A morte de Preta Gil neste domingo (20), aos 50 anos, deixa um vazio que transcende a música e o Carnaval. A cantora, uma das figuras mais carismáticas e autênticas do Brasil, foi também uma das vozes mais potentes de sua geração na luta contra o preconceito. Mulher, negra, gorda e bissexual, ela usou sua plataforma para amplificar debates urgentes e se tornou um símbolo de coragem, resistência e liberdade para milhões de pessoas.
Ao longo de mais de 20 anos de carreira, Preta transformou sua própria existência em um ato político, enfrentando de cabeça erguida o racismo, o machismo e a gordofobia, e inspirando outras mulheres a fazerem o mesmo.
“Racismo é crime”: a luta antirracista
Preta Gil nunca se calou diante do racismo. Em 2016, quando foi alvo de ataques racistas em suas redes sociais, com ofensas como “macaca”, sua reação foi imediata e exemplar. Em uma época em que muitos artistas ainda hesitavam em expor o preconceito, ela não apenas denunciou publicamente, como prestou queixa na delegacia e incentivou outras vítimas a buscarem seus direitos. “Se as pessoas не entendem que isso é um absurdo na sua educação, que entendam pela lei e pela Justiça”, disse na ocasião.
Ela também falou abertamente sobre seu próprio processo de letramento racial, de se entender como mulher preta e de como isso a fortaleceu. “Renasci disso tudo mais preta do que nunca”, afirmou em 2020. Com a mesma firmeza, ela sempre cobrou a responsabilidade da branquitude no combate ao preconceito: “Nós [negros] não inventamos o racismo, foram os brancos. Eles têm que ser os grandes responsáveis por romper e acabar com isso”.
O corpo livre e a quebra de padrões
Preta foi uma pioneira do movimento de positividade corporal no Brasil. Em um meio artístico que idolatrava a magreza, ela celebrou suas curvas e seu corpo com orgulho, usando sua influência para promover a diversidade. Em uma colaboração com a C&A para uma coleção de moda praia, por exemplo, fez questão de incluir tamanhos maiores. “Só eu não basto, quero que outras venham comigo, quero incluir”, disse à Vogue em 2021. “Quando ouço mulheres me dizendo que botaram um biquíni por minha causa, […] isso é libertador, porque sinto que compensa cada crítica com gordofobia que eu recebo.”
“Preta, gorda, bissexual e livre”
Sua militância sempre foi interseccional, abraçando todas as suas identidades. “Eu sou preta, eu sou gorda, eu sou mulher, eu sou bissexual, eu sou livre. Eu estou aqui com muito orgulho de ser quem eu sou”, declarou em 2020.
Essa força se manifestou até em um dos momentos mais difíceis de sua vida. Ao se separar do ex-marido em 2023, enquanto lutava contra o câncer, ela rechaçou a ideia machista de que precisava de um homem para cuidá-la. “Meu instinto de sobrevivência me fez querer me separar, […] porque não estava me fazendo bem. É machista achar que preciso ficar casada para ser cuidada. Por que o marido é mais importante que a mãe, o pai, a irmã, o amigo?”, questionou na época.
A trajetória de Preta Gil foi uma aula de coerência e coragem. Sua voz, que cantava a alegria e o amor, foi a mesma que denunciou a injustiça e defendeu a liberdade. Seu maior legado, talvez, seja o de ter vivido, até o fim, exatamente como era. E isso, por si só, foi uma revolução.