Crítica | Harry Potter and the Goblet of Fire
Não deve ser uma tarefa fácil lançar um game junto à estreia de um filme, e a EA Games foi capaz de realizar um trabalho muito decente com adaptações dos três primeiros filmes de Harry Potter. A Pedra Filosofal e A Câmara Secreta seguiam o mesmíssimo padrão e jogabilidade, em um sistema clássico de missões, chefões e passagens de nível. Pela primeira vez, O Prisioneiro de Azkaban avançou de geração e garantiu a possibilidade de explorarmos o castelo de Hogwarts em um sandbox divertido e revolucionário para seu tempo. Então quando chegamos ao Cálice de Fogo, o game não deixa de ser mais uma inovação, ao passo em que representa um passo para trás.
Na verdade, experimento é a palavra mais adequada aqui. Provavelmente evitando repetir a fórmula e a estrutura dos demais, os desenvolvedores da EA optaram por um formato radicalmente diferente. Não temos mais o mundo aberto do anterior, mas temos a possibilidade de viajar livremente por todos os níveis do jogo, e esse constante retorno é a grande mudança na série de games. Por exemplo, como a trama envolve a chegada do Torneio Tribruxo, o jogador tem a missão de encontrar "Triwizard Shields" em cada fase, e só é possível destravar as fases seguintes se obtermos a quantidade desejada desses objetos.
É uma opção interessante por fazer o jogador explorar diferentes possibilidades em níveis já concluídos, que oferecem diversos desafios e modos de combate alternativos. Porém, a estrutura pode cansar e tornar-se repetitiva muito rápido, ainda mais quando somos forçados a coletar 11 escudos Triwizard, sendo obrigados a recomeçar o nível no momento em que obtemos um - não é possível embarcar de única viagem para coletá-los, temos que sair, voltar ao menu e selecionar novamente a fase desejada.
Outro fator que contribui para o rápido esgotamento é a jogabilidade. Aliás, é mais uma das inovações que Cálice de Fogo oferece, com a possibilidade de um multiplayer cooperativo. Em cada nível, podemos escolher entre jogar com Harry, Rony ou Hermione (não é possível realizar a troca durante o gameplay, tal como era em Prisioneiro de Azkaban), e o jogo oferece inúmeros desafios que necessitam da cooperatividade entre os personagens. Seja para juntarem as varinhas para levitar um pedregulho enorme ou combinar diferentes feitiços para criar novos ataques; enquanto Harry levita uma criatura, o feitiço de ataque usado por Hermione transforma-se em uma nova forma de encantamento, garantindo mais XP e recompensas para o jogador.
Mas ainda que seja uma mecânica dinâmica e funcional, esgota rapidamente. As batalhas com criaturas são repetitivas e baseadas em apertar botões rapidamente para vencê-los, com a exceção do mecanismo cooperativo descrito no parágrafo acima. O motor gráfico do jogo é até que decente para um jogo lançado em 2008, e convence principalmente no design das bizarras criaturas que encontramos ao longo da história e pela variedade dos cenários - a expansão do Banheiro dos Monitores é particularmente fascinante, onde os designers criaram uma gigantesca caverna para explorar a tubulação do local.
O grande diferencial fica com as fases dedicadas ao Torneio Tribruxo. Todas elas são julgadas pelo critério de tempo, sendo recompensadas por medalhas e três escudos de acordo com a classificação (Ouro, Prata e Bronze). A missão da primeira tarefa recria o espetacular voo de Harry em sua Firebolt enquanto é perseguido pelo feroz dragão Rabo Córneo Húngaro, onde ganhamos o controle da vassoura e voamos pelo cenário virtual que se movimenta independentemente. Como jogador, nossas principais funções resumem-se em atravessar aros de velocidade que dão um boost para a Firebolt, passar por círculos de feijões para XP e, claro, não morrer.
A segunda tarefa fica mais interessante quando mergulhamos no Lago Negro. Os mesmos princípios são mantidos, com os aros de velocidade (aqui formados por Guelricho) e feijões, e a câmera independente. A grande diferença fica na duração da fase, que é consideravelmente mais longa, e nas criaturas que atacam Harry durante seu percurso. É uma boa diversão, mas repetitiva e cansativa à medida em que nossos únicos obstáculos resumem-se a destruir corais e destroços de navio no caminho.
Por fim, temos as últimas duas fases que consistem na tarefa do Labirinto e no confronto com Voldemort. A primeira também baseia-se no fator tempo, além de termos feijões para coletar e raízes de árvore malignas para confrontar. O grande barato é o enquadramento o da câmera durante a fase, que mantém-se levemente elevado, para que possamos ver a dimensão e as passagens do labirinto, mas também centralizado de forma que possamos ver os personagens perfeitamente. É fácil de se perder e provavelmente é a missão mais divertida do jogo, ganhando ritmo quando somos jogados na perseguição para a taça da Chave de Portal.
Já o confronto com Voldemort é mais simples do que poderíamos imaginar, com duelos de feitiço no cemitério da família Riddle e um duelo com o Lorde das Trevas através da conexão priori encantatem. A jogabilidade é criativa por controlarmos justamente a energia das varinhas durante a conexão, e o jogo torna-se mais empolgante quando Voldemort começa a jogar uma estátua gigantesca em cima de Harry, sendo necessário destruí-la justamente com a priori encantatem.
Harry Potter e o Cálice de Fogo é um acontecimento curioso e fascinante dentro da saga de games de Harry Potter. É surpreendentemente intimista e faz bom uso do co-op, ao passo em que deixa a desejar em termos de exploração de universo e um escopo maior de narrativa. Porém, vale a visita e os desafios do Torneio Tribruxo.
Crítica | Harry Potter and the Prisoner of Azkaban
Finalmente chegava a hora dos games de Harry Potter entrarem em uma nova geração. Com A Pedra Filosofal e A Câmara Secreta seguindo praticamente os mesmos padrões e atingindo resultados similares em termos de jogabilidade e gráficos, a EA Games daria um passo enorme na adaptação de O Prisioneiro de Azkaban, que seria lançado na época para Playstation 2, Nintendo GameCube, PC, Xbox e Game Boy Advance. Pela primeira vez, teríamos o castelo de Hogwarts como um playground quase que 100% interativo, com missões paralelas, quests e diferentes caminhos para chegar a um mesmo local.
Assim como os anteriores, o game adapta a trama do filme homônimo enquanto acrescenta outras informações do livro e toma liberdade criativas para tornar a experiência mais "gâmeficada" ao criar tarefas e desafios diversos. Por exemplo, iniciamos o jogo no melhor estilo dos saudosos anteriores ao procurarmos "Livros de Feitiço" que liberam novas habilidades e encantamentos para o jogador, algo que faremos durante praticamente todo o curso da narrativa - e é importante atestar que apenas alguns personagens acabam com determinados feitiços, o que já demonstra uma dependência fundamental no conceito do co-op. Podemos jogar com Harry, Rony e Hermione e trocar de personagem livremente ao longo da jogatina, algo que é útil para a resolução de puzzles e passagens de níveis; apenas Rony é capaz de destravar paredes, por exemplo.
A liberdade pelos corredores e terrenos de Hogwarts é o grande destaque, porém. Lembro-me bem de jogar pela primeira vez com apenas 10 anos de idade, e o senso de imersão e atmosfera proposto pelo game era a melhor coisa do mundo. Hoje, claramente o resultado empalidece diante de jogos da geração atual, mas ainda é um feito admirável e que merece aplausos para algo lançado na época, especialmente pela atenção aos detalhes dos programadores de design 3D e os diferentes espaços do castelo. O melhor fator dessas possibilidades, porém, é o fato de podermos voar livremente com o hipogrifo Bicuço, que fica no quintal de Hagrid quase que em tempo integral - apenas quando chegamos no ponto da trama onde sua vida fica em perigo, o animal fantástico desaparece. A dinâmica e jogabilidade desse voo garante alguns dos melhores momentos da jogatina, principalmente pela liberdade e a beleza do terreno externo do castelo e pela facilidade em deslocar-se para diferentes pontos.
No quesito de personagens, é claramente um avanço monumental da geração antiga para o novo game, mas confesso que a mecânica não evoluiu bem. Não só Harry, Rony e Hermione não se assemelham em nada com o físico do elenco da série cinematográfica, como são muito inexpressivos e fadados às mesmas expressões e tiques faciais para representar diferentes mudanças de humor. O trabalho de voz, por sua vez, é mais inspirado do que a animação 3D - pense em como Mark Hamill era absolutamente fantástico, enquanto a animação de A Piada Mortal não fazia jus à sua performance vocal inspirada. As criaturas também surgem muito bem trabalhadas, com atenção especial para os arrepiantes dementadores, que conseguem ser tão sinistros e perturbadores quanto no filme; digamos apenas que, em qualquer missão envolvendo as criaturas, o jogador estará no limite - cenas em que precisamos arrastar algum personagem enquanto fugimos das criaturas sugadoras de almas são verdadeiramente tensos.
Infelizmente a experiência pode vir a tornar-se um pouco repetitiva, ainda mais na dinâmica de encontrar livros de feitiços, batalhar criaturas da mesma forma e coletar feijões de todos os sabores. Isso só muda quando temos eventos marcantes da história, especialmente no final que envolve uma empolgante travessia por dentro da Casa dos Gritos (apropriadamente ampliada para garantir mais ação) e o clímax onde devemos enfrentar dezenas de dementadores ao controlar o próprio Patrono em forma de cervo.
A adaptação de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban é importante pelo avanço tecnológico notável da geração anterior para aquela que iniciava-se em 2004, garantindo boa diversão e uma exploração magistral do castelo de Hogwarts. Peca pela estrutura repetitiva e o caráter artificial de seus personagens, mas definitivamente é um dos melhores jogos da marca Harry Potter.
Crítica | Esquadrão Suicida - Versão Estendida
Parecia piada na hora, mas todos sabíamos disso. A Warner novamente oferece uma versão estendida para seus lançamentos da DC, e o próximo a seguir essa linha é o polêmico e criticado Esquadrão Suicida. Mas, primeiramente, é necessário explicar a diferença entre esta versão estendida e o Ultimate Cut para Batman vs Superman: A Origem da Justiça. O corte de Zack Snyder era realmente uma versão do diretor, uma que ele mesmo já havia mencionado antes mesmo da estreia do filme, enquanto esta nova versão de Esquadrão Suicida traz apenas algumas cenas estendidas sob ordem do estúdio, já que o próprio David Ayer alega que a versão dos cinemas é a sua versão do diretor - controvérsia da bagunça de reshoots e remontagens à parte, claro.
Então, é muito evidente que apenas 13 minutos inéditos não serão o bastante para salvar o desastroso filme dos vilões da DC. Tão pouco tempo não corrige problemas de estrutura, montagem e roteiro ruim, e não provocam o efeito absurdo que o corte estendido de BvS tinha para a narrativa e o desenvolvimento de seus personagens. Aqui, o único beneficiado de fato é o subestimado Coringa de Jared Leto, que teve uma significativa porção de cenas cortadas do produto final e até alguns macetes de montagem e reshoots para mudar o contexto de sua relação abusiva com a Arlequina de Margot Robbie.
A única cena que se destaca e que é verdadeiramente inédita é mais um dos flashbacks que acompanham a transformação da Dra. Harleen Quinzel na psicótica Arlequina, trazendo uma perseguição de moto onde a ex-psicóloga encurrala o Coringa no meio da rua e tenta convencê-lo de seu amor por ele enquanto aponta uma arma à sua cabeça. É interessante pelo retrato surtado da relação dos dois e para ver mais da performance excêntrica e exageradamente divertida de Leto, mas me incomoda que - assim como a cena do tanque de ácido - a cena é inserida em um ponto nada elegante e que oferece mais um desvio para a narrativa já desfocada e mal encontrada do filme. E ainda que seja ótimo ver mais um pouco do arco Amor Louco, o roteiro de Ayer para tal cena sofre por diálogos nada sutis e simplesmente ruins, como a frase "Meu coração te assusta, mas uma arma não?". Como o restante do filme, são diálogos formados por frases de efeito forçadas, que soam ótimas em um trailer, mas não numa narrativa coesa.
Temos um diálogo um pouco maior e mais interessante na cena em que o Coringa eletrecuta a cabeça de Harleen durante sua fuga do Asilo Arkham. E só. Infelizmente não temos mais nada com Jared Leto, mesmo que tenhamos visto algumas cenas adicionais nos trailers (como quando surge com o rosto queimado e morde o pino de uma granada ou a frase "Mal posso esperar para lhe mostrar meus brinquedos") ou tenhamos ouvido falar de regravações que aliviaram sua relação com a Arlequina. Certamente ainda temos muito material do Coringa ainda trancafiado na sala de edição, já que o próprio Leto afirmou que todas as suas cenas cortadas dariam um filme inteiro só do Palhaço do Crime.
De resto, não há nada de muito memorável ou notável. A cena do Esquadrão no bar ganha alguns minutos a mais com cada personagem escolhendo um tipo diferente de bebida (também presente em um dos trailers), vemos mais da Arlequina interagindo com Crocodilo (Adewale Akinnuoye-Agbaje), Diablo (Jay Hernandez) e Bumerangue (Jai Courtney) durante o primeiro arco em Midway City - bom para ver mais da carismática Robbie, mas nada que realmente acrescente ao desenvolvimento de personagens - e duas cenas que tentam fortalecer uma amizade entre Pistoleiro (Will Smith) e Rick Flag (Joel Kinnaman), com o militar falando de seu amor por June Moon (Cara Delevingne). Também temos uma pequena cameo do diretor David Ayer como um dos guardas de Belle Reve e o Crocodilo destroçando alguns dos minions de Magia.
E é isso. Esquadrão Suicida permanece o mesmíssimo filme com os mesmos problemas de roteiro, ritmo e atmosfera, e os minutos adicionais não oferecem todas as cenas que fomos prometidos; até mesmo Katana (Karen Fukuhara) usando os poderes de sua espada não está presente (mais uma cena que vimos nos trailers), sendo também uma decepção. Vale para ver mais do Coringa do Jared Leto, mas não é uma versão que vale ser conferida por tão pouco de novo.
O único jeito de consertar esse filme é com um remake.
Esquadrão Suicida: Versão Estendida (Suicide Squad: Extended Cut, EUA - 2016)
Direção: David Ayer
Roteiro: David Ayer
Elenco: Will Smith, Margot Robbie, Jared Leto, Viola Davis, Joel Kinnaman, Jai Courtney, Cara Delevingne, Adewale Akinnuoye-Agbaje, Jay Hernandez, Karen Fukuhara, Adam Beach, Scott Eastwood
Gênero: Ação
Duração: 133 min
https://www.youtube.com/watch?v=MAkqI6B2J9U
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Crítica | Elle
O fato de que, em pleno 2016, podemos entrar no cinema e encontrar um novo filme de Paul Verhoeven não é algo que deve ser subestimado. Indubitavelmente um dos nomes mais provocantes e marcantes que já passou pela Hollywood dos anos 70-90, o cineasta holandês redefiniu conceitos importantes do blockbuster em Robocop e O Vingador do Futuro, além de ter empurrado as barreiras da sexualidade no cinema mainstream com Instinto Selvagem e - independente da qualidade - o massacrado Showgirls. Há mais de uma década que não víamos algo de peso de Verhoeven (depois de A Espiã, o cineasta voltou à Holanda para Steekspel), mas agora o autor retorna no controverso Elle, que também é o representante oficial da França para uma vaga no Oscar.
Adaptada do romance Oh..., de Philippe Dijan, A trama começa brutalmente ao nos apresentar à Michèle (Isabelle Huppert) sendo estuprada por um invasor em sua casa. Ela tenta lidar com as consequências do ato e encontrar o responsável, que pode estar relacionado à sua vida pessoal, marcada por um passado violento e polêmico envolvendo seu pai presidiário, ou profissional, onde chefia com sua amiga Anna (Anne Consigny) uma desenvolvedora de games que trabalha pesado para lançar um novo produto.
Esse é apenas o básico para entender Elle, que mergulha em diferentes narrativas e ramificações ligadas à vida da protagonista, que no melhor estilo Verhoeven, é bem longa do convencional. Logo de início já somos jogados a uma história peculiar quando vemos a reação de Michèle ao estupro, levantando calmamente e arrumando a louça quebrada durante a ação; quase como se o ato violentíssimo não tivesse ocorrido (o plano onde Michèlle está nua na banheira e a espuma branca lentamente preenche-se com sangue é fabuloso), e a partir daí vemos como a protagonista é forte e praticamente indestrutível - nunca ao ponto de tornar-se uma figura idealizada, muito pelo contrário. Nas mãos de Isabelle Huppert, temos uma das personagens mais versáteis e fascinantes do ano, seja em sua habilidade de virar a mesa contra virtualmente qualquer pessoa ou assumir o controle de uma situação com facilidade, Michèle é um trem expresso que nos dá prazer e até divertimento de se observar, e a veterana atriz francesa merece todos os créditos do mundo por sua atuação sarcástica, afetiva e carismática.
O texto de David Sirke é habilidoso ao fazer de Michèlle uma personagem absolutamente multifacetada, e pode-se dizer que este é o grande foco de Elle: as dimensões de seus personagens, que são todos muito bem construídos e desenvolvidos ao longo da narrativa. Sirke vai lentamente nos revelando os eventos que marcaram o passado da protagonista e o motivo exato de seu pai estar na cadeia, é algo extremamente bem conduzido por Verhoeven em uma narrativa perfeitamente capaz de envolver o espectador. As reviravoltas são intensas e até abraçam uma atmosfera novelesca, também pontuada pela trilha sonora exagerada de Anne Dudley, que faz questão de comentar com dramaticidade diversos pontos chave da história - e é uma breguice muito bem vinda aqui.
As subtramas também preenchem com perfeição o universo de Elle, a começar por Vincent (Jonas Bloquet), o abobado e inseguro filho de Michèle que se vê preso a um iludido relacionamento com Josie (Alice Isaaz), uma jovem um tanto desequilibrada e manipuladora; ver a relação dos dois Michèle garante ótimos momentos de alívio cômico, especialmente quando a gravidez de Josie traz um resultado inesperado. A vida sexual da protagonista é outro ponto delicado, e onde reside um dos aspectos mais controversos de Elle: além de manter um caso com o marido de Anna (Christian Berkel), manter um flerte com o vizinho casado Patrick (Laurent Lafitte) e uma relação surpreendentemente apaziguada com seu ex-marido, Richard (Charles Berling), é curioso como Michèle está estranhamente atraída por seu agressor. É um tema extremamente complexo e cabeludo que Verhoeven e Sirke abordam de forma eficiente e que faz sentido da trama, que acaba direcionada para questões de voyeurismo e até masoquismo.
É uma narrativa que definitivamente não deve agradar a todos, especialmente por essa estranheza e olhar clínico sobre decisões inusitadas, mas que certamente deve chamar a atenção da maioria. Por exemplo, o fato de termos tantas subtramas é benéfico para garantir dimensão e personalidade a absolutamente todos os personagens do longa, mas também garante que muitas linhas acabaram inconclusivas ou resolvidas abruptamente - o passado violento da protagonista, por exemplo, é praticamente abandonado quando o espectador descobre o que de fato aconteceu ali, assim como a resolução do conflito entre Michèle e um de seus empregados.
Elle é um retorno eficiente e forte para Paul Verhoeven, que vê na ótima Isabelle Huppert a chance de criar uma personagem multifacetada e mergulhá-la num universo estranho e fascinante, rendendo uma das experiências mais interessantes do ano. Só o fato de termos uma nova adição à filmografia peculiar de Verhoeven já é motivo de celebração.
Crítica | Citizenfour
Eu nunca escrevi uma crítica para documentário, mas o que encontrei em Citizenfour foi incapaz de me deixar calado. Não sei exatamente como se analisar uma obra não ficcional, quais os critérios, os pontos que o enfraquecem ou o destacam de uma matéria jornalística ou o que torna um documentário algo realmente especial… Mas acho que o longa arrebatador (merecidamente premiado com o Oscar) de Laura Poitras me deu uma noção eficiente a respeito.
Para quem não sabe, o documentário relata o escândalo dos vazamentos de documentos e dados feitos pelo funcionário da CIA Edward Snowden, revelando que diversas empresas americanas administradas pela NSA espionam ligações, mensagens e quaisquer outros tipos de comunicação de seus clientes – não só dos EUA, mas de países de todo o mundo.
Um dos fatores que mais me surpreendeu em Citizenfour, foi que eu não sabia que o vazamento de Snowden tinha sido feito especialmente para este documentário. A série de entrevistas em Hong Kong que Laura Poitras e sua equipe registram ocorrem em Junho de 2013, e acompanhamos de maneira quase descontraída como Snowden vai expondo o trabalho antiético da NSA; ou melhor, não muito descontraída, já que frequentemente a paranoia invade o quarto de hotel e encontramos o protagonista checando seu telefone para garantir que não está grampeado ou que um simples teste de alarme de incêndio não é nada além disso.
Aliás, esse é o elemento que mais me agradou aqui: o clima. O documentário é montado e executado como um thriller de espionagem remanescente da era de John Le Carré e os clássicos da Hollywood dos anos 70, promovendo sempre uma atmosfera suspeita e o pressentimento de vigilância (“Parei porque descobri que estava sendo seguida”, diz um dos cartões em certo trecho). A diferença é que tudo aqui é real, e o impacto é muito mais forte. A câmera às vezes escondida, insegura e os textos/transcrissões de e-mails que substitutem imagens que não seriam possíveis de serem registradas ajudam a construir uma tensão constante, o medo de um inimigo invisível – o Big Brother de George Orwell – que estaria em todo lugar.
Mas ainda assim, Proitas consegue ser acertadamente cinematográfica nos momentos em que a história permite. Chega a ser meio paradoxal, encontrar a oportunidade de dramaturgia na vida real, mas é o que acontece quando, por exemplo, a câmera acompanha a longa preparação de Edward Snowden antes de deixar o hotel pela primeira vez depois de seu vazamento histórico. O silêncio do quarto, a televisão num volume mínimo e o gesto rotineiro de Snowden passando gel no cabelo enquanto busca uma forma de sutilmente mudar sua aparência são todos os elementos necessários para jogar o espectador naquela situação, entrar na pele de Snowden e sentir seu nervosismo.
No sentido jornalístico, o documentário também é impecável. Poitras reúne trechos de audiências públicas da NSA (que nega até o fim qualquer tipo de espionagem a dados pessoais de seus clientes), palestras, leituras e programas da CNN que acompanham a imediata repercussão dos arquivos de Snowden – e acompanhar sua reação ao assistir a televisão (um misto de orgulho/medo estampam suas feições) é algo realmente único. Aliás, fiquei também impressionado com a quantidade de cenas que trazem o Brasil como pano de fundo, trazendo até o jornalista Glenn Greenwald soltando um português eficaz durante uma assembléia em Brasília, enquanto discute que o país está entre os alvosa da espionagem americana.
Citizenfour me impactou como poucos documentários que vi nos últimos anos, impressionando com a linguagem que encontra para conciliar seus relatos jornalísticos de um escândalo global, com a criação de uma atmosfera quase hollywoodiana, que poderia facilmente rotulá-lo como um thriller de espionagem. Mas é real, o que o torna ainda mais fascinante. E assustador.
https://www.youtube.com/watch?v=rHaWhUjV96M
Crítica | Capitão América 2: O Soldado Invernal - Uma Marvel mais adulta
Em meu texto sobre Thor: O Mundo Sombrio, reclamei sobre a falta de personalidade dos diretores que assumiam projetos dentro do Universo Cinematográfico da Marvel Studios, que mais pareciam produtos sob encomenda do chefão Kevin Feige (não que isso comprometesse por completo o resultado final destes). Mas em Capitão América 2: O Soldado Invernal, a produtora parece ter dado mais liberdade aos irmãos Anthony e Joe Russo, que entregam um projeto radicalmente diferente dos anteriores e capaz de se destacar como um dos pontos altos da trajetória do estúdio – ainda que imperfeito.
A trama é ambientada em Washington, e segue o Capitão Steve Rogers (Chris Evans) trabalhando em conjunto com a Viúva Negra (Scarlett Johansson) para a SHIELD, sob seu pseudônimo bandeiroso. Após uma missão duvidosa, Nick Fury (Samuel L. Jackson) é atacado pelo misterioso Soldado Invernal (Sebastian Stan) e o herói começa a questionar sua lealdade com a agência, que pode estar sofrendo de corrupção em seus departamentos internos.
De cara, já se percebe a intenção dos roteiristas Christopher Markus e Stephen McFeely em conferir uma trama mais adulta e política ao herói da Segunda Guerra. Confesso que me preocupava com a forma com que o personagem renderia um filme-solo nos dias atuais (já que Rogers é essencialmente um homem de seu tempo), mas a dupla acerta ao trazer elementos de espionagem internacional e a paranóia do governo americano em manter seus “inimigos” sob completa vigilância, o que entra em choque com a personalidade maniqueísta de “preto e branco” do personagem criado na guerra contra os nazistas. A performance de Chris Evans é bem mais interessante aqui, já que permite ao ator não só brincar com a ideia de um sujeito fora de seu tempo (inúmeras referências, reparem no caderninho), mas também questionar seu próprio papel nesse mundo.
E é justamente por tais virtudes que é uma pena ver o filme tomar as decisões erradas ao explorar sua ameaça invisível. Partindo do ótimo personagem-subtítulo, que surge como um oponente letal e visualmente criativo (ajuda também que a inspirada trilha sonora de Henry Jackman lhe confira um tema arrepiante), o roteiro de Markus e McFeely decepciona ao trazer de volta ameaças do primeiro filme do herói. Entendo ser um elemento essencial dos quadrinhos do Capitão América, mas se já é trabalhoso fazer funcionar um sujeito trajando a bandeira dos EUA em pleno século XXI, o que dizer de uma divisão científica nazista? Funciona com o Capitão, mas no caso da HIDRA, é apenas mais uma agência querendo dominar o mundo – o que não combina com a abordagem oferecida pelos roteiristas na metade inicial do filme.
Mas, se em seu núcleo a produção apresenta seus problemas, ao menos pode orgulhar-se de soar mais como um filme em sua pura forma do que seus antecessores. O humor é muito melhor distribuído aqui (nada como a palhaçada de Thor ou Homem de Ferro 3) e, como havia comentado ali em cima, os irmãos Russo mudam completamente o estilo dos filmes da Marvel ao apostar em cenas de ação agitadas, com cortes rápidos e muita câmera na mão; uma decisão acertadíssima (e claramente inspirada na trilogia Bourne, de Paul Greengrass) e que garante a O Soldado Invernal seus melhores momentos, que certamente impressionarão o espectador com coreografias excepcionalmente elaboradas e perseguições de carro empolgantes.
No fim, Capitão América 2: O Soldado Invernal revela-se uma das produções mais adultas e bem colocadas da Marvel Studios, ainda que seja comprometida por incongruências temáticas. Empolga pelo espetáculo e alguns momentos de tensão genuína, tornando-se um dos filmes mais interessantes do estúdio até o momento.
Capitão América 2: O Soldado Invernal (Captain America: The Winter Soldier, EUA - 2014)
Direção: Anthony Russo e Joe Russo
Roteiro: Stephen Markus e Stephen McFeely
Elenco: Chris Evans, Scarlett Johansson, Sebastian Stan, Anthony Mackie, Samuel L. Jackson, Robert Redford
Gênero: Aventura, Ação
Duração: 136 min
https://www.youtube.com/watch?v=tbayiPxkUMM
Leia mais sobre Marvel Studios
Blu-ray | Os Vingadores - The Avengers
Informações técnicas
Distribuição: Disney
Duração: 143 min
Discos: 1
Embalagem: Amaray
Luva: Não
Preço: R$ 29,90
Vídeo
Razão de aspecto: 1.85:1
Resolução: 1080p
Codec: MPEG-4 AVC (18.60 Mbps)
Áudio
Inglês: DTS-HD Master Audio 7.1 (48kHz, 24-bit)
Português: Dolby Digital 5.1 (640 kbps)
Espanhol: Dolby Digital 5.1 (640 kbps)
O Filme
★ ★ ★ ★
Um dos filme de super-heróis mais aguardados de todos os tempos, Os Vingadores foi a culminação do plano da Marvel Studios em finalmente juntar seus novos heróis em um longa metragem, reunindo Homem de Ferro, Capitão América, Thor, Hulk, Viúva Negra e Gavião Arqueiro para salvar o planeta de uma invasão do maléfico Loki. Sob a direção de Joss Whedon, temos um espetáculo de ação e bom humor, com a interação entre os heróis servindo bem o propósito e rendendo momentos memoráveis. De fato que o hype de seu lançamento contribuiu muito para o sucesso do filme, mas ainda é um dos mais divertidos e eficientes do estúdio. Crítica
Marvel One-Shot: Item 47
★ ★ ★ ★
Mais um episódio dos excelentes Marvel One Shot. Dessa vez, temos a bizarra história onde um casal acaba encontrando uma das armas chitauri após a Batalha de Nova York e a usa para cometer pequenos delitos pela cidade. Isso rapidamente chama a atenção da SHIELD, que envia dois de seus agentes para conter a situação e apreender a arma alienígena. Tem um roteiro esperto, direção segura de Louis D'Eposito e performances divertidas de Lizzie Caplan e Jesse Bradford.
Cenas Deletadas e Estendidas
★ ★ ★ ★
Se alguém pretende comprar este blu-ray pelos extras, esse é o extra que vai valer o investimento. Temos um total de 15 minutos de material inédito, distribuído ao longo de 9 cenas muito interessantes e que valem a conferida. Vale destacar as cenas que mostram o Capitão América se habituando ao mundo moderno e um diálogo entre Loki e Gavião Arqueiro que explicita melhor a execução de seu plano. Porém, o grande destaque fica para as sequências de abertura e encerramento alternativos, que oferecem uma abordagem muito mais dramática e misteriosa, começando com um interrogatório da agente Maria Hill após os eventos da Batalha de Nova York.
Erros de Gravação
★ ★ ★ ★
Talvez um dos mais divertidos de todos os filmes da Marvel Studios. Vemos quando os Vingadores cometem algumas gafes no set e divertem-se com elas, com destaque para a imitação de Alan Rickman por Tom Hiddleston e o improviso exageradamente over the top de Cobbie Smulders.
Uma Jornada Visual
★ ★
O único featurette que de fato traz um pouco de bastidores, mas é decepcionante. Só temos a equipe e o diretor Joss Whedon falando sobre a criação e concepção do Porta Aviões da SHIELD no filme, assim como o impacto deste diante seus personagens. Bem curto e muito raso.
Conclusão
Carente de um making of decente, é realmente muito triste que o blu-ray de Os Vingadores nem encoste o pé na água em termos de profundidade por trás de sua realização. Definitivamente foi um filme difícil de fazer, e é decepcionante que não tenhamos um olhar esclarecedor e analítico. Só vale mesmo pelas cenas inéditas.
Crítica | Doutor Estranho (Sem Spoilers) - O Misticismo da Marvel
Já faz quase uma década desde que o Homem de Ferro alçou voo pela primeira vez, com a inauguração da nova fase de blockbusters e filmes de super-heróis, em 2008. De lá para cá, é inevitável que a Marvel Studios precisa inventar novas fórmulas e apostar em novos personagens para manter o interesse do público e manter a roda da indústria girando, e o universo cinematográfico seguindo em frente. Bem, isso em teoria. Ainda que Doutor Estranho seja de fato um personagem desconhecido e que busque novos caminhos dentro do gênero, é mais uma reciclagem de história e temas já explorados.
A trama nos apresenta ao doutor Stephen Strange (Benedict Cumberbatch), um neurocirurgião de prestígio, porém arrogante, na cidade de Nova York. Após um acidente de carro brutal, suas mãos acabam severamente danificadas e que o impedem de continuar o ofício. À procura de literalmente qualquer tratamento medicinal, Strange acaba buscando ajuda no mundo oriental, onde é levado a conhecer a misteriosa Anciã (Tilda Swinton), que lhe abre as portas para um mundo místico onde a magia pode lhe dar poderes e curar suas mãos.
É a clássica história de origem 101. Aliás, é curioso como o arco dramático de Stephen Strange é gritantemente similar com o de Tony Stark, partindo da premissa de um sujeito brilhante e arrogante que sofre um acidente que lhe prejudica imensamente, levando-o então para uma jornada de redescobrimento e poderes sobrenaturais. Dito isso, é possível prever as escolhas do roteiro de Jon Spaiths, C. Robert Cargill e do diretor Scott Derrickson, assim como todas as viradas que ensinarão um caminho mais nobre para o protagonista. Isso já nos deixa claro novamente como a fórmula Marvel é imutável e já demonstra sinais de esgotamento, com uma sequência de treinamento, um interesse amoroso descartável e um vilão unidimensional que falha em impressionar.
Para não falar também dos maiores problemas que o estúdio vem enfrentando desde sua gênese: os alívios cômicos insuportáveis. É evidente que um trabalho de revisão passou pelo roteiro, dando entrada para as piadinhas toscas que impedem qualquer criação de atmosfera ou uma catarse intimista para os personagens – não podemos ver Strange finalmente sendo capaz de realizar uma habilidade nova sem que tenhamos um comentário sarcástico e anacrônico, vide a tenebrosa piada recorrente sobre o nome único de um dos personagens. É como se a Marvel tivesse medo de ser levada a sério ou que desejasse criar algo mais profundo, sacrificando também a construção do ritmo. Enquanto a DC erra a mão por ser demasiada “séria”, a Marvel é simplesmente incapaz de tratar algo como se não fosse piada.
Outro problema fica com o estabelecimento do universo. O que exatamente é o grupo de feiticeiros comandado pela Anciã? Como exatamente é a ordem dessas pessoas nesse universo estabelecido pela Marvel? De que forma posso levar isso a sério sendo que feiticeiros acessam internet via Wi-Fi? São ideias incongruentes e modernas demais, que também não casam com o design de produção de Charles Wood ou o figurino da sempre competente Alex Byrne (ainda que seja estranhíssimo que alguns dos personagens sejam vistos calçando tênis esportivos com seus quimonos orientais).
Porém, um aspecto que definitivamente merece aplausos pela inovação é o visual. A direção de Scott Derrickson aposta em uma abordagem psicodélica e impressionante para as manifestações de magia dos personagens. É como se tudo o que havíamos visto com os prédios dobrando em A Origem fossem multiplicados em escala e profundidade, rendendo empolgantes cenas de ação onde os personagens atravessam portais, prédios se desdobrando em forma de caleidoscópios e ações que transitam em diferentes dimensões. É um trabalho primoroso de efeitos visuais e movimento de câmera, tanto prático quanto virtual, e que certamente merece ser conferido em uma tela de IMAX 3D – ainda mais considerando a mudança de razão de aspecto durante cenas específicas. A fotografia de Ben Davis também faz bom uso de uma paleta de cores diversificada e que garantem dinamismo à cena, especialmente durante as sequências psicodélicas.
Nesse quesito, também fico feliz que o filme tenha sido capaz de pelo menos desviar de alguns clichês da fórmula, principalmente em termos de clímax. Não temos a grande cacofonia de personagens digitais e explosões irritantes, apostando dessa vez em elementos mais sobrenaturais e que brincam habilidosamente com as regras desse universo; há algo feito com o Tempo que é realmente impressionante, e que toma emprestado elementos que não víamos sendo usados desde o Superman de Richard Donner.
Outro elemento que também marca uma boa introdução ao universo da Marvel é Benedict Cumberbatch. Praticamente capaz de fazer qualquer coisa bem feita, o ator traz muito carisma e ironia para Strange, sendo bem sucedido ao construir um personagem tridimensional mesmo com pouco tempo de apresentação, tornando o primeiro ato de apresentação muito divertido e envolvente. Cumberbatch é o grande acerto, mas infelizmente não temos muitos outros destaques. Tilda Swinton tem uma presença interessante como a Anciã, mas nada que torne a personagem tão memorável, enquanto Chiwetel Ejiofor é prejudicado pelo arco confuso e de nota única de seu Barão Mordo – e que inevitavelmente cai no estereótipo do “sidekick”. Por fim, temos Mads Mikkelsen entregando mais um vilão decepcionante para a Marvel, ainda que o ator se garanta com seu carisma habitual.
Ah, e Rachel McAdams aparece de vez em quando por algum motivo.
Doutor Estranho é mais um exemplar do grande miojo da Marvel Studios, agora com um tempero místico que provoca alucinações. O visual é lindo e Benedict Cumberbatch se garante como mais um carismático herói da Marvel Studios. Porém, é só uma questão de tempo até o gênero se esgotar por repetição de fórmulas e clichês.
Obs: Há duas cenas pós créditas que trazem uma inesperada participação especial.
Doutor Estranho (Doctor Strange, EUA - 2016)
Direção: Scott Derrickson
Roteiro: Jon Spaihts, C. Robert Cargill, Scott Derrickson
Elenco: Benedict Cumberbatch, Chiwetel Ejiofor, Tilda Swinton, Rachel McAdams, Mads Mikkelsen, Benedict Wong
Gênero: Aventura
Duração: 115 min
https://www.youtube.com/watch?v=YUfWrIcX4zw
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Crítica | Jovens, Loucos e Mais Rebeldes!!
Quando perguntam sobre o que se trata um filme de Richard Linklater, é muito fácil dar a impressão de termos uma produção vazia e flácida durante a resposta. Se eu disser que uma série de filmes gira em torno de um casal conversando o tempo todo, pode parecer maçante e sem graça, até o momento em que nos deparamos com a trilogia de Antes do Amanhecer. Se eu disser que um filme gira em torno de adolescentes enchendo a cara e trocando ideia por uma noite, pode parecer só mais um besteirol americano, mas é Jovens, Loucos e Rebeldes. E se eu disser que um filme todo simplesmente acompanha o crescimento de um garoto, estamos diante de Boyhood - Da Infância à Juventude.
Nessa lógica, para quando perguntam sobre o que os filmes de Linklater são, a resposta mais verdadeira e apropriada é uma só: vida. São histórias centradas em personagens, emoções e como o mundo as afeta, e o cineasta é um dos melhores na arte de capturar essa pureza naturalista. Não fosse por ele, Jovens, Loucos e Mais Rebeldes!! seria apenas um filme qualquer, mas é algo mais especial do que poderia (e deveria) ser.
Batizado pelo próprio Linklater como uma "sequência espiritual" para Jovens, Loucos e Rebeldes (como a tradução nacional literalmente nos escancara), o filme nos apresenta ao jovem Jake (Blake Jenner), recém saído para começar a vida acadêmica em uma universidade no Texas. Chegando lá, ele conhece seus colegas de fraternidade e inicia os treinos para sua posição como jogador de beisebol para a faculdade, ao passo em que conhece as maravilhas das festas e a confraternização universitária - tudo a alguns dias do início das aulas.
É muito parecido com a atmosfera de Jovens, Loucos e Rebeldes, servindo sim como uma espécie de continuação - afinal, o início da vida universitária é um tema tão interessante quanto o fim do colegial. Então, partimos da magia de Linklater de tornar o cotidiano e ordinário tão interessantes e humanos. Vemos Jake fortalecendo laços com seus amigos, discussões sobre quais festas ir, quais mulheres paquerar e tudo o que poderíamos esperar de um universo jovem assim. A prosa de Linklater permanece inteligente, mas mantendo uma linguagem realista e que se aproxime do mais mundano possível.
Não que isso não dê a oportunidade de Linklater explorar seu viés mais poético, já que um dos melhores núcleos do filme é quando Jake conhece a aluna Beverly (a ótima Zoey Deutch) e inicia uma série de flertes e diálogos de walk and talk que remetem diretamente às deliciosas conversas de Ethan Hawke e Julie Delpy na trilogia do Antes. São momentos de leveza, diversão e excelente química entre Jenner e Deutch, que nos faz desejar observar aonde essa história culminará após os créditos começarem a subir.
As cenas de Jake com os amigos são as mais engraçadas, especialmente pela diversidade de festas que o grupo acaba frequentando. De boates típicas dos anos 80 até house parties que, como de costume, saem do controle além do esperado e bailes em rodeios e uma bizarra festa à fantasia do grupo de teatro, são situações divertias das quais Linklater tira muito proveito, principalmente pela força de seu elenco. Além de Jenner, o elenco quase que predominantemente novato se sai muito bem, com destaque para J. Quinton Johnson como Dale, Juston Street como o surtado Jay e Glenn Powell como o fanfarrão Finnigan. E ainda que não seja exatamente um novato, Wyatt Russell garante um dos personagens mais interessantes e inesperadamente melancólicos como Willoughby.
Outro aspecto importantíssimo do filme - assim como em quase todas as obras do diretor - é o uso brilhante de uma trilha sonora incidental nostálgica e vibrante. Já vemos no título original (Everybody Wants Some!) a canção famosa do Van Halen, e o filme segue essa linha musical evocativa e digna do "original", que pode-se orgulhar de ter uma das melhores seleções musicais do cinema americano. Aqui, o filme já começa no 220 com o uso memorável de "My Sharona", do The Shack e ainda traz Pink Floyd, Kool & The Gang, Frank Zappa, Dire Straits entre muitos outros. Ótima playlist.
É difícil analisar um filme onde praticamente "nada acontece". A técnica de Richard Linklater não é inovadora ou particularmente criativa, mas Jovens, Loucos e Rebeldes!! é uma experiência envolvente e divertidíssima graças à humanidade dos personagens e do fantástico roteiro.
Crítica | Trovão Tropical
Filmes sobre os bastidores do cinema sempre rendem algo, no mínimo, curioso. Já tivemos grandes clássicos do gênero nas figuras de Crepúsculo dos Deuses, O Jogador e até mesmo o subestimadíssimo Assim Estava Escrito (filme de Vincente Minelli que você precisa conhecer!), três exemplos onde acompanhamos narrativas fictícias que exploram o lado sombrio e bizarro do processo de criação cinematográfica. Mas hoje, vamos dar uma olhada no filme que é assumidamente ácido e mais direto em sua sátira: Trovão Tropical.
O longa gira em torno de uma produção caríssima de Hollywood que está em plena gravação de um épico de Guerra do Vietnã que adapta um famoso best seller de um veterano enlouquecido (Nick Nolte). Na equipe, temos o astro de ação desesperado para ser levado a sério em drama, Tugg Speedman (Ben Stiller), o comediante escrachado Jeff Portnoy (Jack Black) e um ator de método que mergulha profundamente em seus personagens, Kirk Lazarus (Robert Downey Jr). Quando a produção estoura o orçamento e causa o pânico do diretor estreante (Steve Coogler), este tem a ideia de continuar as gravações em modo guerrilha, adentrando na floresta da locação em um país asiático.
É a receita para o desastre e uma trama engraçadíssima. O choque de opiniões e estilos dos personagens torna bem claro o tipo de estereótipo que assumem, já bem definidos na brilhante abertura que simula trailers de lançamentos falsos estrelando cada um dos protagonistas (uma maneira eficiente e crível de serem apresentados, diga-se de passagem), com Stiller sendo uma clara alegoria de Sylvester Stallone, Black de Eddie Murphy e Downey Jr de Daniel Day Lewis.
Ver a interação dos três resulta em uma das experiências mais engraçadas da comédia americana dos últimos anos, com destaque absoluto para Downey Jr. Abraçando completamente o politicamente incorreto, o ator surge em uma paradoxo maluco ao interpretar um ator que se recusa a sair do papel até terminar os comentários em áudio do DVD (uma piadinha que foi mantida nos extras do home video, veja só), então o vemos fazendo um australiano que imita um sotaque africano estereotipado. É impressionante que Downey Jr tenha sido indicado ao Oscar por sua performance naquele ano, em um raro exemplo de vermos a Academia reconhecendo comédias.
Atuando também atrás das câmeras (o que não deixa de ser uma sutil piadinha com o fato de Stallone dirigir seus filmes), Stiller faz um de seus melhores trabalhos como diretor. A abertura que passeia pela gravação de uma pesada cena de batalha é ao mesmo tempo engraçada e visceral, onde essas duas características dependem uma da outra; a violência extrema chega ao ponto do absurdo, o que favorece o riso e as performances exageradas de Black, Stiller e ainda Danny McBride, Brandon T. Jackson e Jay Baruchel.
O roteiro assinado por Stiller, Justin Theroux e Ethan Cohen (com H, não é o irmão do Joel) dispara referências e situações que apelam como poucas ao nonsense. No momento em que os personagens tem uma discussão ideológica e separam-se na floresta, Tugg Speedman é raptado por um grupo de tráfico de drogas que acaba transformando-o em seu bobo da corte particular ao descobrirem se tratar do astro de seu filme preferido; que é, visto por todo o resto do mundo, uma aberração cinematográfica feita apenas para conquistar a temporada de prêmios - o tipo de produção que continua sendo feita anualmente, diga-se de passagem. E fica ainda melhor quando o grupo liderado por Lazarus arma uma bizarra operação de resgate, que inclui uma maquiagem asiática, armas na cueca e um trocadilho com Al Pacino inesquecível.
E não poderíamos nos esquecer de Tom Cruise. Na pele do asqueroso Les Grossman, o galã se perde em alguns quilos de maquiagem e muitos pelos para se transformar em um produtor de cinema caricato e boca suja, rendendo alguns dos melhores momentos do filme. Suas interações com Matthew McConaughey garantem muitas piadas e situações de nonsense, como uma inesperada chantagem ao som de "She Hit the Floor" ou a dancinha que embala os créditos finais.
Trovão Tropical é uma comédia ácida que ataca todas as convenções de Hollywood e não te medo de abraçar o grotesco ou o politicamente incorreto. Graças a um roteiro esperto e um elenco hilário, temos aqui uma das melhores comédias dos anos 2000.