Crítica | Malévola: Dona do Mal - Frustrante, Previsível e Confuso
O diretor Robert Stromberg havia imprimido sua perspectiva do clássico conto A Bela Adormecida em 2014, ao lançar um dos primeiros “remakes” em live-action dos estúdios Walt Disney, Malévola. Baseado no clássico conto de Charles Perrault, a perspectiva da história desta vez se voltava para a vilã, remontando às suas interessantes origens e culminando em um trágico conto de fadas às avessas. Entretanto, apesar das boas intenções, o filme falhou em manter a magia da narrativa original e foi carregado pela atuação impecável de Angelina Jolie como a personagem-titular. Agora, cinco anos depois do lançamento do primeiro longa-metragem, é a vez de Joachim Rønning mergulhar no mágico universo de Aurora e Malévola com a sequência Malévola: Dona do Mal.
Infelizmente, o resultado é tão esquecível e frustrante quanto a produção original – ainda que carregue o charme da iteração predecessora. De fato, é possível ver que Rønning também traz a melhor das intenções para as telonas, mas se perde no meio do caminho quanto ao ritmo e ao foco narrativo, transitando entre três grandes tramas e apressando-se para tentar concluí-las antes que os créditos subam. Nem mesmo o roteiro de Linda Woolverton aproveita as falhas que cometeu alguns anos atrás para se remodelar e se reinventar – na verdade, ela desliza exatamente nos mesmos aspectos e oscila de modo incompreensível entre o drama, a fantasia e a comédia.
Cinco anos depois da morte do Rei Stefan, Aurora (Elle Fanning) continua reinando como governanta do mágico povo intitulado Moors, enquanto Malévola (Jolie) emerge como uma distante protetora. A paz daquele místico reino, entretanto, sofre uma brusca mudança quando o Príncipe Philip (dessa vez interpretado por Harris Dickinson) decide pedir a mão de Aurora em casamento e celebrar, de uma vez por todas, a união de dois reinos separados há tanto tempo pelo medo e pela guerra. E é claro que isso desencadearia um ressentimento por parte de Malévola, fada-madrinha e mãe de criação da jovem garota, que a princípio se posta contra a cerimônia matrimonial, mas acaba cedendo às súplicas de sua protegida, cruzando os limites da floresta para conhecer os pais de Philip.
Se a sequência do jantar entre as duas famílias parece ter saído de um melodrama familiar qualquer, é porque é disso do que a estória de Woolverton se vale. Acompanhada por Micah Fitzerman-Blue e Noah Harpster, a roteirista desenvolve uma coerente expansão da rivalidade entre Malévola e a Rainha Ingrith (uma desperdiçada Michelle Pfeiffer), que explode em ameaças, maldições e uma tentativa de assassinato – tudo convergido para um frenesi imagético que beira a incompreensão visual. Depois dessa histeria cênica, o ritmo recua mais uma vez para o momento em que a poderosa fada enfrenta sua ruína e quase morre, atingida por uma bala de ferro.
Se você achou que a rivalidade seria o único mote do longa, sinto lhes informar que está enganado: certamente a premissa toma conta do escopo principal, mas ele se ramifica em diversas outras subtramas, incluindo o encontro de Malévola com outras criaturas de sua raça, refugiada devido à ação dos humanos em uma caverna que parece ter saído da maleta de Newt Scamander em Animais Fantásticos e Onde Habitam; o trauma de Ingrith, que observou impotente sua família ser destruída pela força descomunal dos Moors; a busca por independência de Aurora e suas tentativas fracassadas de consertar o que está estilhaçado; e uma expansão mitológica medíocre que pode até agradar parte do público, mas falha em se aprofundar onde deveria.
A continuação não é de todo desperdiçada e fragmentada. Mais uma vez, a equipe de direção de arte e de maquiagem faz um excepcional trabalho ao caracterizar com proeza seus personagens e os variados cenários, variando até mesmo as tonalidades da fotografia e da paleta de cores em prol de fornecer aos espectadores uma determinada sensação. Dito isso, a sinestesia bucólica que se desprende de alguns coadjuvante – como a pontual presença de Conall (Chiwetel Ejiofor) – morre na praia e serve apenas como um fraco impulso para as reviravoltas do terceiro ato. A batalha final, que eventualmente culmina na aparente morte de Malévola, é coreografada com certo preciosismo, mas não chega aos pés da primeira guerra do filme predecessor e dá uma impressão inacabada, como se Woolverton e seus colaboradores tivessem perdido a inspiração e se aproveitassem dos clichês de contos de fada para concluir a jornada.
Malévola: Dona do Mal é uma continuação que ninguém pediu, mas que todos estavam esperando ser melhor que a obra de 2014. Seria melhor que o time por trás da produção tivesse simplesmente apagado o que foi feito no passado e ter dado início a uma aventura nova, refrescante, sem cair nas mesmices mercadológicas dos remakes em live-action da Disney. Entretanto, não foi isso que aconteceu – e não acho provável que Angelina Jolie se prestará ao papel de voltar para uma trilogia.
Malévola: Dona do Mal (Maleficent: Mistress of Evil – EUA, 2019)
Direção: Joachim Rønning
Roteiro: Linda Woolverton, Noah Harpster, Micah Fitzerman-Blue
Elenco: Angelina Jolie, Michelle Pfeiffer, Elle Fanning, Harris Dickinson, Sam Riley, Chiwetel Ejiofor, Robert Lindsay, Imelda Staunton, Juno Temple
Duração: 118 min.
https://www.youtube.com/watch?v=EQvOkjxsO0k
Crítica | A Lavanderia - Ou Pegue-Me Se For Capaz
Crédito é o tempo futuro do dinheiro.
É com essa premissa que A Lavanderia, novo filme de Steven Soderbergh, abre; e, se estamos trazendo dinheiro para a trama principal de um longa-metragem, temos dois caminhos que podem ser percorridos pela narrativa: o bom e o péssimo.
Infelizmente, a produção baseada no romance de não-ficção Secrecy Papers, de Jake Bernstein, escolhe a segunda opção e transforma uma tragicomédia derivada do aclamado e aplaudível A Grande Aposta em uma jornada vazia e que trata um dos maiores escândalos dos últimos como um jogo de esconde-esconde e de perguntas e respostas sem qualquer didatismo – liderado por um elenco de ponta que parece não demonstrar o menor interesse em interpretar seus papéis. É claro que podemos perceber as boas intenções do diretor em trazer uma interessante trama para a Netflix, mas não podemos fazer vista grossa para os múltiplos e amadores erros que eventualmente se transformam em uma incontrolável bola de neve (e isso vendo de alguém que nos apresentou a franquia Onze Homens e Um Segredo).
Levando em conta que Soderbergh parece ser alguém aficionado por dinheiro e por aquilo que as notas e moedas representam na sociedade contemporânea, é quase automático elevarmos nossa expectativa para uma produção deste calibre. Ainda que feita para uma plataforma mais acessível e mais maleável que as estruturas oligárquicas do cinema, era de esperar que, da mesma forma como Alfonso Cuarón fez com Roma no ano passado, ele se dispusesse a encontrar uma outra perspectiva para delinear a história. No caso, o cineasta até alcança esse primeiro objetivo ao centrar o primeiro ato na perspectiva de uma idosa senhora chamada Ellen Martin (Meryl Streep), que perdeu seu marido durante o naufrágio de uma pequena balsa e se envolveu com a podre esfera do mercado de seguros.
Porém, chamá-la de protagonista é um grande erro: Streep, conhecida por ser uma das melhores atrizes de sua geração, divide a cena com outras dezenas de personagens que, no final das contas, não têm qualquer relação imediata com o que o roteiro de Scott Z. Burns quer nos passar; na verdade, o que percebemos é uma circinal e convulsiva tentativa de transformar um tema complexo em algo compreensível por todos os nichos de espectadores. E essa praticidade vista com tanto esmero em outras obras do gênero acaba se valendo de fórmulas e mais fórmulas para voltar à estaca zero e entregar uma redundante explicação sobre o nada – deixando o filme mais vazio do que realmente aparenta.
Enquanto Soderbergh ousa mergulha no complicado mundo das seguradoras, dos empréstimos e dos financiamentos, percebe-se também que essa excessiva cautela drena a originalidade estética do longa e não cultiva um terreno muito fértil para o afastamento de jogos de câmera dramáticos. É claro que uma ou outra sequência apela por planos mais audaciosos, abrindo um ínfimo espaço para algo que tangencia o documental. Todavia, esses resvales também ocasionam um prosaísmo um tanto quanto vulgar, cru, que parece não ter passado pelas últimas etapas de lapidação antes de ser lançado aos espectadores.
O mesmo pode ser visto na dupla de contistas que nos apresenta à empreitada: diferente das intervenções produzidas por Adam McKay em sua obra supracitada, A Lavanderia é guiada por Antonio Banderas e Gary Oldman, que também interpretam os presidentes do escritório de advocacia Mossack-Fonseca. Além de premeditarem as outras linhas narrativas, eles carregam consigo uma ácida ironia que abusa de diálogos que beiram o vitimismo, como se, do começo ao fim, soubessem que não tiveram nada a ver com os escândalos e as fraudes e não devessem explicações aos seus clientes e às pessoas a que causaram muito mal. O problema reside, ademais da química inexistente entre os dois atores, na risível performance, principalmente de Oldman (que arrisca um sotaque alemão caricato o bastante para não conseguirmos levá-lo a sério).
É até mesmo complicado encontrar um meio de resumir a história. Ellen descobre que a seguradora conhecida como United, a priori responsável pelo custeio das dezenas de mortes que ocorreram na tragédia da balsa, não existe. Ela funciona como uma offshore, uma concha de uma empresa-fantasma que atua apenas no papel e que foi assinada por qualquer um das centenas de funcionários da Mossack-Fonseca (talvez a única instância que reúna as tantas e desnecessárias investidas dramáticas). Ou seja, nada que consiga provar qualquer coisa caso você recorra à justiça.
Entre cenas soltas e sem sentido para uma densa atmosfera, o final caminha para um “final feliz” e até faz uma infame menção ao caso brasileiro da Odebrecht – que também estava relacionada a todo esse escândalo. Entretanto, o sabor agridoce passa longe de ser construtivamente ambíguo e, sem qualquer sinceridade no breve monólogo que desponta de Meryl Streep nos momentos finais, reafirma a posição do filme de ter saído de nenhum lugar para lugar nenhum.
A Lavanderia (The Laundromat – EUA, 2019)
Direção: Steven Soderbergh
Roteiro: Scott Z. Burns, baseado no livro de Jake Bernstein
Elenco: Meryl Streep, Gary Oldman, Antonio Banderas, Sharon Stone, Larry Clarke, David Schwimmer, Marsha Stephanie Blake, Jeffrey Wright
Duração: 95 min.
https://www.youtube.com/watch?v=ol58GiV_SmI
Crítica | (Des)Encanto: 1ª Temporada - Parte 2 - A Ascensão e a Queda de Tiabeanie
Se Matt Groening se viu diante de um complicado terreno na construção da primeira parte de (Des)Encanto e falhou de maneiras amadoras, por assim dizer, é fato comentar que a segunda leva de episódios representou uma considerável melhora para a qualidade da série. Na parte final de sua temporada de estreia, o showrunner e criador – que conquistou o público com a sagaz e ácida narrativa de produções como Futurama e Os Simpsons – nos convida para retornar à mística e um tanto quanto diferente Terra dos Sonhos (também conhecida como Dreamland), oferecendo a seu público os corolários de uma traição inesperada que colocou todo o reino à mercê da poderosa e recém-trazida à vida Rainha Dagmar (Sharon Horgan).
Para aqueles que não se recordam, a jovem e rebelde princesa Tiabeanie (Abbi Jacobson), apelidada de Bean, teve que fazer uma difícil escolha entre salvar a mãe, Dagmar, condenada a viver o resto de seus dias na forma de pedra por causa de um poderoso feitiço; ou Elfo (Nat Faxon), seu inocente e crédulo companheiro de viagens que esteve ao seu lado desde o princípio de sua jornada. Por sentir falta de uma figura materna em sua vida, Bean acabou escolhendo a primeira opção, mas não percebeu que Dagmar, na verdade, era a vilã da história. Sem deixar que os outros descobrissem, ela transformou todo o continente em pedra, deixando para trás seu marido, Zog (John DiMaggio), e levando a filha para a longínqua Maru.
É a partir daí que a história se desenrola e toma o que só podemos encarar como pouco tempo do que realmente esperaríamos: afinal, a anti-heroína protagonista se vê em uma espécie de segunda casa, obrigando a si mesma a se adaptar a um mundo abandonado, sem a companhia de seus amigos e tendo como únicos confidentes a mãe e os tios, feiticeiros da primeira parte que volta e meia apareciam para tentar controlar o destino de Bean – e que também invocaram o demônio Luci (Eric Andre) para corrompê-la. Entretanto, em meio a apressadas revelações e a reviravoltas incríveis (no sentido epistemológico do termo), ela se livra de um destino pior que a morte e decide abandonar esse lado da família em prol daqueles que verdadeiramente a amaram.
A princípio, Groening e seu time de roteiristas voltam a cometer deslizes óbvios, pecando inclusive no tocante ao envolvimento do público: as tramas e subtramas se aglutinam em um mesmo lugar de forma incompreensível, tomando forma apenas no momento em que Bean enfrenta Dagmar e decide se envolver numa missão para resgatar Elfo – e que a leva direto para o Inferno. Com a adição dessa não tão complexa subtrama, a série em si começa a retornar para os eixos e progride até culminar em um interessante season finale – tão interessante quanto o seu predecessor.
Em meio aos rápidos dez episódios (cujas construções são pensadas justamente para não cansar os espectadores), o nada ortodoxo trio de amigos também passa por um compreensível e muito bem-vindo amadurecimento que os obriga de forma quase imperceptível a abandonar certos aspectos de personalidade. Entretanto, não pense que o roteiro se vale de convencionalismos ou fórmulas prontas para permitir que isso ocorra: na verdade, tais sutilezas são engolfadas sem quaisquer escrúpulos em ácidos diálogos e em fragmentos que, na maioria das vezes, dizem muito mais do que nossos olhos podem ver. E não é surpresa, pois, que a produção em si mergulhe em uma deliciosa metalinguagem, abrindo espaço para que seu idealizador referencie a si mesmo sem se render a um completo e exagerado saudosismo cênico.
À medida que Bean percebe que sempre estará conectada à Terra dos Sonhos (não importe o quanto tente fugir de seu destino), ela se envolve em um recorrente desejo de independência, afastando-se de seus deveres como membro da Família Real e buscando por algo que realmente lhe dê prazer. Como resposta, Groening arquiteta em um breve capítulo uma jornada com começo, meio e fim no meio teatral – aproveitando a proposital e anacrônica modernidade de suas loucuras para debater acerca de temas como desigualdade de gênero e feminismo.
Se o show peca no tocante à própria fluidez, ao menos não transforma suas controversas mensagens em um panfletário monólogo – exceto por obviedades que adicionam certos elementos dramáticos aos arcos de cada personagem. A adição constante de coadjuvantes, na verdade, serve como estrutura arquetípica para o desenrolar das tramas, até mesmo para o esquecido Derek (Tress MacNeille), o príncipe-anfíbio herdeiro do trono. E, em uma relação de causa e consequência adornada com certos fillers próprios de uma delineação antológica (já vista em iterações similares), não podemos deixar de nos chocar com a insurgência dos surpreendentes episódios finais.
Além de expandir a mitologia e cultivar um terreno para anos futuros, a segunda parte de (Des)Encanto representa um considerável progresso para essa distorcida e hilária perspectiva das famosas “novelas de cavalaria”. Se não acerta em todos os aspectos, como fica claro em gritantes, porém pontuais momentos, ao menos Matt Groening colabora para nos deixar animados para as próximas temporadas. E, no final das contas, é isso o que realmente importa.
(Des)Encanto – 1ª Temporada: Parte 2 ((Dis)Enchantment, EUA – 2019)
Criado por: Matt Groening
Direção: Wesley Archer, Frank Marino, David D. Au, Peter Avanzino, Albert Calleros, Dwayne Carey-Hill, Brian Sheesley, Ira Sherak
Roteiro: Matt Groening, John Weinstein, Jamie Angell, Jeff Rowe, Shion Takeuchi, Jeny Batten, David X. Cohen, M. Dickson, Rich Fulcher, Reid Harrison, Eric Horsted, Bill Oakley, Patric M. Verrone
Elenco: Abbi Jacobson, Eric André, Nat Faxon, John DiMaggio, Tress MacNeille, David Herman, Maurice LeMarche, Sharon Horgan
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Comédia, Animação, Fantasia
Duração: 30 min. aprox.
Guia de Episódios | American Horror Story - 9ª Temporada: 1984
Confira nossas críticas semanais da 9ª e penúltima temporada da antologia American Horror Story, criada por Ryan Murphy e Brad Falchuk.
09x01: CAMP REDWOOD
Publicado originalmente em 20 de setembro de 2019.
09x02: MR. JINGLES
Publicado originalmente em 27 de setembro de 2019.
American Horror Story – 9ª Temporada: 1984 (Idem, 2019 – EUA)
Criado por: Ryan Murphy, Brad Falchuk
Direção: Bradley Buecker
Roteiro: Ryan Murphy, Brad Falchuk
Elenco: Emma Roberts, Billie Lourd, Cody Fern, Leslie Grossman, Matthew Morrison, Gus Kenworthy, John Carroll Lynch, Angelic Ross, Zach Villa, DeRon Horton
Emissora: FX
Episódios: 10
Duração: aprox. 45 minutos por episódio
Crítica | Presas no Paraíso - Das Metáforas Vencidas
Muito antes do cinema, a literatura já era apaixonada por criar futuros distópicos, pós-apocalípticos e caóticos que submetiam a raça humana (ou que havia sobrevivido dela) a situações degradantes, mascaradas com a promessa de um futuro promissor. Desde Admirável Mundo Novo até 1984, diversos romances conquistaram os corações de seu público e, pouco tempo depois, invadiram as telonas com obras-primas da esfera do entretenimento – uma delas, Metrópolis, é inclusive referenciada por diversos autores e diretores da contemporaneidade.
Nos últimos anos, a esfera cinematográfica foi invadida por uma quantidade absurda de adaptações de romances jovem-adultos que partiam de uma premissa similar e, enquanto alguns alcançavam sucesso em entregar uma mensagem competente e reflexiva (como Jogos Vorazes), outros se rendiam a metáforas que se engasgavam com o próprio vazio (como Divergente). Levando em conta a gritante oscilação de tal gênero, a cineasta Alice Waddington resolveu se propor a reinventar essas narrativas, abrindo espaço para um hibridismo interessante com sua estreia em longa-metragem, Presas no Paraíso. Entretanto, o promissor resultado, na verdade, se respalda em uma trama monótona, sem coerência ou coesão estrutural que vale a pena mais por suas competentes escolhas artísticas que pelo tour-de-force que tenta recriar.
O filme gira em torno de uma jovem rebelde chamada Uma (Emma Roberts), que acorda em uma misteriosa sala e, após encontrar uma brecha para escapar, descobre que está “presa” na ilha-titular, uma espécie de reformatório para que jovens ricas aprendam valores tradicionalistas e patriarcais e se transformem em damas da alta sociedade e deixem para trás suas condenáveis personalidades. O lugar é comandado pela Duquesa (Milla Jovovich), uma solene mulher que pode se provar mais austera do que sua compostura impecável pretende revelar – mas o paradisíaco refúgio esconde segredos terríveis que podem manter Uma e suas recém-feitas amigas prisioneiras por mais tempo do que desejam.
A iteração, no caso, funciona como reflexo da sociedade machista em que vivemos e como as mulheres são submetidas, consciente ou inconscientemente, a mudanças absurdas para agradarem tanto a seus maridos quanto a famílias que se importam muito mais com o status no qual se inserem do que qualquer outra coisa. Uma, no caso, se recusa a casar com o pretendente que sua mãe lhe escolheu e agora se vê sob os cuidados da Condessa – mas ela não é a única a estar lá contra sua vontade: temos também Chloe (Danielle Macdonald), que deve ser transformada em uma espécie de pageant queen, e Yu (Awkwafina), cujos avós não querem uma neta impetuosa vivendo sob o mesmo teto que eles. E, para completar, temos a famosa cantora Amarna (Eiza González), recuperando-se em meio a um onírico santuário depois de uma crise identitária.
Desde o princípio, Waddington, que também fica responsável pelo argumento do filme, mostra sua preferência por transcrever os temas explorados por Aldous Huxley ainda em 1931, incluindo a estratificação social e a condenação das camadas menos abastadas a todo e qualquer tipo de serviço – mesmo que isso seja revelado apenas no terceiro ato. Os toques feministas eventualmente culminam em uma maturação essencial para a protagonista, apesar de sua complexidade ser ofuscada pelas limitações performáticas de Roberts (que vale muito de personagens interpretados em American Horror Story e até mesmo Pânico 4). Aliás, todo o escopo carrega consigo uma profundidade muito maior do que poderíamos esperar, mas falha em arquitetar vias sólidas o suficiente para alcançar o que almeja.
A estética visual de Presas é aplaudível do começo ao fim: a diretora escolhe a dedo a equipe imagética e opta por uma paleta de cores cuja impressão pastel funciona como ilusão para o jogo entre tons mais brutos que se isolam numa atemporalidade contraditória bastante bem-vinda – e isso é refletido também nos icônicos figurinos que recuperam as glórias de uma Inglaterra vitoriana perdida no tempo, em um futuro não tão distante que não consegue se desvencilhar do passado. Todavia, com exceção desse cuidadoso requinte, todo o restante mergulha em impossíveis clichês que se reúnem sob um mesmo teto apenas para dar alguma breve sensação de mobilidade à trama.
Waddington perde a mão após um promissor ato introdutório, misturando sem quaisquer escrúpulos comédia, drama e romance, além de introduzir coadjuvantes desnecessários para a narrativa em si. E, por causa dessas adições dispensáveis, as subtramas praticamente não existem, exigindo que Roberts carregue todo o peso dramático e crie uma força-motriz para se igualar ao que Jovovich ao menos deveria representar; a verdade é que nenhuma delas (e nem mesmo as já conhecidas habilidades das outras atrizes) parece disposta o suficiente para sair da zona de conforto, transformando o que poderia ser uma bela alegoria contemporânea em um vórtice datado e sem propósito algum.
As coisas pioram ainda mais quando o roteiro enfia inesperadamente um twist sobrenatural e desenvolve explicações ridículas, para não dizer risíveis. Não é surpresa que, no final das contas, Presas no Paraíso não funcione em quase nenhum aspecto e tente mascarar seus múltiplos e amadores erros com visuais de tirar o fôlego – porém, não o bastante para deixá-lo aprazível o suficiente.
Presas no Paraíso ( Paradise HIlls – EUA, 2019)
Direção: Alice Waddington
Roteiro: Brian DeLeeuw, Nacho Vigalondo, Alice Waddington
Elenco: Eiza González, Awkwafina, Milla Jovovich, Emma Roberts, Danielle Macdonald
Duração: 95 min.
Crítica | Pose: 2ª Temporada - A Acidez Narrativa de Ryan Murphy
No ano passado, Ryan Murphy investia seus esforços em uma nova série para a FX e se afastava do drama e do terror de suas produções antológicas: com Pose, o work-a-holic showrunner nos convidava a voltar algumas décadas no tempo, estacionando nos conturbados anos finais da década de 1980 e começo dos anos 1990, mais precisamente nos ballrooms que tanto lotaram as boates LGBTQ+ de Nova York. Aqui, a ideia era explorar a cultura criada pelas mulheres transgêneros negras e latinas que não se conformavam com a marginalização excessiva de sua comunidade e encontraram voz numa expressiva arte que até hoje é relembrada e cultuada por grande parte da sociedade – mesmo que se esqueça de suas duras origens.
Agora, chegamos à aguardada segunda temporada, na qual Murphy e seu time de excelentes diretores e roteiristas abrem as portas para nos apaixonarmos e nos comovermos com personagens extremamente complexas e que refletem um preconceito que mesmo hoje é enraizado na comunidade em que vivemos. E, se o ano anterior insurgiu como panfleto político para conhecermos a história de homens e mulheres batalhadores que não aceitavam os rótulos que lhes eram enfiados, o novo ciclo ganha um palanque ainda maior – ainda mais levando em conta que a narrativa em questão deu um salto no tempo para refletir a massificação da cultura apresentada (incluindo a famosa dança popularizada e apropriada por Madonna, conhecida como vogue).
É necessário, a priori, traçar um paralelo entre o antes e o depois. Nos primeiros oito capítulos, fomos apresentados a um conflito interno e externo entre os protagonistas que refletia uma construção decadente, salvo exceção pelo momento em que cada um deles se rendia às artes dos bailes e tinha a chance de brilhar nos holofotes. Normalmente, o conflito de gerações recebia uma atenção mais especial, servindo de força-motriz para que as tramas e subtramas se desenrolassem com maior palpabilidade; agora essa momentânea apresentação encontra uma nova camada, um respaldo muito maior do que poderíamos imaginar conforme os personagens principais amadurecem exponencialmente e começam a perseguir seus sonhos em um cenário caótico e conturbado no qual a confiança é um dos principais elementos de sobrevivência.
De um lado, Blanca (Mj Rodriguez) mantém seus filhos na linha e serve de guia para que cada um alcance o que sempre desejou: Angel (Indya Moore) eventualmente é contratada para ser modelo de uma grandiosa agência de modelos, enquanto Damon (Ryan Jamaal Swain) está prestes a se formar na prestigiada academia de dança New School of Dance e, depois de alguns tropeços inter-pessoais com membros de sua própria família, acaba viajando para Paris e se torna um grande coreógrafo; e a própria Blanca vê, ainda que momentaneamente, seu sonho de abrir uma manicure e pedicure tomando forma até um desastre pré-planejado torná-lo poeira. Entretanto, enquanto todos esses acontecimentos parecem aglutinados uns aos outros, Murphy e sua equipe fazem questão de que tudo seja minuciosamente construído, mesmo cedendo a algumas repetições desnecessárias.
Enquanto isso, Elektra (Dominique Jackson) pula de casa em casa, se sentindo traída pelas próprias filhas que salvou da total ruína, mas reergue-se como uma poderosa mulher dominatrixque utiliza toda sua beleza e sua sedução a favor próprio. Não é surpresa que a incorrigível personagem transforme-se em uma versão mais acida de si mesma, ao mesmo tempo que recua alguns passos para cuidar das pessoas que ama. Sua sarcástica complacência, na verdade, é dotada de uma persistente compaixão que não suporta ver suas irmãs e filhas sofrerem (mas também não abre mão de uma boa fofoca).
Em meio a esses problemas aparentemente “comuns”, cada uma das personas lida com pesarosos dialogismos com a realidade, incluindo a crescente viralização do HIV, a homofobia e a transfobia cometidas pela comunidade heterossexual dos Estados Unidos e do mundo, e o fato de lidarem com perdas sem deixar se levar pelas ruínas do luto: é nesse contexto que Billy Porter alça voo com uma provocante e propositalmente controversa performance que libera as fragilidades de seu personagem, Pray Tell, digladiando com seus demônios interiores e fazendo denúncias extremamente necessárias. Também é dentro dessa esfera que Candy (Angelica Ross) é brutalmente assassinada em uma espécie de sacrifício para reunir pessoas outrora separadas por divergências idiotas, por assim dizer.
É inegável dizer que a segunda temporada se afasta da esperada guinada narrativa para focar mais um intimismo melodramático que, por vezes, é explorado além do que deveria; felizmente, tal estética novelesca é ofuscada pelas brilhantes atuações de cada membro do elenco e pela agonizante trajetória de amadurecimento que os personagens sofrem – seja com mentiras, traições e reviravoltas aplaudíveis e de nos arrancar o fôlego. Mais que isso, a série retoma a necessidade de fornecer voz a minorias sociais e mostrar uma apaixonante perspectiva propositalmente varrido para debaixo do tapete.
Não é surpresa que Pose mantenha o nível de excelência de seu ano de estreia: afinal, Ryan Murphy, em colaboração com grandes nomes da indústria do entretenimento, prestam homenagem a uma época que, do mesmo jeito que foi marcada pela dúvida e pela falta de prospecção pessoal, brilhou com personalidades marcantes que merecem uma segunda chance – e nosso completo e incondicional amor.
Pose – 2ª Temporada (Idem, EUA – 2019)
Criado por: Ryan Murphy, Brad Falchuk
Direção: Ryan Murphy, Nelson Cragg, Gwyneth Horder-Payton, Silas Howard, Janet Mock, Tina Marbry
Roteiro: Ryan Murphy, Steve Canals, Brad Falchuk, Janet Mock, Our Lady J
Elenco: Mj Rodriguez, Dominique Jackson, Evan Peters, Kate Mara, James Van Der Beek, Billy Porter, Indya Moore, Ryan Jamaal Swain, Charlayne Woodard, Angelica Ross
Emissora: FX
Episódios: 10
Gênero: Drama
Duração: 60 min. aprox.
Crítica | Ma - Um Grande Erro da Blumhouse
A Blumhouse Production ganhou exponencial território na indústria cinematográfica contemporânea pela gama considerável de ótimos filmes de terror, suspense e thriller que nos entregou desde seu surgimento nos anos 2000. Em seus dezenove anos de existência, o fundador da companhia, Jason Blum, deu início à franquia found-footage Atividade Paranormal, nos convidou para uma perseguição psicológica com O Presente, misturou gêneros a priori excludentes entre si com a mini-franquia A Morte Te Dá Parabéns e reviveu Michael Myers e Laurie Strode com o reboot-continuação da icônica saga Halloween (além de anunciar mais dois longas-metragens para os próximos anos). Entretanto, é inegável dizer que a maré de sorte não necessariamente é inquebrável – algo que foi provado mais uma vez pelo lançamento de Ma, estrelando Octavia Spencer e um elenco de adolescentes extremamente esquecível.
A nova obra é comandada por Tate Taylor, que roubou nossas atenções com a adaptação de Histórias Cruzadas alguns anos atrás. O drama tour-de-force ambientado numa pequena cidade do interior estadunidense recebeu inúmeras indicações ao Oscar e já preparou terreno para que o diretor perseguisse seu próximo projeto – e ele, no caso, é uma espécie de terror intimista de baixo orçamento que faz terrível uso de absolutamente tudo do que se dispõe. Na verdade, é até estranho compararmos as duas obras e perceber em uma grande infelicidade como Taylor errou feio ao canalizar seus esforços para um longa-metragem artificial e extremamente problemático.
Spencer dá vida à personagem-titular, conhecida também como Sue Ann. Eventualmente, ela cruza caminho com um grupo de jovens estudantes que a convence a comprar bebidas numa pequena loja, e logo eles começam a desenvolver uma espécie de relacionamento passivo-agressivo em que Ma oferece a eles o porão da própria casa para que deem festas e se divirtam sem serem incomodados por adultos. Isso é, até Maggie (Diana Silvers) perceber que a solitária mulher tem um comportamento mais bizarro do que o normal e pode estar escondendo segredos mortais – o que se confirma conforme nos aproximamos do terceiro e último ato. O problema é que a relação de causa e consequência dos acontecimentos principais é justificada de modo tão incrível (no sentido ruim da palavra) que chega a ser uma tarefa impossível se conectar tanto com a narrativa pifiamente arquitetada quanto com a performance medíocre de seus atores.
De fato, de nada adianta um elenco de ponta formado por Spencer, Luke Evans, Allison Janney, Missy Pyle e outros se a ideia é eliminá-los em uma excessiva necessidade de abraças todo e qualquer elemento do gênero explorado. A princípio, não conseguimos entender a obsessão de Ma em relação às crianças e, do início até os créditos finais, as resoluções para cada um dos personagens é tão forçada que continua sem fornecer uma explicação plausível sequer: ao que tudo indica, ela foi a mesma escola que todos os pais de seus “novos amigos” e foi humilhada por cada um deles, permanecendo décadas tramando um plano de vingança (não que isso realmente seja verdade, visto que nem mesmo os fragmentados flashbacks conseguem explanar a distorcida personalidade de Sue Ann) cuja periculosidade é prevista logo de cara.
Se Taylor explorou bem questões de foreshadowing em sua obra anterior, falhou por completo nessa investida fílmica: certas sequências, como a que envolve uma pulseira de ouro ou os brincos de Maggie, mergulham com tanta força nos prenúncios cênicos que acaba por revelar sua importância para os atos consecutivos. As brincadeiras contrastantes apresentadas com esmero considerável em iterações do terror ou do thriller deixam de existir em prol de redundâncias estéticas que se expandem para o roteiro intangível assinado pelo diretor e por Scotty Landes.
Nem mesmo as mensagens subliminares se restringem ao núcleo a que pertencem, sendo puxadas para o primeiro plano para amarrar certas pontas soltas (a questão aqui são quais pontas, visto que o conto é tão elucidativo que não deixa questões abertas para deleite ou confusão proposital do público). Dessa forma, não poderíamos também esperar que os diálogos e a construção dos arcos auxiliassem na performance dos atores principais: Spencer se rende a uma monótona e convencional entrega de uma psicótica e traumatizada mulher de meia idade; Silvers é a final girl sem sal que mal sofre arranhões ou foge de sua bolha tão exaustivamente repetida no cinema; Corey Fogelmanis dá vida a Andy, um rapaz que, na verdade, não tem importância significativa para o dinamismo narrativo; a única que consegue ao menos desviar nossa atenção é McKaley Miller como Haley, amiga de Maggie que representa a rebeldia rechaçada por Ma – mas nada que seja aproveitado o suficiente.
Ma é um filme incômodo por todos os motivos errado: poucas coisas se salvam nessa mixórdia inexplicável de ambiguidades artísticas e técnicas, e nem mesmo a aplaudível Octavia Spencer salva o longa de se render a tantos deslizes amadores. Ao menos o saldo da Blumhouse continua positivo – e esperamos que tais erros sejam meticulosamente prevenidos para as próximas obras.
Ma (Idem – EUA, 2019)
Direção: Tate Taylor
Roteiro: Tate Taylor, Scotty Landes
Elenco: Octavia Spencer, Luke Evans, Diana Silvers, Juliette Lewis, McKaley Miller, Corey Fogelmanis, Gianni Paolo, Allison Janney, Missi Pyle, Tanyell Waivers
Duração: 99 min.
https://www.youtube.com/watch?v=lM1ZsO3Cv3o
Crítica | Os 3 Lá Embaixo: 2ª Temporada - Dos Desejos Mais Profundos
Seguindo os passos de sua série predecessora, Guillermo Del Toro resolveu que estava na hora de amarrar as pontas soltas e finalizar mais um capítulo situado na icônica e estranha cidadezinha de Arcadia. Foi com uma inesperada surpresa que o criador da homônima produção Contos da Arcádia retornou pela quinta vez ao sobrenatural cenário para focar na última aventura dos irmãos reais Aja (Tatiana Maslany) e Krel (Diego Luna), enquanto decidem não fugir mais da mortal perseguição na qual se engajaram há pouco tempo e enfrentar o temido e tirano General Morando (Alon Aboutboul) – cujo principal objetivo é se tornar o único governante de todas as galáxias.
Entretanto, diferente das outras iterações que compõe essa mística antologia, a segunda temporada de Os 3 Lá Embaixo carece do mesmo brilho da nostálgica originalidade que fez com que nos apaixonássemos à primeira vista: em outras palavras, se Del Toro e sua equipe criativa tangenciou a perfeição com Caçadores de Trolls e abriu portas para mais uma memorável aventura, o time parece perder a mão por breves momentos antes de engatar um enérgico e dinâmico desenlace que culmina em um incrível season finale. Na verdade, boa parte dos episódios insurge como fillers que, apesar de ganharem pontos pela cautela artística e identitária, são desnecessários quando analisados mais a fundo.
De fato, a hora e a vez dos Irmãos Tarron se afasta da desejada conclusão épica, ainda que faça bom uso de certos convencionalismos narrativos – empregados com precisão para que o público se conecte com o escopo saudosista a que se propõe seguir. Aqui, Aja e Krel lidam com diversos obstáculos, incluindo a inesperada traição de seu protetor Varvatos Vex (Nick Offerman) e a quase destruição da nave-mãe, também conhecida como Mãe (Glenn Close). Em companhia da poderosa mercenária Zadra (Hayley Atwell) e do adorável cãozinho alienígena Luug, a dupla agora se vê sozinha para enfrentar as ameaças do espaço, devendo se organizar o mais rápido possível antes que Morando invada a Terra e dê um fim à linhagem real.
Todavia, nem tudo está perdido: felizmente, os irmãos contam com a ajuda de um irreverente e nem um pouco ortodoxo grupo de amigos que revelam suas habilidades bélicas para auxiliá-los nessa complicada jornada. Dentre eles, Toby (Charlie Saxton) retorna para mais um cross-over entre as duas séries complementares e ganha um protagonismo interessante que faz um ótimo uso de sua experiência beligerante; o valentão Steve (Steven Yeun) abandona sua personalidade evasiva e odiosa e se vê num enlace romântico com Aja, enquanto desenvolve uma agradável e surpreendente amizade com Eli (Cole Sand), auxiliando os extraterrestres nos mortais perigos que enfrentam do começo ao fim.
Ainda que a temporada se perca em tantas micronarrativas excessivas, Del Toro, em colaboração com seus usuais roteiristas, busca referências no próprio universo que criou e resolve fornecer um necessário amadurecimento para os dois protagonistas: afinal, Aja e Krel, ainda que inteligentes e sagazes, sempre tiveram tudo entregue de bandeja até fugirem para a Terra, exilando-se enquanto tramavam um plano ao lado da resistência para reclamar o trono que lhes pertencia por direito. Em um cenário caótico, suas personalidades crescem e atingem uma deliciosa independência que, assim como tudo na vida, vem com certo custo: é óbvio, pois, que a história se valesse de diversos sacrifícios e viradas incríveis, transformando inimigos em aliados e vice-versa.
Além da ameaça natal, o grupo enfrenta a constante necessidade de proteção desenfreada da Coronel Kubritz (Uzo Aduba), funcionária de alto escalação da área 49-B cuja principal missão é interceptar as atividades alienígenas e investigar tal tecnologia para uso próprio – ou seja, utilizar armas de fogo não existentes em solo terrestre para proteger nosso mundo de perigos cósmicos. Porém, Kubritz também é dotada de uma delineação corruptível e egocêntrica que não pensaria duas vezes em trabalhar ao lado daqueles que jurou exterminar para conseguir o que quer (nesse caso, Aja, Krel e a aparelhagem akaridiana). É interessante, dessa forma, observar como a Coronel se arrepende tarde demais, mergulhando num arco de redenção até esbarrar em uma trágica e chocante ruína.
Apesar da sutileza e da preocupação estética-narrativa, certos elementos de dinamização da iteração se valem muito das ocorrências eventuais, respaldando nos incríveis deus ex machina que tanto habitam as produções hollywoodianas. Num escopo geral, tais sequências ocasionais são pontuais, mas desenvolvem-se numa duração forte o suficiente para desconstruir a relação de causa e consequência entre os atos – isso sem falar que certas construções emocionais são falsas demais até para os telespectadores mais jovens.
Mesmo com deslizes perceptíveis, a segunda e última temporada de Os 3 Lá Embaixo é uma boa e aprazível aventura que termina de forma interessante, não se valendo de fórmulas para fornecer a resolução dos Irmãos Tarron. E, como se não bastasse, o novo ano também abre portas para a terceira parte dessa ótima antologia – cujo foco nos convidará mais uma vez a visitar os ocultos becos de Arcadia.
Os 3 Lá Embaixo: Contos da Arcadia – 2ª Temporada (3Below: Tales of Arcadia, EUA – 2019)
Criado por: Guillermo del Toro
Direção: Guillermo del Toro, Rodrigo Blaas, Johane Matte, Elaine Bogan, Andrew L. Schmidt
Roteiro: Guillermo del Toro, Aaron Eisenberg, Lila Scott
Elenco: Tatiana Maslany, Diego Luna, Nick Offerman, Glenn Close, Alon Aboutboul, Hayley Atwell, Uzo Aduba, Steven Yeun, Charlie Saxton, Cole Sand
Emissora: Netflix
Episódios: 13
Gênero: Animação, Aventura
Duração: 23 min. aprox.
Crítica | Mãe e Muito Mais - Um Vazio Narrativo
Que a Netflix tem uma história complicada ao longo de sua breve existência, isso é inegável: se por um lado a gigante do streaming produz séries de qualidade notável, falha em quase todas as suas produções em longa-metragem, preferindo produzir obras que se restrinjam às entediantes rom-coms recheadas de convencionalismos e fórmulas ao invés de investir em algo novo que reafirme seu importante papel nessa nova era do entretenimento audiovisual. Logo, quando o serviço contratou Cindy Chupack para comandar seu mais novo filme original, poderíamos esperar algo diferente, ainda que nostálgico – mas o resultado, mais uma vez, passou longe de ser satisfatório.
A dramédia Mãe e Muito Mais, ainda que integrasse um gênero já explorado exaustivamente desde os anos 1990, tinha um potencial incrível que poderia ser carregado apenas pelo elenco de peso: afinal, não vemos muitas obras atuais que conseguem reunir num mesmo lugar as premiadas Felicity Huffman, Angela Bassett e Patricia Arquette – e, considerando a extensa filmografia do trio, suas atuações deveriam ser no mínimo envolventes. Entretanto, mesmo com o protagonismo e a presença cênica imensurável dessas mulheres, o medíocre roteiro abraça uma narrativa que não tem muito para onde ir, principalmente quando se restringe a seguir os passos de qualquer melodrama novelesco que já assistimos (não é muito difícil encontrar semelhanças entre os dois tipos de história em questão).
Bassett dá vida a Carol Walker, abrindo o conto maternal com um breve prólogo antes de finalmente dar as caras. Carol é melhor amiga de Gillian (Arquette) e Helen (Huffman) e todas parecem estar confinadas em uma bolha na qual vivem em função dos filhos afastados. Afinal, suas três “crias”, por assim dizer, já deixaram suas casas há muito tempo e foram morar em Nova York, esquecendo-se dos lares e seguindo em frente ao ponto de nem ao menos se lembrarem de desejar “feliz dia das mães” àquelas que os criaram. Logo, não demora muito até que Helen resolve juntar suas amigas e viajar até a cidade que nunca dorme para visitá-los e tentar reconectar os últimos fios que os mantêm como família.
Se Chupack ganhou um patamar considerável ao ficar responsável pela icônica coming-of-age Sex on the City na virada dos anos 1990 para os 2000, aqui ela se mostra como uma diretora cansada que recorre aos escapes cômicos e às construções imagéticas regradas e padronizadas, sem ao menos ousar sair um pouco da caixinha; na verdade, a religiosidade com a qual a cineasta trabalha no longa é apenas uma cópia malfeita de qualquer blockbuster hollywoodiano que consiga pensar – uma comédia romântica que, ao contrário do relacionamento amoroso entre duas pessoas, se desenrola entre mãe e filho. E mais: se ela tentava criar algo especial com o qual poderíamos ao menos nos divertir, falhou miseravelmente e criou uma espécie de expansão de O Maior Amor do Mundo (2016).
Conforme cada uma das protagonistas se reencontra com seu respectivo filho, fica bem claro que elas terão um árduo trabalho a fazer: Helen canaliza a frustração de seu primeiro casamento para o fato de Paul (Jake Lacy) manter contato com o pai e não com ela, nem mesmo revelando que é gay e que está morando com o namorado; Carol descobre que Matt (Sinqua Walls) vem mentindo para ela sobre seu verdadeiro trabalho, e condena sua vida lascívia e seu fraco por mulheres jovens; e Gillian sente que falhou como mãe ao perceber que Daniel (Jake Hoffman) está numa situação desesperadora, tendo quase perdido o contrato para escrever o livro e ser traído pela namorada Erin (Heidi Gardner) – não que ela fosse muito fã da garota.
Caso paremos para analisar, não há motivação o suficiente que justifique essa necessidade de reconexão entre os núcleos familiares. Na verdade, tudo move-se de forma forçada, que passa longe até mesmo de ser fofo ou de nos causar alguma comoção; a condução de Chupack não contribui muito para isso, transformando os mais simples efeitos dramáticos em saturados arcos que saem de nenhum lugar para lugar nenhum. As viradas, que ao menos poderiam seguir os passos bastante conhecidos do suis-generis em questão, não alcançam o potencial que prometem e deslizam em arquiteturas monocromáticas do começo ao fim. O único elemento que se salva é a quase inexistente química entre as protagonistas (que ganham nossa atenção pelas complexas personalidades que são desperdiçadas por completo).
Mãe e Muito Mais mantém a infeliz reputação da Netflix como desistente de até mesmo pensar em nos entregar algo novo. Seguindo o estilo de longas-metragens recentes, a única explicação para que essa obra exista é a necessidade aumentar o orçamento para produções futuras – porque nem mesmo “divertimento” pode ser associado ao filme em questão.
Mãe e Muito Mais (Otherhood – EUA, 2019)
Direção: Cindy Chupack
Roteiro: Mark Andrus, Cindy Chupack, baseado no romance de William Sutcliffe
Elenco: Angela Bassett, Felicity Huffman, Patricia Arquette, Jake Hoffman, Jake Lacy, Sinqua Walls, Heidi Gardner
Duração: 100 min.
https://www.youtube.com/watch?v=yIxAKiQwnxs
Crítica | Dear White People: 3ª Temporada - Mais acidez e (muito) mais ironia
Ainda que a Netflix peque consideravelmente na relevância e na originalidade de algumas histórias originais, grande parte de seu catálogo seriado se desenrola em uma madura construção narrativa que nos deixa empolgados a cada novo episódio. Felizmente, é isso o que acontece com a ovacionada produção Dear White People, um ácido e necessário show da plataforma baseado no filme homônimo de 2014 que retornou para sua terceira temporada após um ano. E, como já era de se esperar, Justin Simien conseguiu entregar um novo ciclo com grande competência estética e técnica que, mesmo falhando em alguns aspectos, permanece nos guiando de forma honrável através de uma trama tragicômica e misteriosa.
Seguindo os passos da iteração original, o último season finale deu as cartas para os próximos dez capítulos ao levar Sam (Logan Browning) e Lionel (DeRon Horton) ao encontro do misterioso do Mestre da Ordem do X (Giancarlo Esposito) também conhecido como o Narrador. Na verdade, todos os eventos desenrolados nos episódios anteriores culminaram neste momento e, delineando-se do modo mais hilário e irreverente possível, acaba mostrando que a Ordem não existe mais, estando fragmentada pelos quatro cantos da Universidade de Winchester e escondida esperando a brecha certa para reinsurgir. O que, eventualmente, leva os nossos dois protagonistas a enterrarem esse caso sem saída e seguiram com as próprias vidas – e, três meses depois, Sam pareceu ter abandonado sua militância como porta-voz da comunidade negra, e Lionel se transformou em uma sex machine incontrolável.
É claro que a trama principal continua regendo implacavelmente sua orquestra ao mesmo tempo em que abre espaço para arcos secundários também ganharem expressividade. Troy (Brandon P. Bell) se juntou à machista revista Pastiche tarde demais para descobrir que sua organização não passa de uma extensão de qualquer monarquia autoritarista dos séculos passados, enquanto Joelle (Ashley Blaine Featherson) assume a apresentação do programa-título da série, ao mesmo tempo que lida com o recém-assumido relacionamento com o conturbado Reggie (Marque Richardson) e com o coração quebrado do insuportável Rashid (Jeremy Tardy). Coco (Antoinette Robertson), por sua vez, tenta desesperadamente conseguir uma carte de recomendação para seu intercâmbio em Paris e luta para não ceder à exaustão completa – além de ser presidente da Black Caucus local.
No geral, o terceiro ano explora com mais força os obstáculos que cada um dos protagonistas enfrente, seja num nível macro ou microcósmico: as questões raciais tão belamente sondadas nos capítulos predecessores deixam de ter protagonismo, enquanto os sarcásticos elementos ganham palanque ainda maior. De fato, Simien perde um pouco de sua identidade narrativa, apesar de construir novas joias televisivas bastante aprazíveis e chocantes: a produção inclusive se arrisca em ambiências antes não exploradas, alcançando um nível de metalinguagem divertida, mesmo que pedante em certos pontos (a própria Netflix faz brincadeiras sagazes consigo própria); mas os excessos estéticos de modo algum falam mais alto, servindo apenas como escapes cômicos ou base consecutiva para os personagens.
Os dez capítulos movem-se na mais pura fluidez, talvez pelo fato de serem arquitetados sobre pouco menos de trinta minutos. Não há muito melodrama a tomar conta dos holofotes, o que abre espaço para uma dinâmica sucessão de causas e consequências que envolve as personas – sem esquecer da inúmeras e bem-vindas adições ao elenco. Brooke (Courtney Sauls) é promovida a personagem regular e se afasta de sua construção extremamente metódica e workaholic, transformando-se em uma crível mulher passível de acertar e errar assim como todos os outros. Lionel continua a explorar sua sexualidade ao se envolver com novos amigos, incluindo o diabolicamente sedutor D’Unte (Griffin Matthews) e um paixão inesperada com Michael (Wade F. Wilson).
Apesar das emaranhas subnarrativas tangenciarem a saturação cênica, o incrível time criativo enfileira as relações de ação-reação com a máxima de cautela, abrindo espaço para um núcleo interessante que começa a se desenrolar a partir do sétimo episódio e envolve a controversa Muffy (Caitlin Carver) e o complexado Prof. Moses Brown (Blair Underwood), que aparece na universidade como um prospecto otimista para os alunos negros apenas para se revelar um hipócrita descarado que se aproveita de qualquer um que atravessa seu caminho.
Como se não bastasse, o seriado também encontra sucesso quanto às suas sutilezas diegéticas, criando uma proposital ambiguidade entre o que nos é explicado e o que vemos. Desde o princípio, o personagem de Esposito anuncia que Sam e Lionel precisam “matar o narrador”, mudando a organicidade do núcleo principal e, como preconizado, abandonado a presença de uma voz onisciente para guiar os protagonistas. Além disso, as investidas imagéticas criam uma envolvente e anacrônica ambientação que se vale de um filtro pastel e onírico que se afasta e se aproxima (num paradoxo delicioso) do panfletarismo documentários de tantas produções do gênero.
O novo ano de Dear White People pode até ser inferior aos predecessores, mas ainda faz um bom uso de ingredientes infalíveis para sua própria identidade, adicionando e retirando um tempero ou outro como forma de se renovar e não se render a uma obra medíocre. Mesmo com os pequenos erros, uma coisa é certa: no final das contas, o público vai querer repetir o prato (mais até do que deveria).
Dear White People – 3ª Temporada (Idem, Estados Unidos – 2019)
Criado por: Justin Simien
Direção: Justin Simien, Kevin Bray, Charlie McDowell, Kimberly Peirce, Salli Richardson-Whitfield, Steven Tsuchida, Janicza Bravo
Roteiro: Justin Simien, Chuck Hayward, Njeri Brown, Leann Bowen, Jack Moore, Yvette Lee Bowser, Nastaran Dibai
Elenco: Logan Browning, Brandon P. Bell, DeRon Horton, Antoinette Robertson, John Patrick Amedori, Ashley Blaine Featherson, Giancarlo Esposito, Marque Richardson, Nia Jervier, Jemar Michael, Rudy Martinez, Caitlin Carver, Nia Jervier, Courtney Sauls, Griffin Matthews
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama, Comédia
Duração: 30 min.