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Artigo | A Bela e a Fera: Analisando algumas de suas Diferentes Versões

Antes de começar a escrever este texto, me fiz a seguinte pergunta: é possível comparar filmes que, mesmo contando uma história em quase tudo similar, foram produzidos com diferentes propósitos e miravam  distintos resultados? Depois de uma longa reflexão, cheguei a conclusão de que a resposta a essa pergunta é positiva, desde que as particularidades mencionadas acima sejam respeitadas. Sendo assim, nos afastamos saudavelmente de qualquer tipo de injustiça e consideramos os filmes por aquilo que eles desejavam ser e não por um ideal estético de comparação.

Com isso em mente, informo ao leitor que apontarei as diferenças e semelhanças presentes tanto nas tramas quanto nas ambições artísticas das três versões mais conhecidas do conto de fadas escrito pela autora Gabrielle-Suzanne Barbot, o alegórico A Bela E A Fera: a de 1946, dirigida pelo poeta e cineasta Jean Cocteau, a animação da Disney de 1991 e, por fim, o live-action de 2017, também produzido pela Disney.

As diferenças e semelhanças

Embora os três filmes partam da mesma fonte literária (não abordarei a fidelidade de cada um deles ao conto original, pois adaptações são livres para fazerem o que quiserem com o material fundamental), ainda assim eles apresentam entre si distinções que merecem ser destacadas. A primeira delas diz respeito à apresentação ao público da origem da Fera. Enquanto a animação de 1991 e o live-action de 2017 dedicam alguns minutos de sua duração à introdução do personagem do príncipe e à história de como ele se transformou no animal feroz, o filme de 1946 não sente a menor necessidade de oferecer ao espectador algum tipo de esclarecimento sobre o seu passado.

A segunda dessas distinções é relacionada com o seio familiar de Bela. Nas duas produções da Disney, a protagonista é filha única. Já na obra-prima de Cocteau, ela tem duas irmãs e um irmão. Este irmão, inclusive, é o responsável por apresentar Bela ao seu melhor amigo, o imprudente Avenant, que, no filme de 1946, é o equivalente ao personagem de Gaston,  presente nos longas de 1991 e 2017. Também nestes dois últimos, Bela é uma leitora voraz de livros, o que acabou injetando nela o sonho de abandonar a província natal e conhecer o Mundo. No filme de Cocteau, por sua vez, não há nenhuma menção às suas preferências intelectuais.

Ainda no âmbito da família, no filme de 1946, o pai de Bela é somente um sujeito que perdeu muito dinheiro e que, na viagem de volta de uma tentativa fracassada de recuperar parte da fortuna, desvia do trajeto, indo parar no castelo da Fera. Nos filmes de 1991 e 2017, no entanto, ele é um inventor que, a caminho de uma feira de ciências, acaba se perdendo no meio da floresta. Por fim, ao passo que, no live-action e no clássico de 1946, o pai de Bela é penalizado por ter roubado uma rosa do jardim da Fera, na animação isso não acontece. Antes de ir embora, ele já é capturado pela Fera num dos recintos do castelo.

Sei que nos minutos finais do filme de Cocteau há um acontecimento que não se repete nas duas versões subsequentes, mas, para não frustrar a experiência de quem não assistiu à obra, evitarei comentá-la. No restante do tempo, excetuando-se, obviamente, os números musicais característicos dos dois filmes da Disney, o que se tem é a mesma história da garota que, tomando o lugar de seu pai, se transforma na prisioneira de uma Fera cuja aparência monstruosa esconde por detrás um coração terno e uma mente perturbada. Com leves alterações que não chegam a comprometer a integridade do todo, pode-se dizer que o corpo da trama dos três filmes é, em sua essência, igual.

Os propósitos narrativos

No entanto, se na similaridade de alguns elementos os propósitos narrativos são claros (reforçar a alegoria de que as aparências enganam e o fato de que a verdadeira beleza é a interior), não há como afirmar que há uma clareza de intenções nas alterações narrativas propostas pelos três filmes. Aliás, depois de um intenso exercício de interpretação, admito não ter enxergado nenhum importância real nessas alterações. Com a exceção da primeira distinção apontada – a que diz respeito à menção de como a Fera surgiu -, que é um forte indicativo de como os realizadores e produtores de hoje sentem a necessidade de expor em demasia todas as informações de um filme (diferentemente de 1946, uma época em que os espectadores aceitavam as sutilezas mais facilmente), todas as outras sugerem mudanças quase que irrelevantes na trama.

É muito mais fácil achar os propósitos narrativos das três produções na forma geral com que os seus realizadores abordam o texto. Se nos filmes de 1991 e 2017 é facilmente perceptível que a única intenção dos responsáveis é contar uma história de amor atípica, a qual, após idas e vindas, reafirma a mensagem “não nos deixemos levar pelas aparências”, a obra de Cocteau, muito mais adulta, também usa a alegoria da mulher e da besta para tocar na questão da submissão, uma vez que a posição de prisioneira na qual Bela se encontra é atenuada pelo extremo poder que ela exerce sobre a Fera, resultando numa relação amorosa por vezes doentia, na qual o sucesso das interações depende da satisfação mútua tanto daquele que exige quanto daquele que aceita se submeter.

Essas abordagens diferentes são claramente percebíveis ao longo do segundo ato dos três filmes. Como possui  uma aparência similar nas três obras, parte do seu verdadeiro conteúdo pode passar despercebido. Para que isso não aconteça, é importante perceber como algumas das sequências de eventos nas obras de 1991 e 2017  são construídas com o único objetivo de mostrar ao público como os dois personagens principais superam as barreiras naturais e começam a se aproximar amorosamente. Nesse sentido, é possível afirmar que, ao construírem essas cenas, os realizadores tinham somente a preocupação de criar motivações verossímeis para os eventos derradeiros. No entanto, no filme de 1946, em boa parte do tempo, essas cenas têm o intuito de revelar a natureza submissa da relação dos dois personagens (aliás, para reforçar esse ponto, Cocteau não teme a aparente antipatia criada pelas ações de Bela).

Opções estéticas e tipos de público

Nas opções estéticas dos realizadores, essas diferentes intenções ficam ainda mais claras. As duas produções da Disney, além de serem musicais (portanto, mais leves e sentimentais), deixam explícito nos seus respectivos visuais o tipo de público que desejam atingir: enquanto a de 1991 é uma animação feita especialmente para as crianças, o live-action de 2017, através de sua escala de produção e dos seus impressionantes efeitos digitais, deseja dialogar não só com uma geração de jovens formada pelos vídeo games e as grandes produções, como também com os pais que os levam aos cinemas. Assim, tendo em mente os seus objetivos intelectualmente menos ambiciosos, não há como não constatar que as duas produções são bem sucedidas e conversam perfeitamente com o seu público-alvo.

Já o filme de 1946 deve ser analisado numa escala colocada muito mais acima. Fazendo questão de não abordar o espetáculo implícito na situação fantasiosa e mágica (ao contrário dos filmes da Disney, que dão voz e personalidade aos objetos animados do castelo, o filme de 1946 se contenta em exibir somente os rostos e braços dos antigos moradores), Cocteau insere a sua obra dentro do Surrealismo, movimento artístico do qual era um dos maiores expoentes. A névoa que assombra o castelo, a iluminação contrastada e repleta de sombras, a atmosfera onírica que engolfa as paisagens, os já mencionados rostos e braços e a sensação de que, em vez de um conto de fadas, talvez estejamos acompanhando uma história de terror não deixam dúvidas a respeito do tipo de movimento artístico do qual o filme faz parte.

Além disso, apesar de as três obras serem plasticamente belas, a versão de 1946 também se mostra relevante quando levamos em conta tanto os seus aspectos técnicos quanto o impacto que estes tiveram na época em que o filme foi lançado. Se, por um lado, falar da qualidade surpreendente dos efeitos visuais usados nos momentos mais “surreais” é ser, praticamente, redundante, pelo outro, é preciso mencionar como o uso do slow motion (câmera lenta) na maravilhosa cena em que Bela entra no castelo pela primeira vez e a presença de algumas fusões na montagem foram relativamente revolucionários. Dessa maneira, não há como não deixar de enxergar nesse tipo de esmero estético e técnico uma preocupação que Cocteau tinha com a relevância de seu filme dentro dos meios intelectuais europeus.

No fim, é tudo sobre as crianças

No entanto, por mais que essas considerações sobre a obra de 1946 possam ser relevantes e acuradas, o próprio Cocteau faz questão de ressaltar no início do filme a importância do espírito infantil para que nós, adultos, consigamos nos envolver com a história. E, no fim, as três obras acabam se resumindo a isto: a infância. O seu conteúdo pode gerar diferentes tipos de questionamentos e reflexões, a sua alegoria pode ser usada para explicar alguns dos comportamentos tipicamente humanos e a história pode facilmente nos entreter, fazendo com que esqueçamos da vida por uns instantes. Mas, acima de tudo isso, é a capacidade que essa fábula tem de reforçar a infância daqueles que possuem a sorte de vivenciá-la neste exato momento e de transformar adultos novamente em crianças que a faz renascer das cinzas e comover cada uma das gerações que chegam a este Mundo. Seja a versão feita em 1946, sejam as de 1991 e 2017.

Redação Bastidores

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