Crítica | O Grande Lebowski - A Ironia dos Coen
Bastante comum encontrarmos obras cujas narrativas acabam perdendo-se em excessivamente complicadas tramas. Especialmente quando se trata de algum vilão, é seguro dizer que qualquer um que já tenha assistido mais de meia dúzia de filmes se perguntou “mas por que tudo isso, se ele poderia ter feito o seguinte?”. Dezenas de longas de James Bond estão aí para provar isso.
O Grande Lebowski apresenta justamente essa característica, mas ela é subvertida, transformada em um, se não o maior, dos acertos da obra através do grande senso de ironia dos irmãos Coen, que já é deixado bem claro nos minutos iniciais, quando ouvimos Sam Elliott divagar algumas vezes durante sua narração em off inicial, a qual já procura nos dizer: esse não é um filme sobre uma trama complexa, é um filme sobre como a complexidade tirou um “cara” de sua absoluta tranquilidade.
Após esse pequeno prelúdio acompanhado pela profunda voz de Elliot, conhecemos The Dude (Jeff Bridges), um sujeito que parece vestir sempre a primeira coisa que encontra em seu armário preenchido quase que exclusivamente de pijamas e um calçado como uma sandália ou melissa. Sua vida se resume a jogar boliche com seus amigos Walter (John Goodman) e Donny (Steve Buscemi) e fumar maconha em casa.
Tudo isso muda, claro, quando desconhecidos invadem sua casa, colocam sua cabeça na privada e urinam no seu tapete. Tendo sido confundido por alguém de mesmo nome, The Dude vai atrás desse outro Jeff Lebowski a fim de conseguir alguma compensação pelo tapete arruinado (ele realmente amava o tal tapete). Tudo o que consegue, porém, é se envolver em um complicado jogo de interesses envolvendo uma esposa sequestrada, niilistas, diretores de filmes pornôs e excêntricos artistas.
That's just like, your opinion, man
À época de seu lançamento, no final dos anos 1990, O Grande Lebowski recebeu divisivas críticas, algumas das quais caíram em cima justamente do fato de grande parte dessa complexa história, com diversos personagens, não levar a absolutamente nada. Como dito antes, no entanto, essa intrincada trama sem grandes objetivos, é uma das grandes ironias construídas pelos Coen - o foco aqui é o Dude, que é rodeado por idiossincrasias, incluindo suas próprias. Existem aspectos claros de comédia do absurdo aqui, com características bastantes similares às de Fargo, especialmente no quesito de que nada parece que vai dar certo. A ironia, portanto, se faz presente nas situações, além, é claro, das falas de Dude, que, desde o início, realmente só queria seu tapete.
Com esse cenário construído, os Coen criam uma gama de personagens variados, cada um deles com personalidades bem estabelecidas, ainda que muitos sejam, essencialmente, unilaterais - mas veja, isso não chega a ser um deslize da obra, já que todos estão ali em função do protagonista, servindo como percalços ou pontos de virada dentro da história, dito isso, não há, de fato, motivos para se aprofundar em figuras como Maude (Julianne Moore) ou Donny, que está ali simplesmente para ouvir repetidos “cala a po**** da boca, Donny” ditos por Walter, o único personagem secundário que, de fato, ganha certa atenção.
Essa escolha narrativa se torna bastante óbvia se pegarmos o simples fato de que o Dude está sempre em cena (salvo em dois específicos e curtíssimos trechos) - em outras palavras, tudo gira em torno dele, esse é um recorte de sua vida, por mais estranha que ela seja - qualquer coisa além disso, na realidade, não importa. Assim sendo o grande foco permanece na reação do protagonista aos estranhos eventos nos quais ele acabou se envolvendo e não se a garota supostamente raptada irá aparecer, ou qual será o desfecho- do campeonato de boliche. Todos esses elementos estão ali a fim de realmente evidenciar o quão simples é The Dude.
This aggression will not stand, man
Então, além das ironias e situações inesperadas, o que faz O Grande Lebowski funcionar tão bem? Naturalmente, devemos levar em conta todo o elenco que, se encaixa na medida certa em seus respectivos papéis. Começando, claro, pelo próprio Jeff Bridges como Dude, que, segundo os Coen, somente era dirigido antes das filmagens quando perguntava se seu personagem havia fumado um antes de chegar até ali. Bridges encarna perfeitamente o retrato do descompromisso, ele é o que muitos chamariam de “vagabundo” - não tem um trabalho, joga boliche e fuma o dia inteiro e nada mais. Em essência, porém, trata-se do homem perfeitamente à vontade com sua vida - até que, claro, alguém urina em seu tapete. O que chama a atenção é a naturalidade da interpretação de Bridges, perfeitamente à vontade no papel, como se, de fato, estivesse apenas relaxando ali no set de filmagens.
Do outro lado temos o Walter de John Goodman, uma bomba prestes a explodir a qualquer momento. Curiosamente, apesar de toda a sua agressividade, ele parece sempre seguir o protagonista - a não ser quando está irritado com algo, nesses pontos ele ouve simplesmente a si próprio. Sempre com seus aviadores, o personagem de Goodman funciona como o exato contrapeso para Dude, há toques de alguém aproveitador, violento, enquanto o outro é simplesmente a paz personificada, querendo somente o que é dele. Não por acaso é Walter que funciona como o estopim para diversas das situações do filme, inclusive o envolvimento de Lebowski com Lebowski, algo que jamais aconteceria sem ele, já que Dude simplesmente deixaria a questão do tapete passar, eventualmente.
Já todo o restante, como mencionado anteriormente, apenas floreia esse cenário, o preenche com as estranhezas, fornecendo as inusitadas situações que tiram o protagonista de sua zona de conforto. Claro que os Coen utilizam as constantes quebras de expectativa, fornecidas por tais estranhas personalidades, para constituir o peculiar humor de sua obra. De fato, com isso, os irmãos conseguem entregar momentos únicos, como a sequência do furão (ou marmota, para o Dude), ou os peculiares trechos com Maude, que era simplesmente o que faltava para tudo se tornar uma loucura generalizada.
Assim como o Dude, todos esses personagens são escancaradamente resumidos por três elementos: como se vestem, onde vivem e pelas situações nas quais os encontramos. Bons exemplos disso são (o Grande) Lebowski (David Huddleston) e Karl Hungus (Peter Stormare) - o primeiro bem vestido em sua mansão, total oposto ao Dude e o segundo visto primeiro em uma piscina, simplesmente fazendo nada, resumindo, com bastante ironia, seu niilismo. Através dessas óbvias retratações, os Coen dispensam grandes explicações sobre o que são, construindo tudo através da imagem, deixando os diálogos para jogar toda a idiossincrasia possível.
Ironicamente, por mais surreal que isso tudo seja, grande parte dos personagens da obra foram inspirados em pessoas reais, inclusive o protagonista. Com isso, mesmo com toda a estranheza, há um toque de inesperada realidade nisso tudo, o que acaba complementando a escolha do diretor de fotografia, Roger Deakins, em trazer uma atmosfera mais suja, realista para o apartamento de Dude, perfeitamente contrapondo-se às sequências oníricas, que esbanjam luzes e cores. Aliás, é preciso notar como a direção ousa mais nesses trechos de alucinação/ sonho do protagonista, como se os diretores brincassem, experimentando enquadramentos e movimentos de câmera menos convencionais, que aumentam o tom surrealista dessas cenas - vide o quadro girando junto com a bola de boliche.
Essa mistura de tons contemporâneos com algo mais de época (intencional por parte dos Coen), da realidade com o onírico, acaba gerando um ar de anacronismo na obra, que quase nos impede de localizar exatamente o filme em certo ano, por mais que seja dito que a história se passa nos anos 1990. Basta olharmos para o telefone utilizado por Dude em diversos momentos da obra para enxergamos que a intenção era, de fato, criar essa amálgama anacrônica. Com isso é garantido que o filme não envelheça, perfeitamente se adequando a qualquer época.
The Dude Abides
O ciclo, então, se fecha quando o personagem de Sam Elliott novamente aparece em tela e retoma sua narração, que começou lá no início do filme. A história deixa de acompanhar Dude nesses instantes finais e somos automaticamente distanciados de toda essa história, enquanto o personagem tece comentários de cunho bastante pessoal sobre toda essa trama complexa que pegou o protagonista de surpresa. Nesse tom leve, descontraído, somos deixados, já entendendo que O Grande Lebowski é o tipo de filme para se assistir despretensiosamente - não que seja uma obra que busca o mero fugaz entretenimento, para ser esquecida logo após, muito pelo contrário.
Trata-se de uma comédia única, com toda a identidade dos Coen em sua construção, com ironia, constantes quebras de expectativa, surrealismo e um protagonista para lá de cativante - a tal ponto que, mesmo após a morte de um personagem, nos leva de volta para aquela tranquilidade de sempre - especialmente após toda aquela trama complexa se esvair, na maior ironia do filme, não nos levando a nada, retomando o ponto de que essa história é sobre The Dude e não sobre as coisas exageradamente complicadas da vida.
O Grande Lebowski (The Big Lebowski - EUA/ Reino Unido, 1998)
Direção: Joel Coen, Ethan Coen
Roteiro: Ethan Coen, Joel Coen
Elenco: Jeff Bridges, John Goodman, Julianne Moore, Steve Buscemi, David Huddleston, Philip Seymour Hoffman, Tara Reid, Peter Stormare, John Turturro, Sam Elliott
Gênero: Comédia
Duração: 117 min.
Crítica | Fome de Viver - Paixão e Mortalidade
A figura do vampiro, reinventada ao longo dos anos, quase sempre estivera ligado ao desejo e à sedução, uma espécie de Lucifer, sempre capaz de exercer seu controle sobre a mente humana. Fome de Viver, estrelado por Catherine Deneuve, David Bowie e Susan Sarandon traz exatamente isso para a mesa, enquanto lida, de forma metafórica, com outras questões de nossas vidas, como o envelhecimento e o amor. Nesse longa-metragem de estreia de Tony Scott, o diretor nos traz, acima de tudo, uma experiência sensorial, que, conta, sim, com seus defeitos, mas que não deixa de ser menos apaixonante por isso.
A trama gira em torno de Miriam (Deneuve) e John Blaylock (Bowie), um casal de vampiros que após séculos juntos tem de lidar com o repentino envelhecimento de John, que a cada hora que se passa dá um gigantesco passo em direção à morte. Nesse contexto, Sarah Roberts (Sarandon), cuja pesquisa atual envolve o envelhecimento precoce, recebe a atenção dos dois e logo é criado um triângulo amoroso que apenas cresce enquanto o vampiro definha, indo em apenas um dia de um homem em seus trinta anos até um senhor no final de seus dias.
Com uma cena inicial que perfeitamente define a vida que os Blaylock levaram até então, Fome de Viver nos traz mais um interessante retrato da figura vampiresca, essa completamente envolta em seu manto sedutor. Toda a questão do envelhecimento de John lida perfeitamente com isso, ao passo que simboliza nossa própria percepção de nossas gradativas velhices: nos enxergamos sempre como alguém de vinte e poucos anos e, de uma hora para a outra, percebemos nossa verdadeira idade? A sociedade nos impõe fases na vida, mas até que ponto contamos com essa percepção no dia-a-dia? Não há um marco divisório claro entre infância, vida adulta e velhice, o que se altera é a forma como nos enxergamos e os constantes olhares no espelho por parte de John simbolizam isso com clareza.
O trabalho de Bowie como o personagem é um dos destaques da obra. Sentimos nele toda a angústia desse ser jovem, preso em um corpo que definha rapidamente. Sua interpretação que mistura o profundamente educado com o misterioso ainda evoca um sentimento de atração no espectador – muitas vezes olhamos para John e sentimos como se ele houvesse sido tirado diretamente das páginas de Anne Rice, que certamente influenciara o romance de mesmo nome do qual o filme fora adaptado. Tudo ainda fica mais perturbador com o excelente trabalho de maquiagem empregado no longa-metragem, que efetivamente consegue transformar o ator gradualmente – todo seu processo de envelhecimento, ocorrido em questão de horas, é fascinante e Scott, através de uma câmera fixa consegue empregar uma verdadeira melancolia ao acontecimento, se encaixando harmonicamente com a reclusa personalidade do vampiro.
Curiosamente, a situação pela qual John passa, de certa forma espelha a trajetória de David Bowie, que mesmo nos seus anos finais sempre fora uma figura bastante jovem. Seu retorno da aposentadoria nos entregou seus dois últimos álbuns – um deles, Blackstar, lançado dias antes de seu falecimento, como se, de fato, de uma hora para a outra, o artista houvesse repentinamente envelhecido. Além disso, seu câncer efetivamente o transformara, trazendo uma profunda mudança em sua aparência em poucos anos. Infelizmente pode-se dizer que a obra de Tony Scott antecipara os momentos finais dessa figura lendária.
Miriam, por outro lado, é o retrato da imutabilidade do vampiro, uma mulher que, era após era, encontra um novo parceiro para ter companhia. É interessante a forma como o roteiro progride sem nos dizer claramente a idade da personagem, apenas oferecendo pontuais dicas, como o Ankh que carrega em torno de seu pescoço e as estátuas de mármore que preenchem seu apartamento. Deneuve nos entrega uma mulher, de fato, imprevisível. Não sabemos até que ponto ela está de luto pelo que acontece ou se a preocupação gira em torno unicamente de si própria – há uma frieza em sua forma de ser, apenas para, em alguns momentos, ser substituída por um calor intenso de alguém que consegue efetivamente seduzir com apenas um olhar. Verdadeiramente, não sabemos nos decidir se gostamos ou não dessa figura, criando um paralelo imediato com a personagem de Susan Sarandon, que ainda é utilizada de forma bastante intimista a fim de trazer às telas o romance lésbico – tudo de maneira irresistível. Para quem assistiu American Horror Story: Hotel não há como não perceber a influencia da personagem de Miriam na construção da Condessa, interpretada por Lady Gaga.
O ritmo da obra, porém, sofre um certo baque em sua metade, conforme o foco da narrativa se altera completamente. É criada uma estrutura capitular e nossa imersão precisa, novamente, ser resgatada, ao passo que a história tira John de seu foco, substituindo-o por Miriam e Sarah. Com o passar dos minutos, felizmente, enxergamos como essa segunda metade dialoga com o que aprendemos na primeira e o roteiro de Ivan Davis e Michael Thomas cria um imediato paralelo com os relacionamentos pelos quais passamos ao longo da vida e como algo que parece que irá durar para sempre, poucos momentos depois, pode se tornar algo do passado. É formado um ciclo muito bem representado pela direção de Scott, que utiliza, inúmeras vezes, uma câmera em movimento lentamente circular, o que também transmite um tom erótico e místico às cenas.
Fome de Viver se encerra com um final bastante dúbio e perturbador. Seus momentos finais, colocados como exigência do estúdio são dispensáveis, ao passo que conseguem apenas confundir o espectador. Felizmente o que antecede tal cena é uma experiência apaixonante, que, apesar de seus deslizes, consegue nos trazer uma fascinante história de vampiros, que perfeitamente dialoga com aspectos de nossas próprias vidas.
Fome de Viver (The Hunger – Reino Unido/ EUA, 1983)
Direção: Tony Scott
Roteiro: Ivan Davis, Michael Thomas (baseado no livro de Whitley Strieber)
Elenco: Catherine Deneuve, David Bowie, Susan Sarandon, Cliff De Young, Beth Ehlers, Dan Hedaya
Gênero: Drama
Duração: 97 min.
Crítica | Personal Shopper - Medo e Superação
A existência da vida após a morte assola a mente do ser humano desde seu estágio primitivo – o questionamento de nossa realidade e o sentido de nossas vidas esteve presente na religião e filosofia desde que o homem consegue se lembrar e o que mais nos obriga a pensar nessas questões do que a morte de um ente querido? Personal Shopper, que garantiu o prêmio de melhor diretor, em Cannes, ao francês Olivier Assayas, coloca essa questão no centro do palco, mostrando o quão difícil pode ser vencer o luto após a perda de alguém querido, evidenciando a forma como isso afeta nossas vidas.
A trama gira em torno de Maureen (Kristen Stewart), uma jovem americana que se mudara para Paris após a morte de seu irmão gêmeo, Lewis. Sua intenção é entrar em contato com seu espírito de alguma forma e, para isso, visita sua antiga casa a fim de obter algum sinal. Os dois, sendo médiuns, prometeram, se morressem, enviariam algo para o outro a fim de ajudar nessa transição e mostrar que estão bem. Para sustentar sua estadia ali, a garota passa a trabalhar para uma celebridade como sua compradora de roupas e joias, tudo se complica, porém, quando ela passa a receber mensagens de um número desconhecido, não sabendo se elas vem de seu irmão ou de alguém que tem seguido seus movimentos e sabe mais do que deveria de sua vida.
Personal Shopper nos pega imediatamente de surpresa com seu teor sobrenatural logo no princípio da projeção – há um realismo na forma como aborda tal questão que pode ser verdadeiramente desconcertante para o espectador, mas o roteiro de Assayas sabiamente não foca unicamente nessa questão. Esse é um filme com um foco psicológico, é um thriller e não um terror, dito isso, ele prefere colocar em evidência a forma como a protagonista é afetada por todas essas reviravoltas em sua vida.
Kristen Stewart, que já provara que sabe entregar uma boa atuação quando bem dirigida, nos traz um retrato da instabilidade. Sentimos que seu interior está em polvorosa e a atriz, desde o olhar, passando pelas mãos que tremem, até a forma hesitante que fala, nos passa a impressão de alguém sob forte pressão psicológica, de sofrimento, tentando encontrar um sentido em sua vida após a perda do irmão. A profissão de Maureen é um perfeito exemplo disso, uma futilidade gigantesca que deixa claro a perda da base dessa pessoa. Trata-se de um estágio transitório, é claro, mas não podemos deixar de ansiar para que algum sinal venha para que ela possa, enfim, seguir adiante.
Apesar de ser bastante previsível quem, de fato, envia as mensagens para a personagem, é criada uma tensão que chega a ser palpável no espectador. Não é o clássico whodunnit, o quem matou, e sim o medo do que irá acontecer a seguir com a protagonista, que parece querer atrair essa figura misteriosa para ela. É criado um sentimento em nós de que ela, de fato, ansia pela morte em certo nível, como uma forma de reencontro com seu irmão – o perigo a deixa viva. Existe, é claro, a possibilidade dele próprio enviar as mensagens, mas, desde cedo, suspeitamos que não se trata dele.
A direção de Assayas sabe muito bem trabalhar com a sugestão, criando o suspense no espectador através do que ele pensa que viu em tela ou do que nos é ocultado. É criada uma forte expectativa na audiência e ele apenas a incita através de respostas que não são claras e, na realidade, somente abrem espaço para mais perguntas, nos deixando com um final em aberto que nos obriga a pensar, não nos oferecendo um texto mastigado e quebrando um pouco a previsibilidade do que fora apresentado anteriormente.
Personal Shopper consegue, portanto, nos atingir como um bem realizado thriller psicológico, que nos mantém na dúvida do início ao fim do filme. Jamais é oferecida a resposta da eterna pergunta: existe a algo após o fim da vida? O que fica é a história de superação da perda, seja através da própria morte ou do simples seguir em frente, que tira alguém da vida ausente de propósito no qual ela próprio se colocara.
Personal Shopper (idem - França, 2016)
Direção: Olivier Assayas
Roteiro: Olivier Assayas
Elenco: Kristen Stewart, Lars Eidinger, Sigrid Bouaziz, Anders Danielsen Lie, Ty Olwin
Gênero: Drama, Suspense
Duração: 105 min.
Crítica | Hellraiser - Renascido do Inferno - O Clássico de Clive Barker
Baseado no livro Hellbound Heart , traduzido com o título do filme no Brasil, Hellraiser - Renascido do Inferno , desde seu lançamento, tornado-se um dos mais conhecidos filmes de terror, principalmente em razão dos icônicos cenobitas, mais especificamente Pinhead, certamente parte do salão da fama dos monstros do cinema e literatura. Tendo gerado as sequências, a obra diferencia-se de outros longos do gênero em razão de seu visual inspirado em objetos e vestimentas utilizados por sadomasoquistas, feature, que, claro, dialoga diretamente com a temática do filme. Repleto de gore e com uma opressora atmosfera, trata-se de uma obra que há de ser apreciada apenas pelos fãs do gênero.
Como incontáveis filmes de terror por aí, um trama tem início com uma família se mudando para uma nova casa. O casal formado por Larry ( Andrew Robinson ) e Julia ( Clare Higgins ) decidem morar na antiga propriedade da mãe de Larry, que estava abandonada após a sua morte. Pouco esperavam, contudo, que lá o irmão do marido, Frank, realizava estranhos rituais e, durante um deles, acabaram sendo consumido por leves misteriosas. Após um acidente na mudança, o que fez Larry sangrar no chão do sótão, Frank acaba renascendo e pede ajuda à esposa de seu irmão para regenerar completamente, antes que as cortinas demoníacas o capturem novamente. No meio disso tudo, a jovem Kirsty ( Ashley Laurence), filha de Larry, acaba se envolvendo com as tramas malignas do renascido do inferno.
Embora seja um filme cultuado, Hellraiser definitivamente não é uma obra perfeita. O que ela esbanja em visual, carece em qualidade de roteiro, que conta com inúmeros furos que prejudicam o caminhar da narrativa. Clive Barker , na época iniciante na indústria cinematográfica, brinca com a não-linearidade, mas acaba tropeçando substâncias vezes, criando rupturas na trama que diretamente impactam a sua fluidez. Além disso, o diretor / roteirista introduz personagens e subtramas que jamais são levados adiante, dilatando uma narrativa desnecessariamente, enquanto poderia focar na construção desse seu universo gótico.
A montagem certamente não ajuda quando se trata de ações paralelas, visto que vemos primeiro um foco na íntegra para, em seguida, pularmos para o próximo, sendo necessário que nós mesmos imaginemos o encadeamento das ações. Chega ao ponto de personagens se manterem fazendo a mesma ação por minutos, enquanto acompanhadomos outro realizando outra coisa, o que, definitivamente, causa estranhamento no espectador, quebrando nossa imersão por completo.
Outro aspecto que não ajuda o aproveitamento do longa-metragem são como atuações pouco inspiradas de todo o elenco, sem levar em conta os cenobitas, mas, nesse caso, a caracterização fala mais alto. Claro que o texto não ajuda em termos de motivação para as personagens centrais, mas sentimos claramente como se eles são guiados pela força maior do roteiro do que por suas próprias convicções. Um bom exemplo disso é Julia, que muda da água para o vinho após um flashback, assumindo o papel de antagonista sem qualquer motivação clara. É necessário de nós que simplesmente aceitemos isso sem mais, nem menos.
Eis que testemunhamos o poder da atmosfera criada por Barker, fruto, claro, do visual dessa representação do inferno (ou realidade paralela, chame do que quiser). Todos os pontos negativos levantados acima são esquecidos no momento que os cenobitas dão como caras. O autor / diretor / roteirista cria uma visão desencadeada assustadora desse tenebroso além, evocando a depravação, o sadomasoquismo, como se todo o inferno girasse em torno da luxúria, ou, ao menos, essa parte dele. Barker, sabiamente, não oferece muitas informações acerca dessas seres, permitindo que nossa imaginação vaga, possibilitando que o desconforto se instaure totalmente.
De fato, desconforto é o que melhor define a atmosfera do filme, o que apenas aumenta com o gore e outras nojeiras explícitas. É criada a plena sensação de decadência e podridão, que fazem dessa obra não algo para se ter medo, mas para se sentir incomodado. Como correntes, ganchos, roupas pretas, pregos, curiosamente dialogam com uma sádica sexualidade implícita, transformando esse inferno em uma fonte de prazer e dor. Nesse meio, é interessante constatar que a menina, inocente, não chega a ser poupada dos horrores, tecendo um paralelo, mesmo que mais distante, com o velho ditado: “de boas intenções, o Inferno está cheio”.
É essa construção atmosférica que nos faz relevar os tão evidentes defeitos de Hellraiser - Renascido do Inferno , que, apesar de falho, mantém-se como um icônico filme de terror. Gerando um profundo desconforto em nós, espectadores, a obra conservadora impactante em razão de seu visual, que, mesmo com alguns efeitos bastante datados, não perde a força. Cliver Barker, em sua estreia nos cinemas, criou um dos mais icônicos monstros do terror, com Pinhead e os outros cenobitas representando muito bem os desejos mais obscuros do homem.
Hellraiser - Renascido do Inferno (Hellraiser - Reino Unido, 1987)
Direção: Clive Barker
Roteiro: Clive Barker
Elenco: Andrew Robinson, Clare Higgins, Ashley Laurence, Sean Chapman, Oliver Smith, Robert Hines, Anthony Allen, Leon Davis
Gênero: Terror
Duração: 94 min.
Crítica | Cidade de Deus - Uma Obra-Prima do Cinema Nacional
Um dos marcos finais do cinema brasileiro da chamada Retomada, Cidade de Deus é um dos maiores sucessos comerciais e críticos do cinema nacional. Trata-se de uma obra que muito herda de filmes como Os Bons Companheiros, Scarface e Pulp Fiction, com alguns tons e estruturas narrativas similares, mas que, ao mesmo tempo, assume um caráter único por meio da representação nua e crua de um dos lados do quadro social do Brasil. Nomeado a quatro estatuetas do Oscar (direção, roteiro adaptado, montagem e fotografia), temos aqui o que certamente se classifica como um dos melhores filmes brasileiros, mas precisamos entender o que faz dele uma obra tão boa assim.
A trama gira em torno de Buscapé (Alexandre Rodrigues), um morador da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, que desde pequeno fora um espectador de camarote da violência que assola a favela em questão. Através de uma câmera que gira em torno do personagem, o relógio volta no tempo e somos levados aos anos 1960, quando tudo ainda era diferente e a violência dentro da comunidade não alcançava os níveis que vemos no desfecho da obra. A partir daí, em uma narrativa não-linear, acompanhamos a história dos criminosos da Cidade de Deus, do Trio Ternura a Zé Pequeno (Leandro Firmino).
Curiosamente, um dos ingredientes para a fórmula do sucesso de Cidade de Deus é a escolha de Fernando Meirelles em trabalhar com atores ainda inexperientes, convocados de favelas do Rio de Janeiro, o que garante uma autenticidade ao que vemos em tela. Há uma sinceridade na atuação de cada um deles, desde Dadinho até o protagonista. Fernando, naturalmente, não simplesmente os jogou em cena; uma extensa preparação misturada a teste de elenco foi realizada, na qual uma escola de atores foi formada e que, posteriormente, daria origem ao Nós do Morro e o Cinema Nosso, que, desde então, já formou competentes profissionais na área do cinema.
Naturalmente, nem todos foram marinheiros de primeira viagem aqui. Matheus Nachtergaele, no papel de Cenoura, é um dos exemplos. Meirelles, que não queria trabalhar com atores renomados, encontrou no ator uma complicação: o recente sucesso de Auto da Compadecida, que Nachtergaele protagonizara. A promessa do ator de “sumir” do filme a não ser por sua atuação, porém, foi cumprida, não há Matheus em Cidade de Deus, apenas Cenoura – um trabalho autêntico por excelência que não só não quebrou o imagético do filme, como contribuiu para ele, ao passo que o personagem não destoa dos outros em nenhum aspecto.
Resumir o sucesso da obra simplesmente à direção de atores, contudo, seria uma grande injustiça. O roteiro de Bráulio Mantovani faz um verdadeiro milagre da adaptação ao colocar no cinema um livro com mais de duzentos personagens sem fazê-lo soar apressado ou arrastado. Dito isso, a fim de transmitir uma maior fluidez, o longa assume uma estrutura capitular – pulamos de bandido em bandido enquanto a história da comunidade é formada. Unindo esses episódios temos Buscapé e sua narração em off (além da presença na tela), que impedem uma quebra de ritmo e constrói a ideia de que está tudo conectado: os eventos mostrados no início do filme diretamente impactam o que vemos em seu desfecho. A coesão é garantida por esses recursos simples, mas magistralmente utilizados.
Naturalmente, a montagem de Daniel Rezende caminha lado a lado com o roteiro, fazendo o necessário para que o dinamismo constante de Cidade de Deus seja mantido. Temos, aqui, um filme de 130 minutos que não para em momento algum. Cada transição entre os capítulos é realizada de forma orgânica, fluida. Para isso é mantida uma linearidade nessa narrativa não-linear – enquanto a história progride naturalmente na passagem dos anos, ela vai e volta a fim de nos trazer um olhar dedicado sobre determinados personagens. Flashbacks e elipses temporais são constantes e mais de uma vez um dos indivíduos retratados é deixado de lado, somente para ser abordado posteriormente. A narração em off de Buscapé aqui se faz essencial, nos dá vislumbres do que veremos depois, mantendo-nos curiosos acerca do papel de cada peça nesse complexo tabuleiro.
A direção de Meirelles é o pilar que mantém tudo isso unido, com uma decupagem que nos transporta para dentro desse cenário, ora com um olhar externo dos acontecimentos, quase documental, ora com closes em seus personagens, garantindo a humanidade em cada um deles. Sentimo-nos como se estivéssemos ali no meio daquele problemático ambiente e a sensação de perigo nos assola, transmitindo um pungente naturalismo à narrativa, que chega a nos deixar com um nó no estômago ao término da projeção. Buscapé, na verdade, somos nós, perdidos dentro daquele violento contexto, buscando entender o que se passa e colocar justamente um fotógrafo como protagonista é a marca maior disso: o olhar externo dentro do mundo da criminalidade.
Ao lado da direção temos a emblemática fotografia de César Charlone, que já nos planos iniciais tira o nosso fôlego – não é à toa que o plano circular do início do filme se tornou tão famoso. Charlone apresenta um verdadeiro domínio de sua arte, sabendo trabalhar de forma impecável mesmo nas diversas cenas noturnas. Sua retratação da Cidade de Deus apenas solidifica o naturalismo mencionado anteriormente com uma paleta de cores que apenas realça a frieza dos criminosos dali – os tons quentes dos anos 60 vão abrindo espaço para cores mais frias, assumindo o auge após a morte de Bené (Phellipe Haagensen), que é para Zé Pequeno o que Manny era para Tony Montana. Em momento algum sentimos uma segurança ao assistir a obra; temos a perfeita noção de que, a qualquer momento, algo pode dar errado.
Por tais motivos, desde seu lançamento, Cidade de Deus influenciou centenas de outras obras, não somente no campo audiovisual – um belo exemplo disso é a graphic-novel Coringa, de Brian Azzarello, que conta com um quadro inspirado em Dadinho e suas tendências homicidas. Fernando Meirelles nos traz um longa metragem que consegue nos cativar completamente, ao mesmo tempo que coloca em nós uma inegável angústia por meio da pesada atmosfera que constrói, encerrando seu filme com um tom sombrio mascarado de otimismo, que apenas reflete a realidade do quadro social do Rio de Janeiro, que, por si só, já nos deixa em constante apreensão.
Cidade de Deus (idem - Brasil, 2002)
Direção: Fernando Meirelles
Roteiro: Bráulio Mantovani (baseado no livro de Paulo Lins)
Elenco: Alexandre Rodrigues, Matheus Nachtergaele, Leandro Firmino, Phellipe Haagensen, Douglas Silva, Jonathan Haagensen, Seu Jorge
Gênero: Drama
Duração: 130 min.
Crítica | Kagemusha, a Sombra do Samurai - A Eterna Indagação do Ser Humano
O homem é o retrato de sua personalidade, ou uma amálgama da percepção dos outros sobre ele? Com essa indagação central, Akira Kurosawa constrói um filme inegavelmente épico e intimista ao mesmo tempo, uma obra que há muito o diretor japonês desejava produzir, mas que, surpreendentemente, não contava com o apoio dos estúdios – por mais que fosse considerado um dos maiores nomes do cinema nipônico. Kagemusha, a Sombra do Samurai, felizmente, porém, conseguiu sair da mente de seu criador através do apoio ocidental, mais especificamente através de Francis Ford Coppola e George Lucas, ambos apreciadores de Kurosawa, tendo um deles se baseado em sua obra A Fortaleza Escondida para construir uma das maiores sagas de todos os tempos, Star Wars.
Em uma sala escura a projeção é dada início. Três homens estão sentados. Um deles, claramente em posição de poder, projeta uma imponente sombra sobre a parede atrás de si, enquanto discutem o futuro do homem à sua frente, que seria conhecido como o seu kagemusha, ou sósia em nossa linguagem. Shingen (Tatsuya Nakadai), líder do poderoso clã Takeda está ao centro e com poucos, sutis e calculados movimentos demonstra, similarmente ao que vemos em O Poderoso Chefão, toda a sua autoridade. Temos nele a figura perfeita do samurai, o forte e silencioso que, em paralelo não tão distante assim, também marca dezenas de personagens icônicos do western americano ou spaghetti.
O poder de Shingen e, consequentemente de seu clã, contudo, está à beira do precipício. Sua morte prematura, causada por um evidente descuido na fronte de batalha, pode significar o fim de Takeda e, por isso, à beira do fim de sua vida, exprime seu último desejo: que sua morte não seja tornada pública até três anos depois. Cabe, portanto, ao seu duplo, um simples bandido que fora escolhido apenas por sua extrema similaridade ao líder (ele é vivido pelo mesmo ator), levar adiante essa gigantesca mentira, enganando não só as tropas do clã, como aqueles mais próximos ao falecido samurai.
Com uma narrativa, a princípio confusa, Kurosawa aos poucos vai prendendo a atenção do espectador. Nossa dúvida do que se passa nos primeiros minutos da projeção é palpável, mas conseguimos persistir pelas icônicas imagens nos mostradas. Em seu terceiro filme à cores, o diretor faz uso de uma extensa gama de tonalidades não só para trazer uma beleza estética inegável – como esquecer da marcha dos samurais ao por do sol? – mas para garantir uma maior complexidade a este retrato de época. Estandartes vermelhos, verdes, negros, preenchem a tela e o monocromático contrasta com vestimentas inteiramente coloridas dos líderes dos clãs. Cada personagem pode ser reconhecido por suas vestimentas, tornando a cor um elemento central para o entendimento desse palco tão repleto de atores.
Com o passar dos minutos, já fisgados pela construção de Akira, conseguimos entender precisamente o que se passa e a beleza da imagem passa para o texto, ao passo que os inúmeros questionamentos do diretor ganham força na tela. O kagemusha, à princípio forçado a desempenhar seu papel e, depois, voluntariamente, deve reprimir sua própria personalidade a fim de se transformar em Shingen. Deve enganar a família, o cavalo e amigos daquele a quem impersona e a cada cena nos vemos em uma nova espiral de tensão, não conseguindo tirar os olhos da tela, nos perguntando como ele irá cumprir essa, aparentemente impossível, missão.
O samurai por excelência, então, é colocado em questão e seu código de honra é colocado contra a parede: pode a honra ser copiada? O duplo se torna, portanto um samurai por passar a viver como ele? Kurosawa, porém, não permanece nessa superfície e atinge um ponto ainda mais profundo: a figura desse guerreiro está ligada à batalha, ao comando de suas tropas ou à família, à maneira como se porta? Dessa forma, o diretor intercala momentos épicos, como a já citada marcha com focos intimistas, sequências passadas inteiramente dentro de um quarto com o kagemusha frente a frente com aqueles que deve enganar.
Ambos, naturalmente, possuem uma nítida beleza, mas é notável a forma como as coloradas composições dos planos mais abertos conseguem ficar à sombra das mais íntimas situações. Um icônico momento do filme claramente nos demonstra isso. O sósia está frente a frente com fieis de seu antigo mestre, eles sabem, abertamente, que o homem à sua frente não é Shingen e, em meio a risadas alegando que seu líder jamais agiria como esse homem simples temos uma grata surpresa. O kagemusha pergunta “e assim?” e assume uma posição séria, estática, rapidamente nos lembrando daquela sequência inicial. Os outros na sala, então, se colocam em uma posição respeitosa, a seriedade e lágrimas tomam conta de seus rostos.
Uma cena como essa consegue nos causar arrepios que mil crepúsculos não conseguiriam e a força da direção, em conjunto, é claro, com o ótimo trabalho de Tatsuya Nakadai assumem o palco central. Nakadai consegue nos convencer precisamente que neles temos dois homens, o bandido e o líder. Suas mudanças de disposição, de humor são um dos maiores pontos atrativos da obra e muitas vezes conseguem conduzir nossas emoções, nos levando rapidamente da comédia para a tensão – sempre reiterando a ácida ironia de toda aquela situação que o protagonista se encontra.
Funcionando como o cimento que une esses diversos elementos da narrativa, a emblemática trilha sonora de Shinichirô Ikebe perfeitamente intercala as diferentes facetas da projeção. Os planos abertos cortam para os fechados de forma orgânica ao passo que a música desiste de sua imponência para abordar temas mais sutis. E com esses esforços do compositor conseguimos ter a imagem mental do épico e do intimista perfeitamente ligados.
Kurosawa, portanto deixa a pergunta central de sua obra – "o que é o homem?" – em aberto, espetando seu espectador que deve, por si só, alcançar a resposta que mais lhe agradar. E se não conseguirmos sair dessa eterna indagação, o que podemos fazer é sentir o grande alívio por Kagemusha, a Sombra do Samurai ter saído do papel e não permanecido apenas na rica mente de seu realizador.
Kagemusha, a Sombra do Samurai (Kagemusha – Japão/ EUA, 1980)
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Masato Ide, Akira Kurosawa
Elenco: Tatsuya Nakadai, Tsutomu Yamazaki, Ken’ichi Hagiwara, Jinpachi Nezu, Hideji Ôtaki, Daisuke Ryû
Gênero: Drama
Duração: 180 min.
Crítica | O Mendigo com uma Escopeta - Trasheira, Violência e Frases de Efeito
Baseado no trailer falso, parte do projeto Grindhouse de Robert Rodriguez e Quentin Tarantino, O Mendigo com uma Escopeta é uma jornada violenta, repleta de gore, em um universo praticamente distópico, que homenageia os clássicos filmes B. Naturalmente que a obra já nasce sem a intenção de ser levada a sério, com diálogos e situações propositalmente exagerados, portanto somente há de ser aproveitado por quem já sabe no que está se metendo. Em razão do alto teor de sanguinolência, além, é claro, de sua premissa absurda, o filme prova ser perfeito para apreciadores de filmes "R-Rated".
A obra conta com um bucólico início, com o mendigo (Rutger Hauer), que jamais é nomeado, andando em um trem de carga, passando pelas verdejantes paisagens até chegar em uma cidade a qual, claramente, não se encontra na melhor das condições. Logo nos minutos iniciais já contemplamos a violência que engolira esse local, especialmente após testemunharmos os feitos de Drake (Brian Downey) e seus dois filhos, Slick (Gregory Smith) e Ivan (Nick Bateman), a família que praticamente governa a cidade. Após ser vítima e testemunhar vários atos de selvageria, o mendigo decide que precisa fazer algo a respeito e compra uma escopeta na loja local, iniciando uma jornada sangrenta no intuito de limpar a cidade.
É bastante difícil decidir quais os melhores momentos de O Mendigo com uma Escopeta, aqueles que exploram, na plenitude, a violência já esperada do filme, ou as breves ocasiões de tranquilidade, nas quais o protagonista nos oferece um pouco de sua filosofia de boteco, além de outras informações de arregalar os olhos, como os hábitos violentos dos ursos (claramente uma tentativa de traçar paralelos entre ele e tais criaturas, por parte do roteiro). Todo o texto de John Davies exala exagero e isso funciona perfeitamente para criar esse cenário visceral, repleto de humor negro. O realismo certamente não é um dos objetivos aqui e, se você esperava isso do filme, é melhor passar longe.
Esse não compromisso com a realidade também é demonstrado com toda a clareza no tratamento de cor do filme, o qual intensifica as cores de forma a causar mais impacto, seja nas cenas de violência extrema, com o vermelho saltando aos olhos, ou na bucólica introdução do longa-metragem, com a paisagem verdejante chamando a atenção, criando uma bela oposição com o que veríamos mais tarde. O uso constante de filtros, em especial o vermelho e amarelo, também é notado – um funcionando para causar ainda mais desconforto com o gore, tão presente na narrativa, o outro para nos remeter a filmes antigos, afinal, essa é uma grande homenagem, como já mencionado, aos filmes B de outrora.
Rutger Hauer, o eterno Roy Batty de Blade Runner, é uma das peças centrais para o funcionamento da obra. Perfeitamente escalado, nos remetendo imediatamente aos seus papéis dos anos 1980, o ator faz cada uma de suas muitas frases de efeito funcionarem, pincelando seu personagem com os necessários tons de exagero, os quais fazem com que nós, automaticamente, passemos a gostar dele. Como um elemento estranho àquela cidade, o mendigo funciona como uma espécie de salvador, mesmo que adotando métodos violentos, sendo o único capaz de quebrar a estranha hierarquia ali instaurada.
Evidente que o longa está longe de ser perfeito e, apesar de acertar no tom e na forma como constrói seus personagens, John Davies, que assina o roteiro, peca pela falta de originalidade conforme a obra progride. Claro, temos a inesperada dupla bizarra no final do filme, mas me refiro à maneira como as situações progridem. O inexperiente Jason Eisener, na direção, também não demonstra um trabalho muito inspirado, com uma decupagem bastante simples que falha em realizar as necessárias homenagens ao cinema B antigo.
Tais elementos, porém, não devem afastar qualquer um que aprecie uma boa “trasheira” repleta de violência e frases de efeito. Situado praticamente em um universo distópico, O Mendigo com uma Escopeta é uma divertida aventura banhada em sangue, com Rutger Hauer nos fazendo dar boas risadas enquanto percorre a cidade chacinando os depravados criminosos que tomaram conta dela. Um belo filme B, no estilo dos filmes de outrora, realizado em pleno século XXI.
O Mendigo com uma Escopeta (Hobo with a Shotgun - Canadá, 2011)
Direção: Jason Eisener
Roteiro: John Davies
Elenco: Rutger Hauer, Pasha Ebrahimi, Robb Wells, Brian Downey, Gregory Smith, Nick Bateman, Drew O’Hara, Molly Dunsworth
Duração: 86 min.
Crítica | Entrevista com o Vampiro - A Sensualidade da Noite
A figura do vampiro povoou grande parte do século vinte – se estendendo, agora, para o XXI – tanto na literatura quanto no cinema. O clássico de Bram Stoker abriu portas para dezenas de adaptações e ficções nele inspiradas, popularizando o famoso Conde Drácula e suas muitas faces ao longo dos anos. Por muito tempo, o livro de Stoker se manteve como a fórmula para o vampiro e assim permaneceu inabalado até, por volta, dos anos 1970. Já nesta época, a imagem vampiresca passou a ser diretamente ligada ao gótico moderno e, através da literatura de Anne Rice, em seu romance de estreia, escrito em 1976, foi largado para trás o velho retrato das enormes capas e o próprio tom de terror. Em Entrevista com o Vampiro, essa criatura da noite passou a significar uma mistura homogênea de sensualidade e mistério, se tornando ainda mais atrativa do que já era.
Quase vinte anos depois, então já quatro livros das Crônicas Vampirescas escritos, a famosa obra de Rice ganhou sua adaptação para a tela grande. Com um roteiro escrito pela própria autora dos livros, foi demonstrado uma grande coragem por parte de Anne em alterar sua própria produção. Apesar de nos contar uma história que, em sua essência, é igual ao livro, o filme Entrevista com o Vampiro possui suas notáveis diferenças em relação ao material original. O resultado, porém, está longe de ser negativo, se classificando não só como uma ótima adaptação, como um dos mais memoráveis filmes sobre vampiros.
A narrativa tem início em São Francisco, já em 1994. Um jovem jornalista (Christian Slater) decide entrevistar uma figura que considera “interessante”. Não demora, porém, e ele descobre que se trata de um vampiro. A revelação vem como uma surpresa ausente de credibilidade e o jovem recebe as palavras de Louis (Brad Pitt) com um notável desdém. Cedo, porém, percebe que se trata da verdade. Neil Jordan insere, já em tais cenas introdutórias, o nítido tom de mistério que permanece inabalado pelo restante de seu filme. Através de sua direção precisa, que sabe trabalhar o olhar de cada ator, os protagonistas ganham uma evidente poética, que define a construção de suas personalidades, em especial, Louis.
A história de fato, então, tem início e o vampiro começa a dar seu depoimento, começando do dia que se tornou essa criatura da noite. A transição do presente para esse longínquo passado é marcada com maestria pela trilha – indicada para o Oscar – de Elliot Goldenthal. Somos imediatamente transportados para uma Nova Orleans do final do século XVIII. Através de melodias totalmente atmosféricas, mergulhamos nesse relato que, desde o princípio, não conta com a menor dificuldade em nos deixar completamente imersos. A narração em off de Louis permanece com força neste início e aos poucos vai se tornando mais esparsa, somente aparecendo em momentos emblemáticos – seja para trabalhar em cima de elipses, seja para dar um toque maior ao drama apresentado em tela.
O tom melancólico presente nos minutos iniciais, com o passar da projeção, dá lugar a um desconforto, em geral provocado por Lestat (Tom Cruise), sem dúvidas o personagem mais marcante da obra, que ora nos tira risadas vindas de seu humor negro, ora nos deixa marcadamente espantados pela sua aparente falta de humanidade. O roteiro de Rice, aqui mostra suas verdadeiras cores, colocando em perfeita oposição a figura desses dois personagens, Louis e Lestat – um luta para guardar seu lado humano e o outro para transformá-lo em um vampiro pleno. A química entre os dois é palpável, criando a nítida sensualidade tanto entre ambos, quanto em relação à suas vítimas. É interessante notar que, em nenhum ponto, temos o sexo colocado no palco, o filme trabalha em cima de algo mais íntimo, quase hormonal, como o constante êxtase nos segundos que precedem o primeiro beijo.
Esse ódio, paixão que se demonstra em tela, então ganha um caráter definitivamente perturbador com a presença da personagem Claudia (Kirsten Dunst). A menina, ainda na sua infância, é tratada à priori como filha, mas logo vai ganhando um caráter mais complexo, se tornando amiga e amante de Louis. Kirsten Dunst, ainda com seus onze anos de idade, impressiona e dá uma incrível profundidade à personagem. Sua expressão, quando primeiro aparece, se torna uma memória distante e ganha um evidente envelhecimento conforme progredimos na narrativa. “Sua idade é marcada pelo olhar” somos ditos pela narração de Louis e, de fato, isso ocorre, tornando ainda mais sólida a angústia da vampira em nunca envelhecer – afinal, chegamos ao ponto de realmente acreditarmos que ali está uma mulher – passado dos trinta – no corpo de criança.
A relação entre ela, Lestat e Louis é trabalhada organicamente pelo roteiro e nos é passada a sensação definitiva de já estarem juntos por anos e anos. A transição entre cada era se torna nítida pelo memorável trabalho da arte, que marca cada ano através de uma precisa escolha de figurino, além de construir cenários dinâmicos, vivos, que perfeitamente retratam a época retratada. Os vampiros, em sua aparência física, de fato, nunca mudam, mas suas roupas funcionam como a prova da passagem dos anos. Além disso, a arte utiliza essas mudanças das vestimentas para conduzir elipses mais discretas. Em diversos pontos percebemos um avanço em dias ou horas somente pela diferença do que os personagens vestem, requisitando uma atenção redobrada do espectador.
De forma ousada, o longa-metragem consegue se dividir visivelmente em três atos bastantes distintos – Nova Orleans, Paris e Nova Orleans novamente – em dados momentos essa fragmentação narrativa acaba provocando certo cansaço e nitidamente o terceiro ato assume um ritmo mais apressado que os outros, como se não tivesse sobrado tempo o suficiente para terminar o filme. Por essa razão, a obra permanece aquém do material original, que, embora seja substancialmente diferente, consegue estabelecer um ritmo mais fluido. De toda forma, não se trata de um problema estrutural gravíssimo, mas que, sim, chega a incomodar.
Dito isso, Entrevista com o Vampiro nos marcou em sua estreia e continua com toda sua potência mesmo vinte anos após sua primeira exibição. Certamente faz jus ao seu material de origem, se classificando como um dos melhores filmes de vampiros, que ajudou a sedimentar no imaginário popular as Crônicas Vampirescas de Anne Rice. Mesmo com alguns problemas estruturais, não deixa de ser uma inesquecível obra de mistério e sensualidade, trazendo para o cinema essa figura humanizada da criatura da noite.
Entrevista com o Vampiro (Interview with the Vampire – EUA, 1994)
Direção: Neil Jordan
Roteiro: Anne Rice
Elenco: Brad Pitt, Tom Cruise, Kirsten Dunst, Antonio Banderas, Christian Slater, Thandie Newton, Stephen Rea
Gênero: Drama
Duração: 123 min.
Crítica | O Amante da Rainha - A Constante Luta pela Liberdade
Baseado no romance A Visita do Médico Real, que, por sua vez, é inspirado por fatos históricos, O Amante da Rainha nos leva de volta para o século XVIII, retratando o declínio do Antigo Regime e a ascensão do Iluminismo. Adaptação do livro naturalmente romantiza os acontecimentos que marcaram o governo do Rei Christian VII da Dinamarca, não se trata de um documento histórico e sim um filme que facilmente se enquadra como um dos melhores de 2012, sendo nomeado, inclusive, para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e Globo de Ouro da mesma categoria.
A trama nos é contada em tom de flashback pela rainha, Caroline Matilda (Alicia Vikander), que saíra de seu país de criação, Inglaterra, para se casar com o rei Christian da Dinamarca (Mikkel Følsgaard). Recebida com desdém pelo governante ela rapidamente se vê em uma posição isolada e acaba se apaixonando pelo médico real, Johann Friedrich Struensee (Mads Mikkelsen), que fora convidado à corte pelo próprio rei, visto que esse fugia do conservadorismo presente no restante da nobreza, afinal, o doutor era alguém do povo, não estigmatizado pelos luxos da classe dominante, contando, inclusive, com ideias iluministas herdadas, motivadas pelo desabrochar do movimento através dos textos de Rousseau, Voltaire e muitos outros.
Curioso é como, ao assistir O Amante da Rainha, sentimos uma estranha e desconfortante proximidade com o que vemos hoje em dia, não somente no cenário geopolítico brasileiro, como o global. A desigualdade social é gigantesca e observamos governantes apenas se preocupando com o alto escalão, de fato, a minoria da população e ignorando solenemente o restante. A obra, apesar de seu título remeter a um romance, é muito mais que isso, é um filme político e histórico que muito bem resume a situação europeia à essa época, na qual a voz da razão, ainda contida, buscava gritar aos quatro ventos, fugindo das amarras da religião e de um Estado arcaico, com características que remetem à Idade Média.
Impressionante é como o filme consegue mesclar seu enredo com a História, criando uma mistura homogênea a tal ponto que um não pode existir sem o outro nesse universo. As ideias de Struensee (que de fato existiu), naturalmente pautadas em outros pensadores da época, são a base de nossa Idade Contemporânea, são um ataque direto à política feudal, na qual o pobre camponês não somente não tem chance alguma de ascensão social, como deve viver eternamente subjugado a um nobre egoísta, que não trabalha e vive às custas dos cofres do país. Não muito diferente dos políticos que temos aqui, não é? Mais interessante ainda é a forma extremamente realista como o diretor Nikolaj Arcel retrata essa fase, de forma tão orgânica que chegamos a entender cada personagem, prevendo, através de cada ação, qual será a sua consequência – trata-se de uma obra que nos faz pensar e a cada pensamento vem a angústia.
Arcel, porém, faz muito mais que isso, em sua decupagem transforma essa história em um relato consideravelmente intimista. Seu foco no olhar dos personagens transmite praticamente suas almas, suas intenções, medos e paixões. Os diálogos estão presentes somente quando realmente necessários, trazem peso e solidificam o que já induzíamos. Uma sequência em especial ilustra perfeitamente toda essa questão: a dança entre Johann e Caroline. Percebam aqui como a câmera não foge do olhar dos dois, estão, em um baile à fantasia, tirando suas máscaras pela primeira vez, a ardente paixão que os consome é colocada para fora e não é necessária nenhuma palavra para exteriorizar isso. A química entre Mikkelsen e Vikander chega a ser palpável e sentimo-nos desesperados a cada segundo que ficam sem encostar os lábios um no do outro. A cena, porém, não se resume a isso – percebam como a câmera, após o auge da dança, evita os olhos de ambos: estão se escondendo novamente, temendo perderem o controle e engatar nessa proibida união.
Não posso deixar, evidentemente, de exaltar os trabalhos ambos de Mads (um dos melhores atores da atualidade) quando de Alicia, que realmente mergulham em seus papéis, cativando a nós, espectadores, com toda a sua angústia, o amor e as ideias revolucionárias, as quais imploram para serem declamadas para todos ouvirem. Mikkelsen ainda traz uma interpretação que oscila entre a frieza e o calculismo até um calor verdadeiramente humano – seu olhar analítico perfeitamente se mescla com seu próprio drama pessoal. Mikkel Følsgaard também não deixa a desejar em seu papel como rei da Dinamarca, sua “loucura” chega a ser desesperadora, mas, com o tempo, vemos que foi tachado erroneamente pela corte. Temos aqui um homem preso a seu destino, ansiando pela liberdade, como Caroline e Johann, ele, porém, é ingênuo, é uma criança, que jamais poderia ter se sentado no trono, sendo manipulado cada vez por alguém diferente. Impossível não se deixar tocar pela relação entre o rei e seu médico, uma verdadeira amizade, não estivesse o bom doutor o utilizando para instaurar seus ideais iluministas.
Entramos, portanto, na camada política da obra, uma verdadeira delícia de se assistir, que muito nos remete a séries da atualidade como House of Cards e Game of Thrones. Assistimos golpes atrás de golpes, classes sociais distintas buscando exercer o poder de fato. Com nosso olhar atual, naturalmente, torcemos por Struensee, que busca conferir direitos aos camponeses, mas, ao mesmo tempo, entendemos as angústias da nobreza, ainda que essa fosse um câncer em uma sociedade que beirava seu fim, sugando os recursos do Estado sem nada oferecer. Isso tudo coroado por um excelente desenho de produção e figurino, que nos transportam imediatamente para o século XVII de tal forma que até esquecemos de nossos arredores.
O Amante da Rainha é um daqueles filmes que nos deixam estáticos enquanto os créditos rolam. Somos tomados por uma tristeza, não só pelos eventos que assistimos, como pelo próprio fato da obra ter chegado ao fim. Certamente merecedor de sua indicação a Melhor Filme Estrangeiro, temos aqui um longa-metragem obrigatório para todos, que não só nos traz uma fantástica história, como um olhar profundamente imersivo sobre a transição do Antigo Regime para o Novo, com fantásticas atuações e uma direção de se aplaudir, que não nos permite, a qualquer instante, tirar os olhos da tela.
O Amante da Rainha (En kongelig affære – Dinamarca/ Suécia/ República Tcheca/ Alemanha, 2012)
Direção: Nikolaj Arcel
Roteiro: Rasmus Heisterberg, Nikolaj Arcel (baseado no romance de Bodil Steensen-Leth)
Elenco: Alicia Vikander, Mads Mikkelsen, Mikkel Boe Følsgaard, Trine Dyrholm, David Dencik, Thomas W. Gabrielsson, Cyron Melville
Gênero: Drama
Duração: 137 min.
Crítica | O Mestre - O Terror da Religião
O Mestre definitivamente não é um filme fácil de ser assistido, ele conta com uma narrativa lenta e que toma como foco o emocional de seus personagens, enquanto evidencia a crítica do diretor/ roteirista a cultos e religiões que exploram a volatilidade das pessoas – algo iniciado alguns anos atrás em Sangue Negro, através da Igreja da Terceira Revelação.
Do princípio do século XX partimos para sua segunda metade. É o pós-guerra e o veterano Freddie Quell (Joaquin Phoenix) retorna para os Estados Unidos evidentemente abalado pelo que presenciara no combate. É um homem repleto de tiques nervosos, com um dos lados de seu rosto praticamente travado e uma nítida falta de desenvoltura social. Em sua busca por um novo emprego, visto que não consegue se manter em um, graças aos abalos sofridos pela sua personalidade, Quell conhece Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman), também conhecido como Mestre, o líder de um estranho culto que busca resgatar as memórias de vidas passadas a fim de resolver problemas atuais do indivíduo. Prontamente Freddie se envolve com o grupo e sua vida passa a ser dependente disso.
Inspirando-se na cientologia e seu criador, L. Ron Hubbard, Anderson procura construir três diferentes linhas narrativas que delineiam toda a projeção. A primeira é a relação entre Quell e o Mestre, e o interessante é como a necessidade entre eles aqui é mútua, como se um fosse viciado no outro. Mesmo diante dos conselhos da excêntrica família de Dodd, ele se recusa a abandonar o veterano. Dessa forma o roteiro nos mostra o quão frágil é a disposição do próprio homem que chamam de Mestre, ao ponto de que ele necessita se apoiar em outro homem e constantemente requisita dele um estranho coquetel alcoólico, transformando, portanto, Freddie em uma nítida forma de escapismo. A construção dessa relação culmina no clímax, um verdadeiro tour de forcede ambos os atores, que demonstram toda a angústia presente na separação dos dois, fazendo de Phoenix e Hoffman certamente merecedores de suas indicações. A sequência apenas ganha mais impacto pela decupagem de Anderson, que utiliza o plano e o contra-plano para trazer um dinamismo maior – em uma cena onde ambos estão sentados o nervosismo é gigante no espectador -, além de evidenciar a reação, as lágrimas que ambos deixam cair.
A segunda linha narrativa, naturalmente ligada às outras duas, é a construção do culto de Lancaster, o qual é questionado inúmeras vezes ao longo da projeção. Chega a ser assustador a forma como os devotos se entregam para os ensinamentos de Dodd – o ápice sendo a personagem de Laura Dern – e o fato de qualquer questionamento o tira do sério, como Paul procura deixar claro em seu roteiro. Trata-se de uma crença onde não há espaço para diálogo, ou, evidentemente, tudo irá cair por terra. Aqui a atuação de Hoffman é essencial e mesmo diante da fragilidade de seu discurso, ele faz Dodd parecer o detentor da razão, fazendo qualquer outro personagem perder a força. É interessante como em inúmeros momentos quem soa como o protagonista é Lancaster, ao passo que o diretor sabiamente deixa Quell reduzido a um canto em determinadas sequências, não criando, portanto, uma divisão de foco ao colocar os dois atores desempenhando o mesmo papel – defender o culto.
Já a terceira principal linha que o filme segue é a dinâmica da família Dodd, que inúmeras vezes é a problemática dentro desse circuito fechado. Amy Adams, como a esposa do Mestre, nos traz certamente uma de suas melhores atuações e tira o poder de Lancaster simplesmente através de algumas perguntas. Ela é a mão manipuladora por trás do líder do culto, mas ainda assim ela precisa dele. A presença de Quell é emblemática na relação, constituindo um único ponto no qual o Mestre efetivamente demonstra sua independência – ao contrário de todos os desejos e recomendações ele deixa seu amigo ali (e essa amizade, ainda que dotada da necessidade já explorada antes no texto, é evidente para o espectador). O restante dos familiares tem funções narrativas muito bem definidas e introduzem problemáticas pontuais ao longo do desenrolar da obra, mas servem para demonstrar a volatilidade das pessoas ligadas ao culto, que mudam de opinião a cada virada de página, sendo completamente manipuladas e aqui mesmo Dodd se enquadra.
O que ouso dizer ser o único problema da obra é a sua montagem. Ao estabelecer inúmeras elipses ao longo da projeção, muitas vezes ficamos confusos de quando estamos, quanto tempo se passou, algo que efetivamente impacta a relação entre personagens. Tal problema se revela em grande peso no trecho final da obra. A intenção de Anderson é clara, nos colocar na incerta mente de seu personagem principal, mas, com isso, um filme apenas ganha um aspecto de pressa que atua contra si próprio, o que é irônico, considerando a lentidão narrativa vigente na sua maior parte.
O Mestre é, acima de tudo, uma grande advertência, de como não devemos nos deixar ser levados por promessas vindas de uma excepcional oratória. Paul Thomas Anderson, porém, mergulha mais profundamente e nos traz uma verdadeira história de amizade, contada, naturalmente, da forma mais excêntrica possível em virtude de seu problemático protagonista. Mais uma vez, não é um filme fácil de ser assistido, não é o melhor de seu diretor – posto ainda ocupado por Sangue Negro– mas certamente merece nossa atenção, nem que seja para decidirmos interromper a projeção em sua metade.
O Mestre (The Master – EUA, 2012)
Direção: Paul Thomas Anderson
Roteiro: Paul Thomas Anderson
Elenco: Philip Seymour Hoffman, Joaquin Phoenix, Amy Adams, Laura Dern, Jesse Plemons
Duração: 144 min.