Crítica | The Witcher: 1ª Temporada - Uma Adaptação Medíocre

2019 foi um ano oscilante para a Netflix: na mesma medida que nos entregou inúmeras obras-primas cinematográficas, como o drama História de um Casamento e o instantâneo clássico O Irlandês (que entrou para a história como um dos melhores filmes já produzidos), também falhou em produzir certo conteúdos originais – como comédias românticas adolescentes que reciclavam a mesma fórmula vencida e séries que definitivamente não mereciam continuação (como a insossa e desnecessária Insatiable). De qualquer modo, a plataforma permanece como uma das gigantes de streaming e alguns projetos anunciados ganham a nossa atenção e prometem entregar muito mais do que conseguem.

Foi isso o que aconteceu com The Witcher. A famosa trama arquitetada pelo romancista Andrzej Sapkowski ganhou uma legião de fãs desde o seu lançamento e inclusive faz parte do segundo ciclo da explosão da literatura fantástica ao lado de, por exemplo, George R.R. Martin (o autor da aclamada As Crônicas de Gelo e Fogo). Para levar o expansivo e visceral mundo de Sapkowski para as telinhas, Lauren Schmidt Hissrich teria um complexo trabalho a realizar e, para além disso, deveria se manter fiel tanto à própria estética criativa quanto à história explorada nos livros e na premiada série de games.

O resultado não foi nada menos que frustrante: apesar da belíssima transcrição que Hissrich fez do perigoso e inebriante Continente, o pano de fundo por vezes se desmanchou em linhas narrativas saturadas de personagens descartáveis (ou que seriam melhor utilizados em ciclos futuros) – isso sem falar em sequências inteiras que não deveriam existir ou então que foram colocadas no lugar errado e na hora errada. Ao menos o ritmo da obra engata após as convencionais apresentações dos protagonistas (mesmo saindo de nenhum lugar a lugar nenhum e provando que o público acompanhava a uma antológica jornada tour-de-force).

Geralt (Henry Cavill) é um witcher, um caçador de monstros cuja estrutura corporal e psíquica foi modificada através de mutações propositais e que lhe deram habilidades muito maiores que um ser humano normal, aumentando sua força, sua percepção, sua bravura e sua velocidade. Entretanto, o guerreiro foi privado de uma infância normal e, por isso, não tem uma relação “amigável” com outras pessoas – que normalmente o encaram como um ser demoníaco, fruto do pecado e que não deve ser confiado. As coisas mudam quando ele cruza caminhos com outras figuras totalmente fora do padrão: a maga Yennefer de Vengerberg (Anya Chalotra) e a jovem princesa refugiada Cirilla (Freya Allan).

Por muitos anos, as fórmulas fílmicas foram criticadas por seguirem um padrão excessivamente problemático e familiar para os espectadores – levando-nos a pensar na falta de capacidade cognitiva de compreender algo diferente e original. Hissrich, dessa forma, abriu espaço para promover uma desconstrução dos engessados conceitos supracitados, abolindo inclusive o materialista conceito de “cronologia”. Afinal, até meados do terceiro capítulo, temos certeza absoluta de que os três arcos protagonistas irão se juntar mais cedo ou mais tarde em uma convergente reviravolta ou algo do tipo, amarrando as pontas soltas e caminhando para um competente season finale; porém, não é isso o que acontece: na verdade, o trio em questão se situa em linhas temporais diferentes cujas delineações brincam com as ideias de passado, presente e futuro – ou ao menos tentam fazer isso.

A verdade é que a série exala com incrível potencial e, num amador equívoco, se desenvolve numa zona de conforto que, ao mesmo tempo, busca explicar tudo o que existe no universo apresentado. Não é à toa que a sensação inicial é episódica (uma ironia cômica, se não fosse infeliz), colocando Geralt acima das outras personagens em aventuras pontuais que forçosamente se entrelaçam na “batalha final”; mais do que isso, o roteiro não sabe equilibrar a dosagem cênica dos personagens principais, por vezes se esquecendo da importante representação de Ciri, ou então nos envolvendo na poderosa e arrepiante transformação de Yennefer apenas para reinventar um cânone pré-estabelecido.

Apesar dos múltiplos erros, a produção acerta em aspectos imprescindíveis para o envolvimento da audiência: desde a perfeição dos cenários até a performance de seus atores, é inegável dizer que o show pensa com exímia cautela na atmosfera de cada uma das cenas, ainda que recorra a certas obviedades: mesmo não se comparando ao nível de construção de outras investidas contemporâneas, The Witcher faz bom uso das cartas que lhe foram dadas e diferencia os múltiplos caminhos que nossos “heróis” trilham. Ademais, Chalotra nos rouba a atenção por uma atuação narcótica e agonizante – e que detém o único sólido desenvolvimento desse primeiro ano.

A nova série da Netflix deve agradar aos fãs por sua fidedignidade aos livros originais e por seu tom mais dark e mais satírico em relação a outras iterações fantasiosas. Todavia, ela perde-se em tantas questões banais que transforma-se em um amontado de histórias sem coesão, polvilhadas por sequências de ação que, por mais bem coreografadas que sejam, insurgem como meras medidas paliativas.

The Witcher – 1ª Temporada (Idem, Reino Unido, Estados Unidos – 2019)

Criado por: Lauren Schmidt-Hissrich
Direção: Alik Sakharov, Alex Garcia Lopez, Charlotte Brändstörm, Marc Jobst
Roteiro: Lauren Schmidt-Hissrich, Jenny Klein, Beau DeMayo, Declan de Barra, Sneha Koorse, Haily Hall, Mike Ostrowski
Elenco: Henry Cavill, Anya Chalotra, Freya Allan, Joey Batey, MyAnna Buring, Mahesh Jadu, Mimi Ndiweni, Eaon Farren, Anna Shaffer
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Ação, Fantasia, Drama
Duração: 60 min.


Crítica | Apocalipse V: 1ª Temporada - A Insuficiência das Boas Intenções

Desde que Drácula, de Bram Stoker, foi lançado em 1897, o gênero da fantasia gótica ganhou um novo capítulo: entre recriações lendárias que ficaram para as eras e inúmeras releituras dentro da indústria do entretenimento, o outrora engessado personagem vampiresco tornou-se herói, vilão, anti-herói – e foi agraciado com uma backstory que o transformou num ser menos inalcançável e mais humano. É claro que, ao longo das múltiplas adaptações do romance supracitado, alguns deslizes foram praticamente imperdoáveis (como o presunçoso Van Helsing e o esquecível Drácula – A História Nunca Contada).

Com o passar do tempo, o fabulesco teor dessas narrativas transformou-se em um pesaroso drama que, por mais que suas intenções fossem as mais puras possíveis, nunca ousava para além do esperado, como é o caso das recentes Vampire Diaries, True Blood e Legacies. Tal enredo, nos dias de hoje, é embebido em uma explicações genéticas que analisam a passagem de um humano a um vampiro – e, para isso, a Netflix resolveu investir em mais um show original intitulado Apocalipse V. A produção, que é respaldada por uma estrutura consideravelmente sólida, tenta ao máximo se esquivar de convencionalismos artísticos e técnicos, mas rende-se a algo conhecido, nem um pouco original, e que apressa-se a um medíocre season finale que nos deixa mais frustrados que satisfeitos (ou ansiosos para o próximo ciclo).

Toda famosa lenda sobrenatural deve começar em algum lugar – e é isso a que se compromete a trama criada originalmente pelo quadrinista Jonathan Maberry: o pano de fundo é centrado no Dr. Luther Swann (Ian Somerhalder), um cientista que viaja para as terras geladas do Ártico ao lado de seu braço-direito Michael Fayne (Adrian Holmes) para investigar o desaparecimento de dois colegas de trabalho. Entretanto, ao chegarem às facilidades laboratoriais, descobrem que não há sinal de vida dos dois – e, como se não bastasse, libertam um tipo de biomassa que esteve escondida por milhares de anos. Basicamente, esse espécime ativa um gene dormente que existe em uma boa parte da população mundial e dá origem ao que apenas entendemos como “o próximo passo da evolução”: predadores que se alimentam de sangue humano e que possuem força, audição e capacidade de recuperação surpreendentes – ou seja, vampiros.

Após ficarem em quarentena, Luther e Michael ficam doentes até serem liberados por falta de quaisquer evidências que os obriguem a permanecer longe do contato humano – isso é, até Michael contatar seu melhor amigo depois de destroçar uma jovem desconhecida. É nesse momento que Luther percebe que a biomassa entrou em novo estágio e espalha-se tão rápido quanto água – infectando dezenas de pessoas em poucos dias e milhares em algumas semanas. E é a partir daí que a humanidade é posta em xeque pela presença mortal dos Sanguíneos (nome dado à comunidade vampírica que insurge como forma de protesto e resistência).

A série até tenta criar sua própria mitologia, mas abandona recursos valiosos que são mostrados aos espectadores nos primeiros episódios: na verdade, é inegável dizer que o enredo cultivado é instigante em todos os seus aspectos – renegando a si mesmo em prol de algo que seja mais crível por parte da audiência. Ora, estamos tratando de uma produção fantasiosa, literalmente visceral (com alguns resquícios científicos que não devem ser levados a sério). Deixar que um molde melodramático carregue todo o peso cênico da obra é um grave erro a ser cometido – e é isso que se demonstra para o público: com alguns momentos fervorosos que poderiam ser melhor construídos, Apocalipse V falha ao aglutinar os elementos que têm em uma cronologia compreensível o suficiente.

Enquanto os personagens principais são atacados com a presença de coadjuvantes que brotam dos mais diversos lugares, ao menos alguns nomes excedem as expectativas, como é o caso de Mila Dubov (Laura Vandervoort), que é transformada em uma Sanguínea pela própria irmã e luta contra os impulsos de consumir sangue fresco. Mila, apesar de não nutrir do tempo de cena que deveria, tem um poderoso arco em que se transforma numa justiceira à la Blade, o Caçador de Vampiros, lidando com a própria perda de personalidade para se vingar e, eventualmente, ajudar Luther a adquirir uma cura.

Ademais, nenhuma das outras personas ergue qualquer química aparente: Luther e Michael são bem melhores quando estão separados; Danika (Kimberly-Sue Murray) é uma das figuras mais misteriosas da série ao portar-se como uma femme fatale que consegue absolutamente tudo o que deseja (ainda mais por ser uma criatura Vardulak, ou seja, uma subespécie que libera uma toxina viciante em suas vítimas), mas quando vira o par romântico de Michael, perde sua forte presença. Até mesmo Desmond (Kyle Breitkopf) e Kaylee (Jacky Lai) são embutidos com forçadas subtramas que não fazem o menor sentido e contribuem para nenhuma mudança dentro do escopo principal.

De qualquer forma, nem tudo está perdido: apesar dos múltiplos e amadores deslizes que não fazem jus ao material de inspiração, o show diverte; quando não se leva muito a sério ou não se deixa infiltrar por metáforas vencidas e pessimamente articuladas, ela entretém dentro de suas limitações e maneja pavimentar um gancho interessante para os capítulos que virão.

Apocalipse V é uma mistura ridiculamente eclética de Resident Evil com qualquer drama adolescente pós-apocalíptico. Apesar de não conseguir se desvencilhar das fórmulas, ao menos a obra é, como já mencionado, divertida.

Apocalipse V – 1ª Temporada (V-Wars, EUA – 2019)

Direção: Brad Turner, T.J. Scott, Kaare Andrews, Martia Grabiak, Bobby Roth, Ian Somerhalder
Roteiro: Sam Beck, Charlie Cleven, Glenn Davis, Bernard Keogh, Seamus Keogh, William Laurin, Jonathan Maberry
Elenco: Ian Somerhalder, Adrian Holmes, Jacky Lai, Kyle Breitkopf, Kimberly-Sue Murray, Peter Outerbridge, Michael Greyeyes, Sydney Meyes, Laura Vandervoot
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama, Ação, Fantasia
Duração: 40 min. aprox.


Crítica | O Príncipe Dragão: 3ª Temporada - A Batalha Final

As séries animadas originais da Netflix parecem seguir um padrão bastante estruturado que, por enquanto, tem funcionado em sua completude: em 2016, tivemos o lançamento do aclamado Caçadores de Trolls, cuja parceria com Guillermo del Toro provou ser um deleite para os olhos e até mesmo deu origem a um spin-off intitulado Os 3 Lá Embaixo e, mais ainda, a uma franquia chamada Contos da Arcádia. Pouco depois, a aventura intergaláctica jovem-adulta Final Space chegou ao serviço de streaming, acompanhada da divertida minissérie The Hollow, que mais funcionava como uma tradução inusitada dos populares jogos de RPG online que caem nas graças do público. O principal ponto em comum entre essas produções é que, como forma de envolver os espectadores, partiram da simples ideia de transgredir as barreira clássica da “jornada do herói” e imprimir uma perspectiva interessante ao que planejavam contar.

Bom, foi isso que aconteceu com O Príncipe Dragão: a trilogia da plataforma é o que podemos apenas encarar como uma das séries mais bem elaboradas dos últimos anos que, devido à enorme quantidade de produtos audiovisuais lançados por semana no mundo inteiro, passou despercebida pelos radares mais mainstreams e acabou se escondendo ofuscada pelo gigantesco marketing de suas conterrâneas. Porém, não se enganem com a falta de popularidade dessa narrativa, pois a história de Callum, Rayla, Ezra e do poderoso bebê-dragão Azymondias é muito mais obscura e profunda do que imaginávamos – e essa incrível habilidade de nos encantar do começo ao fim é mais uma vez explorada na terceira temporada.

Retornando para a Netflix poucos meses depois de seu último season finale, o show continua exatamente de onde parou: Callum (Jack De Sena) e Rayla (Paula Burrows) estão prestes a chegar a Xadia para devolver Zym à sua mãe, mas percebem que o breve caminho é recheado dos mais diversos obstáculos – incluindo um encontro de quase morte com o mortal Sol Regem (Adrian Hough), um poderoso dragão que foi cegado pelas forças das trevas e agora guarda a travessia do reino humano para o reino mágico. Do outro lado, o jovem Ezran (Sasha Rojen) retorna para Katolis e ascende ao trono apenas para descobrir que seus inimigos estão mais próximos do que pensava – e, entre poucos aliados que ainda se postam ao seu lado e uma legião de cidadãos e soldados sedentos por vingança pela morte do antigo rei, ele é obrigado a tomar medidas drásticas para sobreviver.

Se a primeira temporada trouxe iterações delineadas para nos apresentar a um fantástico mundo onde as aparências enganam e as criaturas mais contraditórias entre si poderiam se unir, e a segunda funcionou como um amadurecimento de figuras tão ecléticas, mas tão brutas (no tocante à personalidade), o novo ciclo de fato funciona como uma mescla eximiamente equilibrada entre esses dois aspectos, oscilando entre reviravoltas chocantes, conluios macabros e uma última jogada que pode colocar em xeque o futuro de todos os Reinos.

Mais uma vez, Aaron Ehasz e Justin Richmond supervisionam o roteiro e fazem questão de construir um enredo que seja bem fechado e sem muitas pontas soltas – por mais que os personagens coadjuvantes se tornem uma peça essencial para o seguimento da trama. Mesmo os deslizes contribuem para que compreendamos algo sutil demais para ser trazido por meio de ambivalências cênicas, sendo transpostas para flashbacks que, ainda que em excesso, explicam os grandes segredos que se escondem no remoto passado de Katolis, Xadia, e as outras províncias. Rayla, por exemplo, confronta as consequências de ter abandonado sua missão e ter se juntado a Callum e Ezran para um bem maior – e é enxergada como uma pária para sua comunidade da mesma forma que seus pais.

Enquanto o jovem trio desenvolve uma orgânica harmonia que inclusive evolui para um breve arco romântico entre os personagens de De Sena e Burrows, o grande vilão da série, Viren (Jason Simpson) também insurge de sua forçada reclusão para liderar um exército de monstros para capturarem Azymondias e restaurarem a glória e o futuro humanos – os quais já estavam condenados há vários anos por intervenção sobrenatural. Viren, acompanhado da filha Claudia (Racquel Belmonte), que revela ser uma espécie de agente dupla medieval, ele instaura um reino de terror que quase vê a luz do dia, mas é impedido por aqueles que ainda buscam por justiça, como Soren (Jesse Inocalla), o filho rebelde do antagonista que decide virar as costas para o pai e lutar do lado certo do campo de guerra.

Mais uma vez, o time criativo alça voo com a estética clássica que imprime para os breve nove episódios: a nostalgia bidimensional tanto vista e reformulada nas décadas anteriores ganha uma roupagem diferenciada, que brinca tanto com a nostalgia cênica quanto com sutis elementos de contemporaneidade, seja no tratamento performático dado aos personagens, seja no dinamismo que exala dos diálogos. Com exceção talvez da sequência de reencontro entre Zym e sua mãe, cujo peso catártico é jogado fora e transformado em uma apressada conclusão, os capítulos caminham para um ponto em comum, convergindo em uma fluidez chocante para mais um cliffhanger que promete mudar a atmosfera da série de uma vez por todas.

O Príncipe Dragão retorna para mais uma temporada com um frenético ritmo que nunca perde a mão – nem mesmo em seus momentos reflexivos ou dramáticos. Mais uma vez, Ehasz e Richmond provam que são alguns dos nomes mais prolíficos da indústria animada atual e que, mesmo dentro de uma esfera borbulhando com releituras e readaptações, conseguem entregar uma obra saudosista e original.

O Príncipe Dragão – 3ª Temporada (Idem, EUA – 2019)

Criado por: Aaron Ehasz, Justin Richmond
Direção: Villads Spangsberg
Roteiro: Aaron Ehasz, Justin Richmond, Devon Giehl, Iain Hendry, Neil Mukhopadbyay
Elenco: Jack De Sena, Paula Burrows, Sasha Rojen, Racquel Belmonte, Jason Simpson, Jesse Inocalla, Jonathan Holmes, Luc Roderique, Adrian Petriw
Emissora: Netflix
Episódios: 09
Gênero: Animação, Fantasia, Aventura
Duração: 25 min. aprox.


Crítica | Feliz Natal e Tal: 1ª Temporada - Mais Uma Rom-Com Qualquer

Em fevereiro deste ano, a Netflix anunciou que trabalharia em uma nova série original possivelmente antológica a ser lançada nas semanas antecedentes ao Natal e ao Ano-Novo. Pouco depois, o  showrunner Tucker Cawley, conhecido por seu incrível trabalho em produções como Everybody Loves Raymond e Parks and Recreation, foi contratado para dar vida a uma nova história que ficaria conhecida como Feliz Natal e Tal – e o resultado, apesar de funcionar mais como uma cópia de qualquer outra investida de final de ano, funciona dentro de suas limitadas propostas e basicamente conta com a habilidade de envolvimento de seu elenco.

O enredo segue à risca as estruturas de uma sitcom e gira em torno de Emmy (Bridget Mendler, voltando para as telinhas anos depois de ter estrelado Boa Sorte, Charlie!), uma jovem executiva que está retornando para a Filadélfia a fim de passar os feriados com sua gigantesca – e um tanto quanto desconexa – família. Mais do que isso, ela deseja introduzir aos parentes o namorado Matt (Brent Morin), que luta praticamente a temporada inteira para causar uma boa impressão e ser aceito como novo membro do núcleo protagonista. E é óbvio que, em se tratando de um show de comédia romântica, o casal irá passar por poucas e boas até que suas resoluções se completem e caminhem para um final feliz (e hilário, é claro).

A princípio, Matt é confrontado pela dura personalidade de Don (Dennis Quaid), pai de Emmy e a materialização do estereótipo superprotetor da figura patriarcal que deve “reclamar” seu posto principalmente depois da morte da esposa. Como se não bastasse, ele é conhecido por toda a cidade, ainda mais por trabalhar como chefe da delegacia local – então as coisas caminham muito bem. Além disso, o personagem de Morin também conhece outras figuras um tanto quanto contraditórias quanto ao jeito de se portar e explosivas (muito explosivas). Temos, de um lado, a otimista e vibrante Patsy (Siobhan Murphy), que é tão receptiva que chega a assustar os mais desavisados; do outro lado, o fanfarrão Sean (Hayes MacArthur) e sua esposa Joy (Elizabeth Ho), que nutrem de uma apaixonante química explorada ao longo dos oito episódios.

Mas, de fato, é Ashley Tisdale quem nos rouba a atenção como a rebelde e confusa Kayla, que termina com seu marido dias antes das celebrações natalinas apenas para entrar numa crise existencial que culmina num emotivo coming-of-age. A atriz, conhecida por seu papel como Sharpay Evans em High School Musical, voltou para a vida performática depois de ter lançado seu terceiro álbum de estúdio e mostrou que ainda trabalha para trazer temas importantes para as produções contemporâneas – não é surpresa que ela seja uma personagem presa nos convencionalismos sociais que se assume lésbica depois de conversar com Matt.

Diferente de obras como One Day at a Time, que conseguem usufruir das restrições cênicas das sitcoms para algo novo e que oscila entre a tragédia, o drama e a comédia, ao mesmo tempo que contempla temas necessários para contemplação social, Feliz Natal e Tal é mais comedida quanto a esses assuntos. É certo dizer que a série, comportada dentro de uma caixinha confortável, almeja apenas a construir uma trama bem fechada que, mesmo não isenta de furos de roteiro, cumpre com o que promete e nos deixa uma sensação de completude.

Apesar disso, não podemos fazer vista grossa para a multiplicidade de fórmulas que exala do narrativa: os primeiros capítulos, a despeito de funcionarem como introdução ao enredo, são movidos por diálogos frenéticos e artificiais, beirando um preciosismo desnecessário. Essa “falsidade”, por assim dizer, estende-se até o terceiro episódio e depois dá um salto significativo em direção à fluidez, construindo alguns arcos coadjuvantes intrincados e que conseguem se sustentar até o season finale.

Cawley e sua equipe também não se preocupam em sair do jogo campo e contracampo no tocante à estética imagética. Como mencionado alguns parágrafos acima, o show é fiel ao extremo às convenções do gênero que traz para as telas e, por isso mesmo, permite se levar pela praticidade técnica. Entretanto, esse aspecto é colocado em xeque quando até mesmo as quebras de expectativa violam máximas de credibilidade e transformam a coesão em uma série de ocasionalidades condescendentes e impossíveis.

Feliz Natal e Tal merece crédito pela performance de seu elenco, mas perde muitos pontos no quesito de originalidade. Ao passo que tenta fornecer uma nova perspectiva às clássicas rom-coms seriadas dos anos 1990 e 2000, ela se apega muito à nostalgia e deixa de lado elementos cruciais para criar comoção – com exceção de uma ou duas investidas pontuais.

Feliz Natal e Tal – 1ª Temporada (Merry Happy Whatever, Estados Unidos – 2019)

Criado por: Tucker Cawley
Direção: Pamela Fryman
Roteiro: Tucker Cawley, David Holden
Elenco: Bridigt Mendler, Ashley Tisdale, Dennis Quaid, Brent Morin, Siobhan Murphy, Adam Rose, Elizabeth Ho, Hayes MacArthur
Emissora: Netflix
Episódios: 08
Gênero: Sitcom
Duração: 25 min.


Crítica | The Crown: 3ª Temporada - Conluios, Trapaças e Mentiras

Em 2016, a Netflix dava início ao que podemos considerar como uma de suas melhores investidas. A plataforma de streaming resolvia, àquela época, dramatizar através de uma perspectiva única a vida e o legado da família real britânica, mais especificamente abrindo as páginas do conturbado e controverso reinado de Elizabeth II. Não demorou muito para que The Crown, como ficou intitulada a produção, aglutinasse uma legião de fãs sedentos por tragédias inglesas – e, agora, chegamos à terceira temporada dessa série multimilionário. Ao contrário do que poderíamos imaginar (talvez uma decadência pressuposta pela descontínua qualidade de outras obras originais do serviço), a nova iteração não apenas mantém-se dentro de um coeso ritmo, mas arquiteta narrativas que ganham uma complexidade poética admirável e surpreendente em diversos aspectos.

Dando um salto temporal de dez anos desde os últimos eventos, Claire Foy dá espaço para que a recém-vencedora do Oscar Olivia Colman dê vida à icônica monarca. Colman, conhecida por seus papéis em outras produções de época (A Favorita e Assassinato no Expresso do Oriente são os exemplos mais explicativos), teria um complicado trabalho ao chegar em um nível similar ao de sua predecessora e, eventualmente, superá-la. Afinal, estamos lidando com uma Elizabeth que não mais lida com a inesperada transição de sua vida como princesa para um cotidiano regido por leis pétreas e milenares que condizem com a situação de uma nação inteira; agora, ela encontra-se em um período crucial de seu governo, lidando com mentiras, conluios e uma premedita decadência internacional que reflete a obsolescência britânica.

Colman não nos desaponta em nenhum momento; na verdade, ela se entrega a uma performance aplaudível que recuperar trejeitos de Foy e os incremente com uma sabedoria narcótica, viciante do começo ao fim. A atriz também aproveita o espaço que tem para construir uma figura empática em vez de simpática (como bem sabemos, a Rainha nunca se portou de forma amigável; preferia, sim, por se mostrar como racional, fria e propositalmente metódica). Foi através dessas acepções que compreendemos o motivo por sua personalidade ser tão irretocável: mesmo nas situações mais emotivas, ela não se dava ao luxo de derramar lágrimas, com breves exceções em que, quietamente, ela nos mostra a dor da perda.

Se Elizabeth foi o foco da primeira e, com menos força, da segunda temporadas, aqui sua presença permite que os outros personagens dividam o holofote. Os capítulos funcionam como explorações romantizadas das outras figuras reais, usando e abusando de acontecimentos verídicos para humanizar um núcleo familiar esteticamente estagnado. O irritante e impetuoso Príncipe Philip (Tobias Menzies) tenta encontrar sua importância ainda que colocado em segundo lugar e, por essa razão, descobre coisas sobre sua própria personalidade que o guia através de um coming-of-age tardio; o primogênito Charles (Josh O’Connor) e sua irmã, Anne (Erin Doherty), sofrem com as responsabilidades que lhes são impostas, obrigados a abandonar o que realmente acreditam em prol da manutenção secular de uma hereditariedade datada.

Mas é Helena Bonham Carter quem nos conquista desde sua primeira aparição. Dando vida à versão mais velha da Princesa Margaret, Carter continua os meneios rebeldes imortalizados por Vanessa Kirby nas iterações anteriores e mergulha numa brusca perda de identidade e sanidade; afinal, da mesma forma que outros membros da realeza inglesa, ela sempre foi colocada em reclusão, desejando, mais que tudo, ascender ao trono ou ao menos dividir as árduas tarefas da monarquia ao lado da irmã. Por mais que nutrisse de um amor por Elizabeth, Margaret sempre se sentiu menosprezada – e esse agonizante sentimento é delineado com perfeição no roteiro de Peter Morgan.

De fato, a narrativa e a condução cênica entram em uma belíssima explosão catártica, movida principalmente pelo estado primordial da melancolia. Diferente da espontaneidade artística vista nos dois primeiros ciclos, Morgan e sua competente equipe técnica traduz o desenrolar dos eventos baseando-se em uma tragédia shakespeariana, revestindo-a com a impactante sobriedade de cores mais cinzentas que gradativamente são abraçadas por um monocromático desespero. Em contraposição, os protagonistas também se veem em momentos de paz espiritual, “fugindo” do status quo que lhes precede antes do nascimento apenas para serem puxados de volta a uma letargia inescapável.

Dentre os múltiplos temas explorados, a série resolve se afastar do que já foi apresentado ao público e opta por ergue fundações delimitadas no paradoxo entre aparência e essência. A perspectiva platônica é expandida para tramas históricas, é claro, como a greve de mineradores contra o descaso governamental e as extenuantes jornadas de trabalho e a revolta do povo galês contra o imperialismo inglês; mas, nos bastidores, vemos que a realeza luta para se aproximar do público, atravessando uma corda-bamba que oscila entre o ridículo e as intenções benfazejas – incluindo um documentário televisivo que dá errado de absolutamente todos os jeitos.

Ao mesmo tempo que faz duras críticas à superficialidade da monarquia (aproveitando para se conectar com o errático parlamento), o enredo também se desdobra em contos de superação, desviando a atenção do ostensivo palácio e suas adjacências para algo mais concreto, palpável e inebriante de um modo que apenas Morgan consegue fazer.

O retorno de The Crown veio acompanhado de gigantescas expectativas e, num escopo não muito extraordinário, as cumpriu para além do que imaginávamos. Apesar da estória em questão não ser original, a série é talhada com minuciosa cautela e oferece, antes de mais nada, um convite singelo para que conheçamos um lado mais humano de seus personagens.

The Crown – 3ª Temporada (Idem, Reino Unido, Estados Unidos – 2019)

Criado por: Peter Morgan
Direção: Benjamin Caron, Christian Schwochow, Jessica Hobbs, Sam Donovan
Roteiro: Peter Morgan, James Graham, David Hancock
Elenco: Olivia Colman, Helena Bonham Carter, Tobias Menzies, Ben Daniels, Jason Watkins, Marion Bailey, Erin Doherty, Jane Lapotaire, Charles Dance, Josh O'Connor, Greg Wise
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama Histórico
Duração: 50 min.