Crítica | O Caso Richard Jewell - Clint Eastwood e o circo da imprensa
Clint Eastwood não demonstra sinais de fraqueza. Com 90 anos e a energia de um adolescente, o lendário ator e cineasta continua produzindo filmes anualmente, dedicado a explorar - nesta atual fase - diferentes facetas de heróismo nos EUA em uma série de histórias inspiradas em fatos. Começou com Sniper Americano, seguiu-se por Sully: O Herói do Rio Hudson, o péssimo 15h17 - Trem para Paris e agora O Caso Richard Jewell.
A trama é inspirada nos eventos do atentado nos jogos olímpicos da Geórgia em 1996. Trabalhando nas festividades, o segurança Richard Jewell (Paul Walter Hauser) encontra uma mochila misteriosa, que então é revelada como uma bomba ativa. Mesmo com a explosão, a rápida ação de Jewell ajuda a salvar diversas vidas, e o pacato segurança que mora com a mãe (Kathy Bates) é visto como um herói pela comunidade. Porém, quando o FBI inicia uma investigação que coloca Jewell como o principal suspeito de armar os explosivos, a mídia transforma sua vida em um inferno.
O roteiro foi escrito por Billy Ray (do “primo temático” Capitão Phillips) a partir do artigo da Vanity Fair "American Nightmare: The Ballad of Richard Jewell" de Marie Brenner. Como recontagem de eventos, é um trabalho admirável ao optar por narrar toda a trajetória de Richard Jewell como auxiliar de escritório, segurança de universidade e então o caminho que o coloca nos Jogos Olímpicos; onde temos um relato quase documental de como o trabalho de segurança, e também da cobertura do FBI, foram posicionados ali.
O problema fica nesse primeiro ato. A decisão de Ray e Eastwood em acompanhar o cotidiano “pacato” de Jewell é compreensível para que a reviravolta do circo midiático seja mais impactante, mas o resultado é um pouco maçante. Por quase 30 minutos, estamos apenas acompanhando eventos que se alongam demais - como uma sequência descartável que ilustra uma multidão dançando Macarena, talvez em uma tentativa de contextualizar a década de 90.
Quando Eastwood enfim nos leva para o aspecto mais sufocante da trama, as engrenagens giram com mais força, e a mensagem do filme contra o imediatismo e a cultura do sensacionalismo fica bem forte - e relevante. Temos mais um clássico exemplo de narrativa onde o protagonista precisa evitar o escrutínio de jornalistas e repórteres acampados do lado de fora de sua casa, tal como a intrusão do FBI em invadir a casa de sua mãe e confiscar itens aleatórios. E ao mesmo tempo em que sentimos a injustiça sofrida por Jewell, Eastwood é capaz de balancear um bom alívio cômico, principalmente pela entrada de um sensacional Sam Rockwell, que vive o amigo e advogado do protagonista.
Mas se Richard Jewell é tão efetivo quanto acaba sendo, é por conta de Paul Walter Hauser. O ator já havia sido um ladrão de cenas em filmes como Infiltrado na Klan e Eu, Tonya, e tem aqui um papel extremamente suculento e repleto de camadas. Hauser é hábil ao representar Jewell como um homem simpático e bondoso, mas também com um desejo interno fortíssimo de ser levado a sério por seus superiores. Quando vemos Jewell enfim verbalizar essa frustração, rendendo um desempenho mais dramático/emotivo, Hauser brilha e se firma como um dos nomes mais promissores dessa geração.
De forma similar, Kathy Bates faz um trabalho formidável no papel da mãe de Jewell, sendo capaz de garantir um dos momentos mais tocantes da projeção ao desabafar a pressão sofrida em torno da situação toda. É uma cena íntima e poderosa, e que Eastwood comanda com precisão ao mantê-la praticamente em close durante toda a sua duração, alternando sabiamente para reações de alguns personagens - especialmente a jornalista Kathy Scruggs, vivida por Olivia Wilde.
Wilde, inclusive, talvez seja o grande problema do filme inteiro. Na pele da jornalista que vaza a investigação do FBI para o público, e que acaba desencadeando toda a série de eventos negativos na vida de Jewell, Wilde opta por retratá-la como uma personagem de desenho animado: é extremamente maniqueísta e maléfica, literalmente gargalhando com malícia (por uns 2 minutos, sem qualquer interjeição) ao ver seu artigo publicado na primeira página do jornal. É uma escolha narrativa controversa, mas cujo grande problema está no fato de Scruggs ser uma figura completamente descolada desse universo mais realista (afinal, Eastwood até coloca o Jewell real durante uma imagem televisiva), saltando como uma grande e incongruente caricatura.
Ainda que um pouco mais longo do que o necessário, O Caso Richard Jewell é um drama eficiente que se apoia no roteiro sólido e no talentoso elenco. Paul Walter Hauser tem a chance de mostrar todo seu impressionante potencial dramático, enquanto o Clint Eastwood segue com sua invejável e lendária filmografia.
O Caso Richard Jewell (Richard Jewell, EUA - 2019)
Direção: Clint Eastwood
Roteiro: Billy Ray, baseado no artigo de Marie Brenner
Elenco: Paul Walter Hauser, Sam Rockwell, Kathy Bates, Olivia Wilde, Jon Hamm, Nina Arianda, Ian Gomez
Gênero: Drama
Duração: 131 min
https://www.youtube.com/watch?v=VLDPvYZgM0Q&t=
Crítica | The Mandalorian: 1ª temporada - Star Wars triunfa no streaming
Star Wars nasceu nos cinemas, mas desde sua concepção, sempre esteve mirada na televisão. Ao lançar Uma Nova Esperança em 1977, George Lucas sempre reforçou como seriados e programas matinês forma a inspiração para o formato de sua saga, que não por acaso, é dividida por “episódios" até hoje. Naturalmente, após duas produções animadas, era o destino dessa galáxia muito, muito distante que suas histórias fossem parar em uma série de TV live-action.
Carro-chefe do recém inaugurado serviço de streaming Disney+, The Mandalorian é uma aposta ousada. Após ter dado o pontapé do Universo Cinematográfico da Marvel Studios com Homem de Ferro, nada mais justo do que Jon Favreau tocar a empreitada, contando com auxílio de Dave Filoni, produtor responsável por manter a chama de Star Wars acesa na TV com Clone Wars, Rebels e a recente Resistance. O resultado talvez seja o Star Wars mais "raiz" em anos, que busca inspiração no faroeste e nos seriados da década de 50 para a criação de uma obra impressionante.
A trama de The Mandalorian é ambientada algum tempo após os eventos de O Retorno de Jedi, começando a preencher a lacuna que levará a trama para O Despertar da Força. O foco vai para o misterioso caçador de recompensas mandaloriano (Pedro Pascal), que entre diferentes aventuras e missões pela galáxia, acaba se afeiçoando por um misterioso e poderoso bebê que domina a Força. Traindo seu código mercenário, ele ajuda a proteger a criança de forças imperiais que o cobiçam.
Sem vergonha de ser episódico
Ao contrário da maioria das produções televisivas contemporâneas, The Mandalorian é assumidamente episódica. Há uma trama que se desenvolve ao longo de diferentes episódios, sim, mas cada episódio da série serve como sua própria e isolada aventura; tanto que a decisão da Disney em lançar um capítulo por semana não poderia ser mais acertada, assim como a perfeita duração de enxutos 30 minutos. The Mandalorian nunca é arrastado ou longo demais, e o espectador tem a dose apropriada de aventuras espaciais semanalmente.
Claro, tal decisão narrativa de uma trama episódica requer trabalho. Lá para a metade da temporada, com os episódios Sanctuary, The Gunslinger e The Prisoner, estamos na porção mais posicionada como “filler”. São três missões isoladas do Mandaloriano, que ajudam a introduzir novos personagens que virão a ser importantes (a Cara Dune de Gina Carano, principalmente) e expandir a mitologia desse universo riquíssimo. O problema é que justamente nessa trinca de episódios, temos o trabalho mais fraco em termos de roteiro e direção. Filoni é um bom conhecedor do universo, mas tem uma gramática visual pouco inspirada para o nível cinematográfico que a série parece almejar. Funciona para nos apresentar ao universo durante o piloto, mas falta pulso às cenas de ação e também nos quadros mais “faroeste” que sempre pipocam aqui e ali.
De maneira similar, Bryce Dallas Howard faz sua estreia na direção de um episódio inspirado em Os Sete Samurais, quando Mando precisa ajudar uma vila a se defender de um ataque tribal, mas a atriz pouco pode oferecer em termos visuais - mais parecendo um clássico caso de nepotismo, considerando que seu pai (Ron Howard) dirigiu Han Solo: Uma História Star Wars no ano anterior.
Mascarados e marionetes
Mas quando The Mandalorian acerta, temos grandeza. Atrelados à trama principal que se desenrola pela primeira temporada, Rick Famuyiwa, Deborah Chow e Taika Waititi conseguem trazer uma escala sensacional para o Star Wars televisivo. Seja em batalhas espaciais, lutas corporais ou duelos de blaster dignos de Sergio Leone, a ação bem planejada de The Mandalorian não deixa a desejar, com os destaques mais claros indo para a batalha dos Mandalorianos no terceiro episódio (de Chow) e o insano confronto final entre o protagonista e uma nave TIE Fighter no season finale (de Waiiti, bem mais inspirado do que no péssimo Thor: Ragnarok).
É uma trama simples, mas que ganha força graças a seus personagens centrais, algo que merece extra crédito quando percebemos que nosso protagonista jamais revela seu rosto. Ainda assim, Pedro Pascal é capaz de oferecer uma presença física imponente, ao passo em que os melhores diretores da temporada (em especial, Deborah Chow) são capazes de enquadrar e iluminar o icônico capacete de forma a quase mudar suas expressões. Sabemos exatamente o que o misterioso mandaloriano está pensando ou sentindo, mesmo sem ter sua expressão.
O outro fator que ajuda no protagonismo e no envolvimento do espectador é, claro, o personagem que ficou conhecido como Baby Yoda. Protagonista dos maiores memes e movimentação online do último semestre, o pequeno alienígena da raça do mestre Jedi de Frank Oz é instantaneamente carismático, graças à sua aparência adorável e também o fato de o personagem ser uma criação prática - uma marionete, ao invés de um boneco CGI. Sua relação com o Mandaloriano, que claramente enxerga no pequeno uma identificação com seu próprio passado (onde foi separado dos pais) é uma das mais bem resolvidas e naturais de toda a saga criada por George Lucas. Sem falar que, dada a naturalidade de suas ações, o humor de Baby Yoda nunca soa forçado ou infantil demais. Um equilíbrio perfeito.
A Força é forte no streaming
A situação de Star Wars nos cinemas pode estar frustrante após A Ascensão Skywalker, mas o futuro no streaming parece brilhante após The Mandalorian. Jon Favreau comanda uma série rápida, divertida e que tem momentos de grandeza cinematográfica. É o começo de uma nova e empolgante fase para a franquia.
The Mandalorian - 1ª Temporada (EUA, 2019)
Showrunner: Jon Favreau
Direção: Dave Filoni, Rick Famuyiwa, Deborah Chow, Bryce Dallas Howard, Taika Waititi
Roteiro: Jon Favreau, Rick Famuyiwa, Christopher L. Yost, Dave Filoni, baseado nos personagens de George Lucas
Elenco: Pedro Pascal, Nick Nolte, Gina Carano, Bill Weathers, Giancarlo Esposito, Taika Waititi, Werner Herzog, Emily Swallow, Ming-Na Wen, Jake Cannavale, Clancy Brown, Bill Bur, Natalia Tena
Gênero: Aventura
Emissora: Disney+
Episódios: 8
Duração: 30/40 min
https://www.youtube.com/watch?v=aOC8E8z_ifw
Crítica | Star Wars: A Ascensão Skywalker - Um desfecho desesperado
O final é sempre a parte mais difícil de uma trilogia. Especialmente quando estamos falando de uma história que não foi planejada desde o início. Mas não é algo impossível, afinal, George Lucas conquistou o mundo com os filmes clássicos de Star Wars; que tiveram sua trama sendo desenvolvendo ao longo dos anos, enquanto a trilogia prelúdio foi altamente criticada - mesmo com todos os três episódios já previamente antecipados. Eis que chegamos ao Episódio IX com A Ascensão Skywalker, filme que marca o fim da nova trilogia da Disney, e - consequentemente - é usado para amarrar todos os 9 filmes da chamada Saga Skywalker.
Após O Despertar da Força oferecer um retorno perfeitamente seguro pelas mãos de J.J. Abrams, o cineasta Rian Johnson dividiu a legião de fãs com seu “controverso" Os Últimos Jedi, um filme desafiador e repleto de decisões arriscadas. Decisões que, por motivos que anos depois eu ainda não compreendo por completo, enfureceram os fãs que não tiveram aquilo que eles queriam ter. De volta às mãos de Abrams, o Episódio IX tem essa tarefa extra de não apenas resolver os 9 filmes da saga, mas de reconciliar essa porção dos admiradores. Tudo isso nas mãos de um diretor que não é conhecido por encerrar histórias, mas sim começá-las.
Não importa se você é J.J. Abrams ou George Lucas, não havia como essa equação dar certo.
A trama de A Ascensão Skywalker começa algum tempo depois do episódio anterior, com a Resistência ainda em guerra com a Primeira Ordem, liderada pelo complexo Kylo Ren (Adam Driver). Enquanto a jovem Rey (Daisy Ridley) segue com seu treinamento para se tornar uma Jedi, todos os olhos se viram para o inesperado ressurgimento do Imperador Palpatine (Ian McDiarmid), que retornou das trevas para trazer uma nova ordem à galáxia, aliando-se a Kylo Ren para tentar capturar e explorar o passado misterioso de Rey.
É a batalha final, mais uma vez. Um dos grandes medos em torno da produção era justamente o de que Abrams e o roteirista Chris Terrio (além de Derek Connolly e Colin Trevorrow, que têm crédito de história graças ao envolvimento da dupla no passado) voltariam atrás em algumas decisões bem definitivas de Johnson em seu Episódio VIII. O conflito de Rey em torno de seus pais parecia resolvido, mas a dupla insiste em remexer nisso ao abandonar a forte ideia de uma pessoa comum que era jogada em uma trama maior. Se Kylo Ren parecia um líder nato e sem velhos decrépitos manipulando seus movimentos, agora temos novamente Palpatine como grande antagonista - e ainda trazendo de volta a máscara que havia sido literalmente despedaçada no anterior. Johnson tentou “matar o passado” para criar algo novo, mas Abrams parece desesperado em tentar resgatá-lo e, literalmente, esfregar na cara do público.
Só nos primeiros quinze minutos, Abrams e Terrio sacrificam qualquer senso de ritmo e pacing para introduzir novos vilões, conflitos, poderes da Força e macguffins que servem meramente para movimentar pontos da trama. A sensação de pressa e descontrole é notável, assim como o desejo de tentar agradar tanto aos fãs quanto detratores de Os Últimos Jedi, mantendo ideias opostas em um equilíbrio incongruente: o texto pode dar indiretas para quando uma personagem é repreendida por jogar um sabre de luz para longe, mas mantém a ideia de uma conexão pela Força entre Kylo e Rey.
No que diz respeito ao desfecho em si, e no que toda essa trilogia vinha construindo, o resultado é bem complicado. Visualmente, temos os elementos que os fãs poderiam esperar de um filme que se propõem a encerrar uma história sobre os Skywalker - ainda que, sinceramente, ela estivesse perfeitamente finalizada com O Retorno de Jedi. Dentro de sua própria lógica (e da trilogia como um todo), a dupla corre para trazer respostas apressadas, contraditórias dentro de seu próprio universo e repletas de suspensões de descrença, mesmo para os padrões de uma história fantasiosa. Não há riscos, e as soluções parecem fáceis demais, principalmente levando em conta o deus ex machina sem sentido (mas visualmente estimulante) durante a grande batalha espacial no clímax.
Na direção, o brilho e paixão que Abrams explodiu nas telas com O Despertar da Força (um filme feito com carinho notável) parece substituído pelo convencional. As cenas de ação são mais burocráticas, com cortes excessivos e uma dependência muito maior nos efeitos visuais do que havíamos visto antes. Há set pieces grandiosas, vide a batalha em cima dos destroços da Estrela da Morte em um oceano agitado, ou o elegante plano longo em que Finn, Poe e Chewbacca cruzam um corredor disparando contra legiões de stormtroopers. Mas quando Abrams depende inteiramente de CGI, como longas e genéricas batalhas de naves, o resultado tende a brilhar menos - e, infelizmente, o climax envolvendo o Imperador também se encaixa nessa categoria, dependendo do fan service e da sempre envolvente trilha sonora de John Williams para conquistar o espectador.
Se há algo que realmente dispensa elogios em A Ascensão Skywalker, e em toda a nova trilogia, é o talento de seu elenco. Agora bem mais entrosados e com mais cenas juntos, Daisy Ridley, John Boyega e Oscar Isaac garantem uma dinâmica agradável e divertida entre Rey, Finn e Poe, com diferentes conflitos e interações entre o trio - desde um romance enrustido até questionamentos sobre capacidades de liderança. O sempre expressivo Adam Driver também garante mais bons momentos a Kylo Ren, ainda que Abrams cometa o erro de esconder o rosto do ator por trás da máscara do vilão por tanto tempo de projeção.
O aproveitamento das imagens de arquivo de Carrie Fisher, que faleceu antes do lançamento do Episódio VIII, é natural e orgânico dentro da proposta - ainda que notavelmente deslocado dos demais eventos da trama. Vale destacar também os retornos de Ian McDiarmid, sempre diabolicamente inspirado como o vilão Palpatine, e também de Billy Dee Williams, que confere uma energia contagiante para seu Lando Calrissian. Fica a menção também para Keri Russell, capaz de oferecer uma presença marcante mesmo sem mostrar o rosto (sempre por trás do capacete de Zorii Bliss) e da novata Naomie Ackie, que traz força e melancolia para sua Jannah mesmo com pouco tempo de tela.
Star Wars: A Ascensão Skywalker é um filme atropelado, inchado e desesperado para agradar a todos, sacrificando sua própria identidade em função de tentar satisfazer a diferentes gerações de espectadores. Há bons elementos e um elenco entrosado, mas, no fim, a nova trilogia não traz um desfecho que realmente justifica três novos filmes - até mesmo porque aquele visto em O Retorno de Jedi é infinitamente mais satisfatório. Uma pena.
Star Wars: A Ascensão Skywalker (Star Wars: The Rise of Skywalker, EUA - 2019)
Direção: J.J. Abrams
Roteiro: J.J. Abrams e Chris Terrio, baseado nos personagens de George Lucas
Elenco: Daisy Ridley, John Boyega, Oscar Isaac, Adam Driver, Carrie Fisher, Mark Hamill, Billy Dee Williams, Anthony Daniels, Ian McDiarmid, Richard E. Grant, Kelly Marie Tran, Naomie Ackie, Dominic Monaghan, Keri Russell, Domhnall Gleeson, Joonas Suotamo, Greg Grunberg, Billie Lourd
Gênero: Aventura, Ficção Científica
Duração: 141 min
https://www.youtube.com/watch?v=jiRTfUYOHCs&t=
Crítica | Watchmen - 1ª Temporada - Quando o ar vira ouro
Os corações de todos os fãs, assim como as cobras de Alan Moore, se apertam quando surge mais uma conversa sobre adaptar a lendária graphic novel Watchmen para o meio audiovisual. Zack Snyder cuidou da tarefa hercúlea em 2009 com seu ambicioso e conciso filme em longa-metragem, mas Damon Lindelof e a HBO resolveram brincar com algo ainda mais perigoso: uma continuação para a história definitiva de super-heróis. Mesmo a DC, lançando prelúdios e crossovers paralelos, não havia tido a ousadia de mostrar o que acontece além daquele final perfeito. Mas aqui estamos.
Durante 9 episódios, o co-criador de Lost e The Leftovers ofereceu sua interpretação do material, chamando a HQ de Moore de “Velho Testamento” enquanto batizava sua série de “Novo Testamento”. Tendo a história completa em mãos após a exibição do episódio finai, fica bem claro que Watchmen foi uma série de TV perfeitamente atrelada ao material original, explorando suas próprias ideias no universo criado em 1985, e até mesmo realizando a proeza improvável de tornar a graphic novel base mais rica e complexa com suas adições.
Quando o primeiro episódio, “It's Summer and We’re Running out of Ice”, começa, o espectador ainda não sabe o que esperar. É um bom piloto que introduz o novo universo, brinca com as referências ao quadrinho e estabelece um novo mistério com o assassinato de um chefe de polícia. Desde já, o roteiro de Lindelof e sua equipe começa a atualizar temas da HQ: se na década de 80 a paranoia da Guerra Fria e o medo do holocausto nuclear provocavam tensão, hoje temos a crise política bipolar e as questões raciais nos EUA (começar a série com o Massacre de Tulsa em 1921 é uma decisão poderosa). Colocar um grupo de supremacia branca, que se apropriou e deturpou os escritos de Rorschach em seu diário, é uma ideia excelente, tal como a discussão que se desenrola ao longo desses primeiros episódios - em perfeito alinhamento com o tipo de discurso que Moore estabeleceu em sua obra-prima.
Nesse universo, Lindelof é perfeitamente capaz de trazer figuras carismáticas e envolventes para movimentar os eventos. A principal delas, claro, é a Angela Abar de Regina King, uma ex-policial que atua como a vigilante Sister Night na força tarefa de Tulsa. A atriz vencedora do Oscar oferece uma performance forte e cheia de camadas, onde vemos as inseguranças e medos de Angela sempre à tona, mas também sua personalidade badass ao assumir o incrível traje de uma freira mercenária. Ao lado dela, também temos o melancólico Looking Glass do excelente Tim Blake Nelson, uma das figuras mais trágicas e interessantes desse novo universo - e sua conexão traumática com os grandes eventos de Watchmen rendem uma das imagens mais impressionantes do ano todo. Fechando a trinca, a Lady Trieu de Hong Chau garante uma das figuras mais enigmáticas e suspeitas da série, fruto da performance ambígua da atriz chinesa.
Mas então, Lindelof começa a revelar conexões cada vez maiores com a graphic novel. E é aí que Watchmen realmente se prova como a sequência definitiva para a HQ (e não o filme de Zack Snyder, isso precisa ficar bem claro), usando personagens como Laurie Blake, Adrian Veidt e o poderoso Doutor Manhattan de forma surpreendente e complexa. Jean Smart traz todo o humor e irreverência da antiga Espectral, agora bem mais cínica e sarcástica como seu pai, ao passo em que Jeremy Irons surge simplesmente brilhante como um Ozymandias mais insano e teatral, dominando cada segundo de cena. Para não entregar spoilers, basta dizer que, ainda que o visual tenha deixado a desejar, o intérprete do Doutor Manhattan fez um bom trabalho ao retratar a falta de emoções e alienação do personagem divino de forma convincente, mas ainda mantendo traços de seus sentimentos - algo que o filme de Snyder, por exemplo, pecou ao torná-lo completamente alienado.
Quando a série chega a seu sexto episódio, This Extraordinary Being, porém, vemos a conexão mais audaciosa com a série de papel. Usando uma ponta solta da HQ original, Lindelof trouxe uma história de origem para o misterioso Justiça Encapuzada, o primeiro vigilante mascarado do universo de Watchmen, e, partir disso, girou a maior parte dos acontecimentos da temporada em torno dele. Rodado em preto e branco e usando uma montagem complexa, o episódio é um noir pesado e assustador pela luta de um policial negro, que usa uma máscara para poder sobreviver, contra uma conspiração racista e de controle mental. É também a melhor análise e reflexão sobre o que faz uma pessoa usar uma máscara e assumir uma identidade anônima que a série foi capaz de oferecer - algo que pouquíssimas histórias do gênero, convenhamos, o fazem.
E não poderia deixar essa crítica passar sem falar do episódio A God Walks into Abar, que enfim explica como o Doutor Manhattan está conectado a toda essa história da primeira temporada. É o tipo de episódio movido inteiramente pela estrutura que seu roteiro aborda, que escolhe posicionar-se na forma como Manhattan enxerga o tempo: simultaneamente. Cada corte e mudança de tempo/espaço está relacionada à percepção com a qual o ser azul conta sua história, toda centrada em um diálogo com Angela em um bar. É simplesmente perfeito, e que também garante excelentes performances de seus intérpretes e uma direção segura de Nicole Kassell - que sabiamente esconde o rosto de Manhattan por quase 30 minutos através de uma mise en scene engenhosa.
A HBO trouxe grandes produções em 2019, e Watchmen talvez seja a mais surpreendente e satisfatória. São 9 episódios concisos e diferentes entre si, capturando o espírito da graphic novel de Alan Moore ao mesmo tempo em que a expande de forma audaciosa e inteligente. Watchmen, a série, faz o que Laurie fez com o Doutor Manhattan na graphic novel original: convencer todos nós de que milagres, como o ar se transformando em ouro, são possíveis de acontecer.
Watchmen - 1ª Temporada (EUA, 2019)
Showrunner: Damon Lindelof
Direção: Nicole Kassell, Stephen Williams, Steph Green, AndrIj Parekh, David Semel
Roteiro: Damon Lindelof, Nick Cuse, Lila Byock, Cristal Henry, Cord Jefferson, Jeff Jensen, Claire Kiechel, Stacy Osei-Kuffour, Carly Wray
Elenco: Regina King, Jeremy Irons, Jean Smart, Tim Blake Nelson, Yahya Abdul-Mateen II, Hong Chau, Don Johnson, Tom Mison, Sara Vickers, Louis Gossett Jr., James Wolk, Frances Fisher, Jessica Camacho, Andrew Howard, Jovan Adepo
Emissora: HBO
Episódios: 9
Duração: 50 min
As 10 melhores séries da década
O ano de 2019 marca o fim de mais uma década, que pode se destacar como uma das mais ricas e diversas da cultura pop. Além de grandes filmes, games e livros, tivemos ótimos 10 anos para a televisão, que entrou em uma nova Era de Ouro com a ininterrupta onda de qualidade.
Em uma tarefa difícil, selecionamos as 10 melhores séries de TV/streaming lançadas na janela de 2010 a 2019 em um ranking.
Confira abaixo.
10. Rick and Morty
Desde Os Simpsons não tínhamos uma série de animação se tornando tão popular e bem avaliada de forma rápida. A criação de Dan Harmon e Justin Rolland explora o melhor das ideias mais profundas e perturbadoras da ficção científica em um misto de humor escatológico e drama existencial. Rick and Morty já nasceu clássica.
9. Atlanta
E foi assim que Donald Glover conquistou Hollywood. Com apenas duas temporadas até agora, Atlanta se provou como uma das séries de comédia mais inventivas e inteligentes dos últimos tempos, com temas sociais, episódios antológicos e puro surrealismo se misturando de forma única. Contando os dedos para a estreia da terceira temporada.

8. The Marvelous Mrs. Maisel
Por falar em grande refinamento cômico, é da Amazon a grande série de comédia destes últimos dez anos. Ao narrar a história de uma dona de casa rica que resolve trilhar a carreira de comediante stand up na década de 50, Amy Sherman-Palladino trouxe uma das séries mais bem escritas, projetadas e - ênfase aqui - dirigidas dos últimos anos. Alie isso ao carisma explosivo de Rachel Brosnahan, e temos uma série simplesmente irresistível.
7. Game of Thrones
Existe a televisão antes de Game of Thrones e a televisão depois de Game of Thrones. Ainda que a série de fantasia da HBO tenha derrapado em suas temporadas derradeiras, não desfazem o feito histórico da série de D.B. Weiss e David Benioff, que ajudou a elevar a TV a um nível cinematográfico nunca antes visto, capturando o coração de fãs com tramas elaboradas e personagens inesquecíveis.
6. Watchmen
Talvez seja cedo para definir a ousada adaptação/continuação de Damon Lindelof para a obra-prima de Alan Moore, mas tudo o que vimos de Watchmen, foi irretocável. A série é um primor na forma como desenrola sua narrativa, cria um universo inteiramente novo e também como sua direção explora diferentes linhas temporais, temas espinhosos e um elenco fenomenal. Uma série viciante, e que só deve ficar melhor com o tempo.
5. True Detective
O policial é o gênero mais batido e sobrecarregado da televisão americana, mas a HBO e Nic Pizzolatto conseguiram injetar vida nova com a excepcional antologia True Detective. A primeira temporada, em especial, se destaca pela dinâmica explosiva entre Matthew McConaughey e Woody Harrelson, que dominam uma trama intrincada, sombria e filosófica. Não que as demais temporadas não merecem carinho (sim, até a segunda), mas o ouro está nesse genial primeiro ano.
4. Better Call Saul
Não é fácil mexer em uma obra perfeita, principalmente quando falamos de uma série tão bem resolvida quanto Breaking Bad. Mas ao olhar para o universo particular e passado de um dos coadjuvantes da série, Vince Gilligan e Peter Gould encontraram algo tão valioso quanto em Better Call Saul, que acompanha a lenta e dramática transição de Bob Odenkirk para o advogado criminal Saul Goodman. O mesmo primor de Breaking Brad em direção, roteiro e fotografia se repete aqui, mas de forma ainda mais intimista.
3. Chernobyl
É difícil lembrar a última vez em que um drama semi-documental causou tanto alvoroço e despertou tanta atenção quanto Chernobyl. A minissérie da HBO dramatizou o histórico desastre nuclear soviético da década de 1986, e o fez com muita segurança: o roteiro de Craig Mazin serviu como aula de exposição e dramaturgia, ao passo em que todo o elenco encabeçado por Jared Harris ofereceu performances incríveis, todas bem capturadas pela direção impressionante de Johan Renck. Chernobyl veio e se foi depressa, mas seu lugar na História está garantido.
2. Twin Peaks: O Retorno
Um dos projetos mais radicais e ambiciosos dessa década. David Lynch retornou a seu mundo de Twin Peaks de forma assustadora, enigmática e brilhante, trazendo uma das obras que melhor define seu estilo e carreira. Com as chaves do reino da Showtime, Lynch fez da terceira temporada de Twin Peaks um evento único e difícil de ser descrito, mas que merece ser experienciado ao máximo com seus 13 capítulos.
1. Fargo
Quando a FX anunciou uma série baseada no primoroso filme dos irmãos Joel e Ethan Coen, ninguém poderia imaginar que esse seria o altíssimo nível a ser atingido. Ao longo de três temporadas praticamente perfeitas, a antologia de Noah Hawley trouxe histórias intrínsecas, inteligentes e engenhosas - aliadas a um alto nível de simbolismo, direção e elenco. Uma série perfeita, com potencial para entrar no hall das grandes produções da TV americana.
Crítica | Entre Facas e Segredos - O mistério perfeito
O termo whodunit pode parecer estranho para os brasileiros, mas certamente todo mundo já leu, assistiu ou jogou algo assim. É uma forma de denominar histórias de detetive onde geralmente diversos personagens são suspeitos de cometer um crime (justificando o “Who Done it?”, quem foi?), e que se manifestou na literatura de forma famosa com obras de Agatha Christie e as aventuras de Sherlock Holmes, para citar alguns exemplos. E, claro, o jogo de tabuleiro Clue (Detetive, no Brasil) é o exemplo mais perfeito desse tipo de narrativa, que rendeu bons frutos no cinema.
Saído de sua investida divisiva em Star Wars: Os Últimos Jedi ("divisiva" para alguns, o filme é uma obra-prima), o cineasta Rian Johnson desce do pedestal de uma grande produção hollywoodiana e com efeitos visuais para se aproximar de algo menor em escala - provavelmente mais alinhado com seus primeiros trabalhos, especialmente A Ponta de um Crime -, com Entre Facas e Segredos, que é vendido essencialmente como um whodunit. Mas assim como o Episódio VIII da saga de George Lucas ou noir high school estrelado por Joseph Gordon Levitt, nada acontece como previsto em seu novo filme - garantindo uma das melhores experiências do ano.
A trama começa da única forma possível em uma obra do gênero: um assassinato misterioso. O autor Harlan Thrombey (Christopher Plummer) é encontrado morto no que parece ser um suicídio. Com as suspeitas de que ele possa ter sido assassinado, o detetive Benoit Blanc (Daniel Craig) é chamado para investigar todos os membros da família, que estava reunida para o aniversário de 85 anos do patriarca.
É uma premissa básica, e que até mesmo traz um dos personagens (Lakeith Stanfield) comentando sobre o fato da gigantesca mansão de Harlan parecer cenário do jogo Clue. O que torna Entre Facas e Segredos tão valioso é seu excepcional roteiro (também assinado por Johnson), que traz personagens absurdamente carismáticos e personalidades distintas, além de uma narrativa que subverte e brinca com a fórmula tradicional do gênero. Obviamente, não entraremos em spoilers aqui, mas é suficiente dizer que Johnson altera a ordem de alguns fatores no que diz respeito à “quando" o espectador aprende uma certa informação, e isso altera a atmosfera de todo o restante da história.
Em meio ao mistério, Johnson ainda encontra espaço para as mais variadas discussões. Lançado inteligentemente no feriado americano do Dia de Ação de Graças, a trama enfatiza os diferentes embates entre membros familiares que a mais variadas discussões políticas são capazes de provocar na era contemporânea, e seu texto consegue discutir questões de imigração, cyberbulling (algo com o qual Johnson certamente sofreu após Os Últimos Jedi) e
Novamente, algo difícil de comentar sem spoilers, mas apenas imagino todos os post-its e barbantes ligando eventos e anotações em seu escritório, já que a resolução da história é extremamente complexa - e gastei alguns minutos reavaliando tudo o que acabara de ver, com genuína satisfação. Até mesmo porque, naturalmente, esse esforço também se reflete na direção segura e inteligente de Johnson; a forma como repete diversos enquadramentos, mas altera pequenos detalhes dependendo de qual ponto de vista acompanhamos, ajuda a manter a sensação de narrador inconfiável durante boa parte da projeção.
Em quesitos técnicos, Entre Facas e Segredos é praticamente perfeito. Novamente se juntando à sua equipe habitual, Johnson conta com o diretor de fotografia Steve Yedlin para pintar quadros sempre nublados e com cores frias, mas com um dinamismo visual presente graças ao contraste (aprendam, irmãos Russo) e o grão de sua película. De forma similar, o montador Bob Ducsay é hábil ao intercalar as diferentes entrevistas de Blanc com os membros da família (além da estrutura discutida acima, de oferecer uma certa informação antes do esperado) assim como Nathan Johnson oferece uma trilha correta e capaz de ditar uma atmosfera de mistério.
Vale destacar também o brilhante trabalho do design de produção e figurino, que seguem o comentário do personagem de Stanfield ao comparar a residência com um jogo de tabuleiro. Cada um dos personagens é facilmente demarcado graças às suas escolhas de figurinos e as cores destes: a simplicidade das vestes de Marta (Ana de Armas), a elegância do terno de Blanc e o longo cachecol colorido de Ransom (Chris Evans) são perfeitos exemplos.
Quando olhamos para o pôster de Entre Facas e Segredos, fica bem evidente que temos aqui um elenco capaz de rivalizar com os de O Irlandês e Era Uma Vez em Hollywood no que diz respeito a astros. Mesmo com tantos nomes de peso dividindo a cena, há espaço de sobra para que todos eles brilhem, mesmo os coadjuvantes com papéis reduzidos como Jaeden Martell, Katherine Langford e o sempre divertido Lakeith Stanfield - além de uma inesperada participação de Frank Oz, famoso por dar vida ao pequeno Yoda na saga Star Wars. Jamie Lee Curtis, Don Johnson, Michael Shannon e principalmente a divertidíssima Toni Collette estão todos ótimos, e confesso que a energia que Christopher Plummer demonstra em seus 89 anos me deixou de queixo caído.
Naturalmente, voltamos os olhos para o grande detetive vivido por Daniel Craig. Após anos como a versão mais sisuda e cínica do agente James Bond, vê-lo com uma postura brincalhona e marcada por um carregado sotaque sulista é uma grande surpresa. Claramente inspirado no Hercule Poirot de Christie, Blanc traz todas as características básicas de um “detetive brilhante”, e que traz no silêncio da observação uma de suas marcas mais fortes - assim como os constantes questionamentos sobre “não ser bom o bastante”.
O destaque acaba voltando mesmo para Ana de Armas. Coadjuvante de luxo em filmes como Blade Runner 2049 e Cães de Guerra, a atriz cubana domina a cena e assume a maior parte do tempo de tela, já que sua bondosa cuidadora Marta Cabrera é recrutada por Blanc para auxiliá-lo na investigação. É quando vemos a vasta dimensão dramática de Armas, e o fato de sua personagem ter uma condição que a força a vomitar quando mente resulta não apenas em um ótimo indício de seu caráter (vide a confiança de Blanc) mas também em uma forma de garantir um humor natural e condizente com sua personalidade.
Mas se falamos de humor, chegamos ao outro grande destaque: Chris Evans. O grande público certamente está acostumado a vê-lo na figura do bom moço graças a seu trabalho como o Capitão América nos filmes da Marvel, então terá uma surpresa ao vê-lo como o desbocado, mesquinho e sarcástico Ransom - neto de Harlan que parece antagonizar com todos os familiares, empregados e até cachorros da região. É um trabalho cheio de energia e carisma, e também de viradas inesperadas quando encontramos um lado surpreendentemente dócil e compreensivo em meio a sua rebeldia.
Depois de se aventurar em diversos gêneros e produções de tamanhos variados, Entre Facas e Segredos comprova que Rian Johnson é um dos nomes mais interessantes do cinema americano. Seu roteiro detalhado brinca com suspense, comédia e até comentários relevantes de forma satisfatória e divertida, entregando uma das experiências mais deliciosas do ano.
Entre Facas e Segredos (Knives Out, EUA - 2019)
Direção: Rian Johnson
Roteiro: Rian Johnson
Elenco: Daniel Craig, Ana De Armas, Chris Evans, Toni Collette, Jamie Lee Curtis, Don Johnson, Michael Shannon, Lakeith Stanfield, Katherine Langford, Jaeden Martell, Christopher Plummer, Frank Oz
Gênero: Suspense
Duração: 130 min
https://www.youtube.com/watch?v=fEVEpTq0k2k
Crítica | O Irlandês - A Máfia no Divã de Martin Scorsese
Poucos nomes do cinema americano são tão eficientes e lendários como Martin Scorsese. Desde que despontou como um dos principais cineastas por trás do movimento da Nova Hollywood na década de 70, o diretor nova-iorquino raramente fez um ruim. Na realidade, é difícil encontrar uma obra em sua vasta e diversificada carreira que fique abaixo de “ótimo”, oferecendo alguns dos melhores filmes da História do cinema americano. Se Scorsese tem um novo filme, os estômagos dos cinéfilos de carteirinha roncam de forma voraz.
E os fãs de Martin Scorsese certamente já ouviram falar muito de O Irlandês. Assim como o contemplativo Silêncio, seu longa anterior, é um projeto que o diretor luta para conseguir fazer há décadas; praticamente separado a sete chaves para Robert De Niro, Joe Pesci e Al Pacino. Como a produção exigiria um orçamento elevado para usar efeitos visuais pesados no rejuvenescimento de seu elenco, a maioria dos estúdios de Hollywood rejeitou a oferta. Foi a oportunidade perfeita para a Netflix usar seus cofres aparentemente infinitos para bancar aquele que é, de longe, seu projeto mais prestigioso - além de um dos melhores filmes de 2019.
Baseada no livro I Heard You Paint Houses, de Charles Brandt, a trama é centrada no irlandês do título: Frank Sheeran (Robert De Niro). Ao longo de flashbacks e depoimentos, acompanhamos sua ascensão de motorista de caminhão até soldado da máfia e um dos grandes aliados do poderoso Russell Buffalino (Joe Pesci). A situação fica mais perigosa quando Frank e Buffalino formam uma aliança com o sindicalista Jimmy Hoffa (Al Pacino), uma das figuras políticas mais influentes e imprevisíveis dos EUA da década de 60.
O núcleo de O Irlandês traz Scorsese de volta ao ramo que a maioria dos fãs sempre o associou: filmes de máfia. O cineasta americano sempre lidou com o crime organizado em diferentes fases de sua carreira, seja como o ágil Caminhos Perigosos, o energético Os Bons Companheiros, o complexo Cassino ou o anárquico O Lobo de Wall Street (um tipo diferente de máfia, diga-se de passagem). Nunca se repetindo, o filme de 2019 representa Scorsese em sua fase mais madura e contemplativa: se o jovem Ray Liotta afirmava em Os Bons Companheiros que sempre sonhou em ser um gângster, o amargurado De Niro sofre com a solidão no fim da vida; Liotta e Leonardo DiCaprio quebravam a quarta parede para conversar com o espectador em um gesto de “ser maior do que a vida”, enquanto o Frank Sheeran de O Irlandês conversa com o público por simplesmente não ter mais com quem dialogar. É um atestado do amadurecimento de um dos grandes mestres do cinema americano.
Nessa ambiciosa saga de uma vida inteira, Scorsese conta com o roteirista Steven Zaillian (com quem colaborou no épico Gangues de Nova York) para traçar a longa narrativa de Sheeran. O resultado é um filme de 3h30, um luxo que estúdio algum concederia ao diretor em uma era dominada por super-heróis, mas que a Netflix certamente viu como benefício - afinal, a longa duração praticamente transforma o filme em uma minissérie, visto que será vista pela esmagadora maioria do público em suas televisões particulares. Com tanto material, Zaillian cria um universo rico em personagens e situações, ganhando tempo mais do que suficiente para nos apresentar à figura de Jimmy Hoffa e seu movimento - trazendo até mesmo uma metalinguagem ao contar com alguns personagens mais jovens revelando “nunca terem ouvido falar” no infame sindicalista. Como o próprio Frank afirma, as pessoas só sabem que ele desapareceu repentinamente; tendo sido dado morto, ainda que nunca comprovado.
É aí que reside a alma de O Irlandês. À medida em que Frank avança na Máfia, ele se torna um dos homens de confiança de Hoffa, e a narrativa avança até o ponto em que o protagonista se encontra pressionado entre o político e a máfia; já que a relação das duas partes passa a se tornar mais tensa com o desenrolar da trama. São características que Scorsese, um mestre absoluto da linguagem cinematográfica, transmite com maestria: vamos das tradicionais montagens com atos criminosos movidos a adrenalina (como a Netflix pagou tudo, e Scorsese nunca usou tantos travellings quanto aqui) até momentos mais intimistas: todo o ato final, que envolve um trabalho entre Frank e Hoffa, pode ser facilmente ser colocado como uma das coisas mais tensas que o diretor já comandou ao longo de sua carreira.
Vale apontar também que a duração de 3h30 é inevitavelmente sentida, mas perfeitamente equilibrada pela maior colaboradora de Scorsese: a montadora Thelma Schoomaker. A veterana ajuda a construir um ritmo sólido durante as passagens diferentes da narrativa, seja pelo dinamismo das montagens discutidas acima, ou nos aspectos mais quietos do filme: planos se alongam, cortes são usados para provocar paranoia (há um caso envolvendo o medo de uma bomba em um carro que é simplesmente brilhante) e a própria estrutura do velho Frank recontando todos os eventos ajuda a tornar a experiência aproveitável. Mas, novamente, as quase 4 horas são bem sentidas.
Para os fãs de cinema, o premiado elenco principal de O Irlandês é motivo de celebração. Na verdade, não seria exagero algum defini-lo como um marco histórico: é a união de De Niro e Pacino (dois dos melhores atores do cinema americano) com Joe Pesci (que havia se aposentado) em um filme de Scorsese. De Niro surge como o grande protagonista, sendo rejuvenescido através de efeitos visuais por boa parte da trama (um investimento com resultados mistos, já que o ator parece um personagem de videogame em uma cena específica), entregando uma de suas performances mais multifacetadas em ano - e que ganha pontos pela alta carga dramática, especialmente nas cenas dedicadas à relação com sua filha, vivida por Anna Paquin em idade adulta.
Mas o grande destaque acaba voltado para seus dois colegas de cena. Pacino surge inspirado de uma maneira que não víamos há anos, afinal o veterano se encontrava em um modo “automático” por algum tempo. Na pele de Hoffa, Pacino traz a energia de um adolescente, . Em contraste, ver um envelhecido Pesci novamente é capaz de despertar nostalgia e já conferir imenso respeito à tela, e seu Russell Bufalino é uma figura ameaçadora e inquietante mesmo sem esforço - basta observar as duas ótimas cenas em que tenta ser carinhoso com a filha de Frank, mas cada gesto e presente surgem mais como ameaças do que agrados. Um elenco simplesmente irrepreensível, que conta ainda com bons trabalhos de Ray Romano, Jesse Plemmons, Bobby Cannavale, Stephen Graham e uma rápida participação de Harvey Keitel.
A Netflix pode se orgulhar intensamente de O Irlandês. É uma das obras mais maduras e contemplativas de Martin Scorsese, que entrega uma perfeita reinvenção de tudo o que entendemos como filme de máfia, agora com o olhar mais sóbrio e melancólico do tempo. Apesar da extensa duração, é um dos filmes mais imersivos e fascinantes do ano.
O Irlandês (The Irishman, EUA - 2019)
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Steven Zaillian, baseado na obra de Charlie Brandt
Elenco: Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci, Bobby Cannavale, Harvey Keitel, Ray Romano, Jesse Plemmons, Anna Paquin, Stephen Graham, Stephanie Kurtzuba
Gênero: Drama
Duração: 209 min
https://www.youtube.com/watch?v=ZxuTltUvvkI
Crítica | Doutor Sono - Stanley Kubrick e Stephen King fazem as pazes
Quando O Iluminado chegou aos cinemas em 1980, tivemos um dos fenômenos mais peculiares do cinema de gênero americano. Era a investida de um de seus maiores autores, o brilhante Stanley Kubrick, em um filme de terror que tinha pretensões comerciais bem fortes; além de ser mais uma adaptação do badalado Stephen King, que segue até hoje como fonte de material para inúmeros longas e séries de TV. Hoje, o filme é considerado um clássico, mas foi extremamente criticado na época, recebendo inclusive indicações ao Framboesa de Ouro e a desaprovação de King, que até hoje condena o resultado final - que é radicalmente diferente do livro.
Corta para 2013 e temos o impensável: King lança uma continuação da história de O Iluminado, batizada de Doutor Sono. Ela é focada no personagem de Danny Torance, agora na fase adulta, e expande o universo do original de forma impressionante. Claro, como estamos na nova onda de Stephen King graças ao sucesso avassalador de It: A Coisa, a Warner Bros correu para garantir que o livro chegasse aos cinemas, sendo lançado agora sob o comando de Mike Flanagan (A Maldição da Residência Hill). O resultado é curioso: uma perfeita junção do universo estabelecido por Kubrick em 1980 com as características típicas da obra de King. Um casamento quase perfeito.
A trama começa mais de 30 anos após os eventos de O Iluminado, onde um Danny Torrance adulto (Ewan McGregor) supera o trauma do ataque de seu pai no Hotel Overlook, além de tentar controlar sua habilidade psíquica de se comunicar com mentes e ver fantasmas. Nesse universo, conhecemos outras pessoas que compartilham da dádiva (ou maldição) do protagonista, com destaque para a jovem Abra (Kyliegh Curran), que se mostra uma das “iluminadas" mais poderosas de que se tem conhecimento. Isso logo atrai a atenção do grupo misterioso conhecido como Nó, que mata aqueles que tem a iluminação para poderem sobreviver.
Pessoalmente falando, nunca fui um grande conhecedor da obra de Stephen King, e até estranhei quando a ideia de uma continuação para um clássico seminal como O Iluminado foi anunciada. O Exorcista também teve sua parcela de sequências desnecessárias, mas foi um fenômeno imediato de sua época, enquanto o universo do Hotel Overlook ficou intocado por décadas - depois de Star Wars e Blade Runner, nada mais é sagrado. Mas felizmente o resultado alcançado por Doutor Sono é bem positivo, principalmente quando sua intenção é a de ser uma expansão de O Iluminado, e não uma sequência direto (chegaremos nesse ponto em breve).
Como a maioria das obras de King (ou ao menos o que sei delas), temos o vício como um dos temas centrais. Danny é alcoólatra e está completamente perdido em sua fase adulta, renegando o poder do “brilho”. Graças à prosa de Flanagan, sua jornada tem bom ritmo, progressão e até mesmo um salto temporal de 8 anos que funciona organicamente, estabelecendo um bom dilema para o protagonista. Mas é mesmo o sobrenatural que encanta, e aqui Flanagan faz a escolha bem direta e arriscada de esquecer o terror e flertar com variações muito distintas do drama humano e até mesmo da fantasia: a ideia de Danny como um enfermeiro que ajuda pacientes terminais a encontrar conforto em seus momentos finais é brilhante, e garantem uma execução delicada e altamente emotiva por parte de Flanagan e de McGregor, que encontra um bom balanço entre a ternura e o medo que assombra seu personagem.
Quando mergulhamos na fantasia pesada, Flanagan não tem medo de fazer seu X-Men sombrio. É curioso como o roteiro divide o tempo de forma bem similar entre o arco de Danny, a jovem Abra e os integrantes do Nó, que ganham mais destaque graças à Rosie the Hat de Rebecca Ferguson (perfeita na pele de uma das vilãs mais interessantes do ano) e o Crow Daddy de Zahn McClarmon, e esse enfoque do roteiro os expande além de antagonistas unidimensionais, mas como criaturas (nunca definidas como humanas ou não) tentando sobreviver, mesmo cometendo atos hediondos - e Flanagan não poupa ao mostrar como podem ser assustadores, mesmo que o cafona ainda esteja presente em seus figurinos e comportamentos.
Toda essa porção da trama, que se torna divertida com Danny assumindo um papel de mentor para Abra, funciona perfeitamente por conseguir criar sua própria forma. É mesmo no terceiro ato que as coisas começam a desandar, já que Flanagan começa a desviar demais para O Iluminado, trazendo todas as referências e homenagens que os fãs do original provavelmente gostariam de ver, incluindo um retorno atmosférico ao Hotel Overlook, o “Redrum”, machados e elevadores cujas portas estão repletas de sangue. Tudo está lá, inclusive alguns personagens (vivos e mortos) de rostos bem familiares.
Tanto na temática quanto na execução visual, é o ponto fraco de Doutor Sono. É impossível tentar se equiparar a Kubrick, e por mais que as brincadeiras visuais sejam divertidas (como um plano de Rosie na escada que acaba simulando a famosa cena em que Jack Nicholson ameaça Shelley Duvall), não conseguem ser muito além de uma homenagem, e que não é tão bem executado como o clássico de 1980. É uma boa recriação, e Flanagan e o diretor de fotografia Michael Fimognari acertam em criar uma atmosfera desoladora e imprevisível para os corredores do Overlook, agora abandonado, cheio de tábuas de madeira tapando suas janelas e - curiosamente - quase aconchegante. É impossível não lembrar de Blade Runner 2049 quando temos a longa cena em que Danny caminha pelo local, e que pelo ritmo mais lento (Flanagan também assina a montagem do filme) oferece um tom radicalmente diferente para a produção.
Felizmente, quando Flanagan está mais livre para criar suas próprias iconografias, o filme triunfa. A forma como conecta cada personagem através do brilho, como usa de imagens simbólicas e extremamente surreais para ilustrar as possibilidades do brilho (principalmente quando temos o “voo" de Rosie pela cidade para encontrar a mente de Abra) são quase transcendentais, garantindo uma boa experiência também com a trilha sonora evocativa dos irmãos Newton.
A tarefa de Mike Flanagan em Doutor Sono não era fácil: unir o universo maluco e intrincado de Stephen King com o aclamado e icônico filme de Stanley Kubrick (odiado pelo autor), ao passo em que também precisa encontrar sua própria voz. É um resultado bem positivo, e que encontra sua maior força justamente quando trilha por algo novo, mais próximo da fantasia do que o terror. Uma conquista admirável.
Doutor Sono (Doctor Sleep, EUA - 2019)
Direção: Mike Flanagan
Roteiro: Mike Flanagan, baseado na obra de Stephen King
Elenco: Ewan McGregor, Rebecca Ferguson, Kyliegh Curran, Zahn McClarnon, Cliff Curtis, Carel Struycken, Emily Alyn Aid, Jacob Tremblay, Bruce Greenwood, Carl Lumbly, Alex Essoe
Gênero: Suspense
Duração: 151 min
https://www.youtube.com/watch?v=oM4Jp05zI7E
Crítica | Projeto Gemini - Tecnologia de ponta não salva roteiro barato
A carreira de Ang Lee é das mais curiosas. De dramas familiares na China e nos EUA como Banquete de Casamento, Tempestade de Gelo e O Segredo de Brokeback Mountain, o cineasta taiwanês também se arriscou em longas de ação e fantasia que requeriam investimentos em tecnologia, como Hulk, As Aventuras de Pi e o recente A Longa Caminhada de Billy Lynn (este último aliando o drama com tecnologia). É uma carreira imprevisível, e o cineasta premiado com dois Oscar agora ataca com uma ficção científica de ação na forma de Projeto Gemini, que avança a tecnologia em mais alguns anos - mas é uma grande ofensa para apreciadores de uma boa história.
A trama acompanha o infalível assassino de aluguel Henry Brogan (Will Smith), que enfim considera a aposentadoria após anos de matança. Porém, após receber informações confidenciais de um amigo, ele vira alvo de sua antiga agência, que envia a arma perfeita para eliminá-lo: um clone mais jovem e mais ágil dele mesmo. Dessa forma, Henry contará com a ajuda da agente Danny (Mary Elizabeth Winstead) e seu colega Baron (Benedict Wong) para descobrir o mistério por trás de seu perseguidor.
Não é a premissa mais original de Hollywood, mas que pode ser bem explorada com um roteiro decente. Não é o caso de Proejto Gemini, que sofre pela péssima escrita e execução do texto creditado a Darren Lemke, David Benioff e Billy Ray (mas que passou por inúmeras revisões não creditadas ao longo dos anos). É o tipo de história que soa datada e que certamente ficou acumulando poeira em alguma gaveta por anos, já que falha em suas tentativas frustradas de aprofundar conceitos de ficção científica ou as relações mais básicas entre seus personagens.
O trio formado entre Smith, Winstead e Wong é dos mais esquisitos. Não há uma interação real ou carismática entre o grupo, por mais que todos estejam bem em seus papéis, e então fica claro que todos os personagens são realmente rasos e sem personalidade alguma. Com a entrada do clone na história, todo o conflito que se resolve de forma interessante na pancadaria (chegaremos lá em breve) é completamente desperdiçado por soluções fáceis e viradas de chave na motivação dos personagens - que estão sempre proferindo frases óbvias como "eu não aguento mais enfrentar os fantasmas do passado" ou "eu não consigo me olhar no espelho", entre outras declarações genéricas.
Nem mesmo o ótimo Clive Owen é aproveitado, dando um personagem vilanesco sem graça que pára no meio do caminho. Responsável pela criação do clone de Henry, seu cientista fica entre o "pai amoroso e calculista" e o completo maníaco de desenho animado que grita suas intenções em voz alta.
Na direção, Ang Lee é sempre um nome muito interessante de se analisar. Novamente apostando no High Frame Rate, modo de exibição que troca os 24FPS por 120FPS (mas que só será exibido no Brasil em 60FPS, devido à capacidade técnica), o cineasta e o diretor de fotografia Dion Beebe capturam imagens belíssimas graças ao troca-troca de paisagem da narrativa, e que ganham mais nitidez e fluidez graças à imagem mais "acelerada". É um efeito triplicado nas cenas de ação, especialmente na ótima perseguição de motos em que Henry é perseguido por seu clone, e que ganha mais fôlego e intensidade graças ao frame rate, e também ao uso eficiente de 3D.
Porém, infelizmente Lee mostra-se limitado nesse departamento. Há pelo menos duas ou três cenas de luta corporal gravadas e enquadradas da mesma forma, e que inexplicavelmente limitam-se a planos fechados e sem qualquer decupagem mais criativa (estamos falando do homem que fez O Tigre e o Dragão), e que empalidecem diante daquela ótima perseguição. E a coreografia, por ser pouco inventiva, acaba beirando o risível graças à velocidade do HFR, e confesso que me descontrolei quando Mary Elizabeth Winstead literalmente se tornou a diretora de fotografia em uma cena ao simplesmente apontar uma luz para os dois Will Smith enquanto lutavam entre si. É inacreditável, e eu insistiria para que a atriz compartilhasse o crédito com Beebe.
O que nos leva ao outro grande atrativo técnico de Projeto Gemini: o Will Smith digital. É mais um avanço na tecnologia de criar rostos fotorrealistas, e é importante ressaltar que Lee e sua equipe não usaram o método do rejuvenescimento digital (visto no Samuel L. Jackson de Capitã Marvel, por exemplo) mas sim em uma criação completamente CGI do rosto de Smith, que atuou com captura de performance. A criação funciona na maior parte do tempo, especialmente em cenas mais escuras, mas é difícil não notar que estamos diante de um boneco "irreal", especialmente nos movimentos da boca; sempre a área mais difícil para animadores. Em certo momento, há uma cena ensolarada que evidencia a artificialidade do jovem Smith de forma assustadora, e mostra que a tecnologia ainda não está totalmente ali.
A impressão que fica em Projeto Gemini é que muito esforço técnico foi dedicado a um roteiro pavoroso. O novo filme de Ang Lee oscila entre momentos de ação interessantes e o tédio total provocado por sua trama sem pulso e personagens sem personalidades. A embalagem pode ser de última linha, mas realmente não tem nada por dentro.
Projeto Gemini (Gemini Man, EUA - 2019)
Direção: Ang Lee
Roteiro: Darren Lemke, David Benioff e Billy Ray
Elenco: Will Smith, Mary Elizabeth Winstead, Clive Owen, Benedict Wong, Douglas Hodge, Theodora Miranne, Linda Edmond
Gênero: Ação, Ficção Científica
Duração: 117 min
https://www.youtube.com/watch?v=IzeCHdB_hl0
Crítica | Coringa - O filme mais corajoso do ano
Criado há praticamente 80 anos nos quadrinhos da DC, o Coringa é sem dúvida alguma um dos melhores vilões de todos os tempos. É antítese perfeita para um herói tão soturno e sério como o Batman, e o desafio de lhe dar vida no live-action sempre rendeu resultados interessantes, e que são falados até hoje. Cesar Romero fez uma divertida versão na série de TV de Adam West, Jack Nicholson vendeu a perfeita visão de Tim Burton do gângster cartunesco no Batman de 1989, Mark Hamill conquistou diversos fãs com a dublagem fornecida para o Coringa na Série Animada de Bruce Timm (e também na série de games de Arkham), enquanto Jared Leto… Bem, ele trouxe ideias radicais para sua interpretação em Esquadrão Suicida.
Mas, claro, foi mesmo Heath Ledger quem mudou o jogo para sempre. Em Batman: O Cavaleiro das Trevas, o ator australiano ofereceu a performance definitiva do Palhaço do Crime, infelizmente sendo incapaz de ver o impacto que deixaria na cultura pop após falecer meses antes de o filme de Christopher Nolan chegar aos cinemas. É uma performance que elevou a barra para qualquer ator que arriscasse repetir o papel (e que Leto nem chegou perto), então nada mais apropriado do que o personagem ganhar um filme inteiro para ele com Coringa, que aposta no talento de Joaquin Phoenix e na reinvenção de Todd Phillips para oferecer algo inédito nos cinemas: uma história de origem trágica para o futuro arqui-inimigo do Homem-Morcego.
Vale reforçar que a trama de Coringa não tem conexão com nenhum outro filme do universo cinematográfico da DC, existindo em sua própria cronologia. Nela, estamos na sórdida e aterradora Gotham City do final dos anos 70, onde o solitário Arthur Fleck (Phoenix) vive com sua mãe doente (Frances Conroy) enquanto sonha em se tornar comediante stand up. Sofrendo de condições mentais agravantes, ele embarca em uma jornada sombria ao descobrir um segredo de seu passado, que é reforçado quando as coisas em sua vida começam a dar errado.
Para início de conversa, é preciso abordar a polêmica em torno de Coringa. Antes mesmo de sua chegada nos cinemas comerciais, o filme de Todd Phillips foi acusado de ser uma obra “irresponsável” e “tóxica” por membros da imprensa americana durante sua passagem por festivais de cinema, chegando até mesmo no absurdo de sugerir que Coringa poderia inspirar os chamados “incels” a cometerem atos de terrorismo nos EUA. A principal acusação é que o longa glorifica as ações de seu protagonista, o que é uma tremenda falta de interpretação e subtexto da parte daqueles que levantam essa hipótese. Até mesmo porque Phillips e o roteirista Scott Silver não fazem nada disso aqui, além de um profundo estudo de personagem.
Ao longo de diversas entrevistas, Phillips afirmou que duas obras-primas de Martin Scorsese foram suas inspirações principais: Taxi Driver e O Rei da Comédia, ambos estrelados por Robert De Niro; que, não por acaso, está presente no filme em um papel coadjuvante. Essa influências estão presentes em cada canto de Coringa, focado em um homem solitário que vive às margens da sociedade (a Gotham coberta de lixo e sarjeta imediatamente nos remete à Nova York de Travis Bickle) que literalmente sonha acordado com a oportunidade de conhecer um apresentador de TV famoso, em um conflito quase idêntico ao de Rupert Pupkin e o comediante vivido por Jerry Lewis.
Tudo isso envolto em uma análise sobre a doença mental, e a jornada perigosa que um homem aparentemente ingênuo e marginalizado é forçado a seguir. Phillips e Silver claramente empatizam com Arthur Fleck, e o mais importante é que estamos sempre acompanhando de fora como sua narrativa se torna mais sombria e violenta. É um filme cuja moralidade está sempre na corda bamba, mas que jamais assume o lado de seu protagonista, que traz queixas válidas em seu grande monólogo em um dos pontos da história, mas obviamente assume métodos nada apropriados - que ajudam a ilustrar o lado sombrio da psique humana, e o quão baixo um ser humano pode decair.
A grande ironia (ou piada, como diria o protagonista) é que sua felicidade só aumenta à medida em que decai à loucura; os passos para subir a escadaria sempre são pesados, enquanto a descida é uma verdadeira insanidade celebrada com uma dança perturbadora.
Por trás das câmeras, Phillips nunca teve um olhar tão íntimo e contemplativo. Ao lado do diretor de fotografia Lawrence Sher, que o acompanha desde a trilogia Se Beber, Não Case!, Phillips cria belíssimas imagens que reforçam a solidão de Arthur na cidade. O olhar se alterna entre planos detalhe de lembretes, anotações e olhares intensos para quadros mais vastos que capturam a podridão de Gotham City - e que é bem contrastado com o luxo colorido do estúdio do apresentador Murray Franklin. O uso da razão de aspecto 1:85.1 certamente ajuda o espectador a ficar mais próximo dos personagens e de suas vidas. Há alguns excessos estilísticos (não acho que precisávamos de tantas danças de Arthur), mas é uma evolução do cineasta.
E Phillips certamente não poupa quando a história exige mais tensão ou violência. Existem poucas sequências assim ao longo de Coringa, mas o diretor aposta em um choque genuíno e sem grande espetáculo: é uma ação crua e fria, e que provavelmente vai incomodar a maioria dos espectadores, ainda que nem de longe seja tão pesada quanto a mídia estrangeira possa ter sugerido. Ainda assim, é gráfica o bastante para se distanciar da grande maioria das obras do gênero. Não é exagero algum afirmar que o cinema de quadrinhos nunca teve um filme como Coringa.
É preciso também destacar uma das maiores forças do longa: a trilha sonora original. A perturbadora música ficou a cargo da compositora Hildur Guðnadóttir, que ganhou um Emmy recentemente por seu trabalho assombroso na série Chernobyl. A atmosfera de Coringa fica ainda mais pesada e soturna graças às cordas dolorosas de violoncelo que acompanham quase toda a trajetória de Arthur ao longo do filme. Não é o tipo de trilha com temas variados, mas cujos sons marcantes e penetrantes ajudam a manter o espectador tenso, e também para pontuar - em momentos que poderiam soar totalmente diferentes - que o que acontece com Arthur é mesmo uma tragédia, e não uma celebração.
Mas precisamos falar sobre Joaquin Phoenix. A ideia de ter o ator, um dos melhores de sua geração, na pele de um personagem como esse foi empolgante desde o anúncio do projeto. É um trabalho completamente diferente de todos os outros intérpretes do Coringa, principalmente por vermos mais de seu aspecto humano. Phoenix demonstra um estudo notável sobre o comportamento, postura e fala de uma pessoa que sofre com distúrbios mentais, sendo particularmente fascinante ver como o ator parece torcer todo o seu corpo ao se encontrar vítima de suas gargalhadas involuntárias - uma condição médica real.
À medida em que Arthur vai se tornando o Coringa do título, a performance de Phoenix vai mudando. A ingenuidade, a inquietude e a risada involuntária vão dado espaço a uma figura não exatamente carismática, mas segura e extremamente volátil - e que surge nada menos do que assustadora quando o vemos com a ótima maquiagem que resgata um visual de palhaço de circo. Talvez seja a caracterização que mais provoque medo, mas curiosamente também é aquela que garante uma certa "compreensão". Não dizendo que somos capazes de concordar com Arthur, mas sabemos de onde ele veio.
É um show unicamente de Phoenix, que completamente ofusca os demais membros do elenco. É uma pena, já que a talentosa Zazie Beetz pouco pode fazer para tornar sua personagem interessante (ainda mais considerando a péssima reviravolta em torno dela) e Robert De Niro claramente está se divertindo ao fazer do apresentador Murray Franklin uma figura sagaz.
A Warner Bros e a DC tiveram coragem em conceder tamanha liberdade a Todd Phillips. Coringa é um filme maduro e corajoso, cujo roteiro básico é elevado por uma direção caprichada que caminha pelas referências certas e uma performance inebriante de Joaquin Phoenix. Quem diria, em uma indústria dominada por filmes de super-heróis cada vez mais genéricos e pasteurizados, ainda é possível que criadores com ideias a virem de cabeça para baixo.
Coringa (Joker, EUA - 2019)
Direção: Todd Phillips
Roteiro: Todd Phillips e Scott Silver, baseado nos personagens da DC
Elenco: Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Frances Conroy, Bryan Tyree Henry, Marc Maron, Shea Whigham, Bill Camp, Brett Cullen, Glenn Fleshler, Josh Pais
Gênero: Drama
Duração: 121 min
https://www.youtube.com/watch?v=jfVTJm9NilA&t=0s
