphy, Brad Falchuk
Elenco: Emma Roberts, Billie Lourd, Cody Fern, Leslie Grossman, Matthew Morrison, Gus Kenworthy, John Carroll Lynch, Angelic Ross, Zach Villa, DeRon Horton
Emissora: FX
Episódios: 10
Duração: aprox. 45 minutos por episódio


Crítica | Pose: 2ª Temporada - A Acidez Narrativa de Ryan Murphy

No ano passado, Ryan Murphy investia seus esforços em uma nova série para a FX e se afastava do drama e do terror de suas produções antológicas: com Pose, o work-a-holic showrunner nos convidava a voltar algumas décadas no tempo, estacionando nos conturbados anos finais da década de 1980 e começo dos anos 1990, mais precisamente nos ballrooms que tanto lotaram as boates LGBTQ+ de Nova York. Aqui, a ideia era explorar a cultura criada pelas mulheres transgêneros negras e latinas que não se conformavam com a marginalização excessiva de sua comunidade e encontraram voz numa expressiva arte que até hoje é relembrada e cultuada por grande parte da sociedade – mesmo que se esqueça de suas duras origens.

Agora, chegamos à aguardada segunda temporada, na qual Murphy e seu time de excelentes diretores e roteiristas abrem as portas para nos apaixonarmos e nos comovermos com personagens extremamente complexas e que refletem um preconceito que mesmo hoje é enraizado na comunidade em que vivemos. E, se o ano anterior insurgiu como panfleto político para conhecermos a história de homens e mulheres batalhadores que não aceitavam os rótulos que lhes eram enfiados, o novo ciclo ganha um palanque ainda maior – ainda mais levando em conta que a narrativa em questão deu um salto no tempo para refletir a massificação da cultura apresentada (incluindo a famosa dança popularizada e apropriada por Madonna, conhecida como vogue).

É necessário, a priori, traçar um paralelo entre o antes e o depois. Nos primeiros oito capítulos, fomos apresentados a um conflito interno e externo entre os protagonistas que refletia uma construção decadente, salvo exceção pelo momento em que cada um deles se rendia às artes dos bailes e tinha a chance de brilhar nos holofotes. Normalmente, o conflito de gerações recebia uma atenção mais especial, servindo de força-motriz para que as tramas e subtramas se desenrolassem com maior palpabilidade; agora essa momentânea apresentação encontra uma nova camada, um respaldo muito maior do que poderíamos imaginar conforme os personagens principais amadurecem exponencialmente e começam a perseguir seus sonhos em um cenário caótico e conturbado no qual a confiança é um dos principais elementos de sobrevivência.

De um lado, Blanca (Mj Rodriguez) mantém seus filhos na linha e serve de guia para que cada um alcance o que sempre desejou: Angel (Indya Moore) eventualmente é contratada para ser modelo de uma grandiosa agência de modelos, enquanto Damon (Ryan Jamaal Swain) está prestes a se formar na prestigiada academia de dança New School of Dance e, depois de alguns tropeços inter-pessoais com membros de sua própria família, acaba viajando para Paris e se torna um grande coreógrafo; e a própria Blanca vê, ainda que momentaneamente, seu sonho de abrir uma manicure e pedicure tomando forma até um desastre pré-planejado torná-lo poeira. Entretanto, enquanto todos esses acontecimentos parecem aglutinados uns aos outros, Murphy e sua equipe fazem questão de que tudo seja minuciosamente construído, mesmo cedendo a algumas repetições desnecessárias.

Enquanto isso, Elektra (Dominique Jackson) pula de casa em casa, se sentindo traída pelas próprias filhas que salvou da total ruína, mas reergue-se como uma poderosa mulher dominatrixque utiliza toda sua beleza e sua sedução a favor próprio. Não é surpresa que a incorrigível personagem transforme-se em uma versão mais acida de si mesma, ao mesmo tempo que recua alguns passos para cuidar das pessoas que ama. Sua sarcástica complacência, na verdade, é dotada de uma persistente compaixão que não suporta ver suas irmãs e filhas sofrerem (mas também não abre mão de uma boa fofoca).

Em meio a esses problemas aparentemente “comuns”, cada uma das personas lida com pesarosos dialogismos com a realidade, incluindo a crescente viralização do HIV, a homofobia e a transfobia cometidas pela comunidade heterossexual dos Estados Unidos e do mundo, e o fato de lidarem com perdas sem deixar se levar pelas ruínas do luto: é nesse contexto que Billy Porter alça voo com uma provocante e propositalmente controversa performance que libera as fragilidades de seu personagem, Pray Tell, digladiando com seus demônios interiores e fazendo denúncias extremamente necessárias. Também é dentro dessa esfera que Candy (Angelica Ross) é brutalmente assassinada em uma espécie de sacrifício para reunir pessoas outrora separadas por divergências idiotas, por assim dizer.

É inegável dizer que a segunda temporada se afasta da esperada guinada narrativa para focar mais um intimismo melodramático que, por vezes, é explorado além do que deveria; felizmente, tal estética novelesca é ofuscada pelas brilhantes atuações de cada membro do elenco e pela agonizante trajetória de amadurecimento que os personagens sofrem – seja com mentiras, traições e reviravoltas aplaudíveis e de nos arrancar o fôlego. Mais que isso, a série retoma a necessidade de fornecer voz a minorias sociais e mostrar uma apaixonante perspectiva propositalmente varrido para debaixo do tapete.

Não é surpresa que Pose mantenha o nível de excelência de seu ano de estreia: afinal, Ryan Murphy, em colaboração com grandes nomes da indústria do entretenimento, prestam homenagem a uma época que, do mesmo jeito que foi marcada pela dúvida e pela falta de prospecção pessoal, brilhou com personalidades marcantes que merecem uma segunda chance – e nosso completo e incondicional amor.

Pose – 2ª Temporada (Idem, EUA – 2019)

Criado por: Ryan Murphy, Brad Falchuk
Direção: Ryan Murphy, Nelson Cragg, Gwyneth Horder-Payton, Silas Howard, Janet Mock, Tina Marbry
Roteiro: Ryan Murphy, Steve Canals, Brad Falchuk, Janet Mock, Our Lady J
Elenco: Mj Rodriguez, Dominique Jackson, Evan Peters, Kate Mara, James Van Der Beek, Billy Porter, Indya Moore, Ryan Jamaal Swain, Charlayne Woodard, Angelica Ross
Emissora: FX
Episódios: 10
Gênero: Drama
Duração: 60 min. aprox.


Crítica | Os 3 Lá Embaixo: 2ª Temporada - Dos Desejos Mais Profundos

Seguindo os passos de sua série predecessora, Guillermo Del Toro resolveu que estava na hora de amarrar as pontas soltas e finalizar mais um capítulo situado na icônica e estranha cidadezinha de Arcadia. Foi com uma inesperada surpresa que o criador da homônima produção Contos da Arcádia retornou pela quinta vez ao sobrenatural cenário para focar na última aventura dos irmãos reais Aja (Tatiana Maslany) e Krel (Diego Luna), enquanto decidem não fugir mais da mortal perseguição na qual se engajaram há pouco tempo e enfrentar o temido e tirano General Morando (Alon Aboutboul) – cujo principal objetivo é se tornar o único governante de todas as galáxias.

Entretanto, diferente das outras iterações que compõe essa mística antologia, a segunda temporada de Os 3 Lá Embaixo carece do mesmo brilho da nostálgica originalidade que fez com que nos apaixonássemos à primeira vista: em outras palavras, se Del Toro e sua equipe criativa tangenciou a perfeição com Caçadores de Trolls e abriu portas para mais uma memorável aventura, o time parece perder a mão por breves momentos antes de engatar um enérgico e dinâmico desenlace que culmina em um incrível season finale. Na verdade, boa parte dos episódios insurge como fillers que, apesar de ganharem pontos pela cautela artística e identitária, são desnecessários quando analisados mais a fundo.

De fato, a hora e a vez dos Irmãos Tarron se afasta da desejada conclusão épica, ainda que faça bom uso de certos convencionalismos narrativos – empregados com precisão para que o público se conecte com o escopo saudosista a que se propõe seguir. Aqui, Aja e Krel lidam com diversos obstáculos, incluindo a inesperada traição de seu protetor Varvatos Vex (Nick Offerman) e a quase destruição da nave-mãe, também conhecida como Mãe (Glenn Close). Em companhia da poderosa mercenária Zadra (Hayley Atwell) e do adorável cãozinho alienígena Luug, a dupla agora se vê sozinha para enfrentar as ameaças do espaço, devendo se organizar o mais rápido possível antes que Morando invada a Terra e dê um fim à linhagem real.

Todavia, nem tudo está perdido: felizmente, os irmãos contam com a ajuda de um irreverente e nem um pouco ortodoxo grupo de amigos que revelam suas habilidades bélicas para auxiliá-los nessa complicada jornada. Dentre eles, Toby (Charlie Saxton) retorna para mais um cross-over entre as duas séries complementares e ganha um protagonismo interessante que faz um ótimo uso de sua experiência beligerante; o valentão Steve (Steven Yeun) abandona sua personalidade evasiva e odiosa e se vê num enlace romântico com Aja, enquanto desenvolve uma agradável e surpreendente amizade com Eli (Cole Sand), auxiliando os extraterrestres nos mortais perigos que enfrentam do começo ao fim.

Ainda que a temporada se perca em tantas micronarrativas excessivas, Del Toro, em colaboração com seus usuais roteiristas, busca referências no próprio universo que criou e resolve fornecer um necessário amadurecimento para os dois protagonistas: afinal, Aja e Krel, ainda que inteligentes e sagazes, sempre tiveram tudo entregue de bandeja até fugirem para a Terra, exilando-se enquanto tramavam um plano ao lado da resistência para reclamar o trono que lhes pertencia por direito. Em um cenário caótico, suas personalidades crescem e atingem uma deliciosa independência que, assim como tudo na vida, vem com certo custo: é óbvio, pois, que a história se valesse de diversos sacrifícios e viradas incríveis, transformando inimigos em aliados e vice-versa.

Além da ameaça natal, o grupo enfrenta a constante necessidade de proteção desenfreada da Coronel Kubritz (Uzo Aduba), funcionária de alto escalação da área 49-B cuja principal missão é interceptar as atividades alienígenas e investigar tal tecnologia para uso próprio – ou seja, utilizar armas de fogo não existentes em solo terrestre para proteger nosso mundo de perigos cósmicos. Porém, Kubritz também é dotada de uma delineação corruptível e egocêntrica que não pensaria duas vezes em trabalhar ao lado daqueles que jurou exterminar para conseguir o que quer (nesse caso, Aja, Krel e a aparelhagem akaridiana). É interessante, dessa forma, observar como a Coronel se arrepende tarde demais, mergulhando num arco de redenção até esbarrar em uma trágica e chocante ruína.

Apesar da sutileza e da preocupação estética-narrativa, certos elementos de dinamização da iteração se valem muito das ocorrências eventuais, respaldando nos incríveis deus ex machina que tanto habitam as produções hollywoodianas. Num escopo geral, tais sequências ocasionais são pontuais, mas desenvolvem-se numa duração forte o suficiente para desconstruir a relação de causa e consequência entre os atos – isso sem falar que certas construções emocionais são falsas demais até para os telespectadores mais jovens.

Mesmo com deslizes perceptíveis, a segunda e última temporada de Os 3 Lá Embaixo é uma boa e aprazível aventura que termina de forma interessante, não se valendo de fórmulas para fornecer a resolução dos Irmãos Tarron. E, como se não bastasse, o novo ano também abre portas para a terceira parte dessa ótima antologia – cujo foco nos convidará mais uma vez a visitar os ocultos becos de Arcadia.

Os 3 Lá Embaixo: Contos da Arcadia – 2ª Temporada (3Below: Tales of Arcadia, EUA – 2019)

Criado por: Guillermo del Toro
Direção: Guillermo del Toro, Rodrigo Blaas, Johane Matte, Elaine Bogan, Andrew L. Schmidt
Roteiro: Guillermo del Toro, Aaron Eisenberg, Lila Scott
Elenco: Tatiana Maslany, Diego Luna, Nick Offerman, Glenn Close, Alon Aboutboul, Hayley Atwell, Uzo Aduba, Steven Yeun, Charlie Saxton, Cole Sand
Emissora: Netflix
Episódios: 13
Gênero: Animação, Aventura
Duração: 23 min. aprox.


Crítica | Dear White People: 3ª Temporada - Mais acidez e (muito) mais ironia

Ainda que a Netflix peque consideravelmente na relevância e na originalidade de algumas histórias originais, grande parte de seu catálogo seriado se desenrola em uma madura construção narrativa que nos deixa empolgados a cada novo episódio. Felizmente, é isso o que acontece com a ovacionada produção Dear White People, um ácido e necessário show da plataforma baseado no filme homônimo de 2014 que retornou para sua terceira temporada após um ano. E, como já era de se esperar, Justin Simien conseguiu entregar um novo ciclo com grande competência estética e técnica que, mesmo falhando em alguns aspectos, permanece nos guiando de forma honrável através de uma trama tragicômica e misteriosa.

Seguindo os passos da iteração original, o último season finale deu as cartas para os próximos dez capítulos ao levar Sam (Logan Browning) e Lionel (DeRon Horton) ao encontro do misterioso do Mestre da Ordem do X (Giancarlo Esposito) também conhecido como o Narrador. Na verdade, todos os eventos desenrolados nos episódios anteriores culminaram neste momento e, delineando-se do modo mais hilário e irreverente possível, acaba mostrando que a Ordem não existe mais, estando fragmentada pelos quatro cantos da Universidade de Winchester e escondida esperando a brecha certa para reinsurgir. O que, eventualmente, leva os nossos dois protagonistas a enterrarem esse caso sem saída e seguiram com as próprias vidas – e, três meses depois, Sam pareceu ter abandonado sua militância como porta-voz da comunidade negra, e Lionel se transformou em uma sex machine incontrolável.

É claro que a trama principal continua regendo implacavelmente sua orquestra ao mesmo tempo em que abre espaço para arcos secundários também ganharem expressividade. Troy (Brandon P. Bell) se juntou à machista revista Pastiche tarde demais para descobrir que sua organização não passa de uma extensão de qualquer monarquia autoritarista dos séculos passados, enquanto Joelle (Ashley Blaine Featherson) assume a apresentação do programa-título da série, ao mesmo tempo que lida com o recém-assumido relacionamento com o conturbado Reggie (Marque Richardson) e com o coração quebrado do insuportável Rashid (Jeremy Tardy). Coco (Antoinette Robertson), por sua vez, tenta desesperadamente conseguir uma carte de recomendação para seu intercâmbio em Paris e luta para não ceder à exaustão completa – além de ser presidente da Black Caucus local.

No geral, o terceiro ano explora com mais força os obstáculos que cada um dos protagonistas enfrente, seja num nível macro ou microcósmico: as questões raciais tão belamente sondadas nos capítulos predecessores deixam de ter protagonismo, enquanto os sarcásticos elementos ganham palanque ainda maior. De fato, Simien perde um pouco de sua identidade narrativa, apesar de construir novas joias televisivas bastante aprazíveis e chocantes: a produção inclusive se arrisca em ambiências antes não exploradas, alcançando um nível de metalinguagem divertida, mesmo que pedante em certos pontos (a própria Netflix faz brincadeiras sagazes consigo própria); mas os excessos estéticos de modo algum falam mais alto, servindo apenas como escapes cômicos ou base consecutiva para os personagens.

Os dez capítulos movem-se na mais pura fluidez, talvez pelo fato de serem arquitetados sobre pouco menos de trinta minutos. Não há muito melodrama a tomar conta dos holofotes, o que abre espaço para uma dinâmica sucessão de causas e consequências que envolve as personas – sem esquecer da inúmeras e bem-vindas adições ao elenco. Brooke (Courtney Sauls) é promovida a personagem regular e se afasta de sua construção extremamente metódica e workaholic, transformando-se em uma crível mulher passível de acertar e errar assim como todos os outros. Lionel continua a explorar sua sexualidade ao se envolver com novos amigos, incluindo o diabolicamente sedutor D’Unte (Griffin Matthews) e um paixão inesperada com Michael (Wade F. Wilson).

Apesar das emaranhas subnarrativas tangenciarem a saturação cênica, o incrível time criativo enfileira as relações de ação-reação com a máxima de cautela, abrindo espaço para um núcleo interessante que começa a se desenrolar a partir do sétimo episódio e envolve a controversa Muffy (Caitlin Carver) e o complexado Prof. Moses Brown (Blair Underwood), que aparece na universidade como um prospecto otimista para os alunos negros apenas para se revelar um hipócrita descarado que se aproveita de qualquer um que atravessa seu caminho.

Como se não bastasse, o seriado também encontra sucesso quanto às suas sutilezas diegéticas, criando uma proposital ambiguidade entre o que nos é explicado e o que vemos. Desde o princípio, o personagem de Esposito anuncia que Sam e Lionel precisam “matar o narrador”, mudando a organicidade do núcleo principal e, como preconizado, abandonado a presença de uma voz onisciente para guiar os protagonistas. Além disso, as investidas imagéticas criam uma envolvente e anacrônica ambientação que se vale de um filtro pastel e onírico que se afasta e se aproxima (num paradoxo delicioso) do panfletarismo documentários de tantas produções do gênero.

O novo ano de Dear White People pode até ser inferior aos predecessores, mas ainda faz um bom uso de ingredientes infalíveis para sua própria identidade, adicionando e retirando um tempero ou outro como forma de se renovar e não se render a uma obra medíocre. Mesmo com os pequenos erros, uma coisa é certa: no final das contas, o público vai querer repetir o prato (mais até do que deveria).

Dear White People – 3ª Temporada (Idem, Estados Unidos – 2019)

Criado por: Justin Simien
Direção: Justin Simien, Kevin Bray, Charlie McDowell, Kimberly Peirce, Salli Richardson-Whitfield, Steven Tsuchida, Janicza Bravo
Roteiro: Justin Simien, Chuck Hayward, Njeri Brown, Leann Bowen, Jack Moore, Yvette Lee Bowser, Nastaran Dibai 
Elenco: Logan Browning, Brandon P. Bell, DeRon Horton, Antoinette Robertson, John Patrick Amedori, Ashley Blaine Featherson, Giancarlo Esposito, Marque Richardson, Nia Jervier, Jemar Michael, Rudy Martinez, Caitlin Carver, Nia Jervier, Courtney Sauls, Griffin Matthews
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama, Comédia
Duração: 30 min.