O atualmente em cartaz Mamonas Assassinas – O Filme não é uma grande obra do ponto de vista cinematográfico. Entretanto, é uma bela lição sobre o papel do mercado na chamada cultura.

Antes, uma pequena explanação. Assistir a um filme, melhor ainda, a qualquer apresentação cultural, é algo muito pessoal. Depende do nosso humor em determinado dia, dos nossos interesses e da qualidade da obra em si. Isto posto, embora o filme apresente uma série de problemas, mesmo assim ele se torna uma das coisas mais interessantes dentre os filmes nacionais recentes. Principalmente porque a história do grupo em questão é deveras interessante.

Para quem é nascido nesse milênio talvez não fique claro o quão meteórico foi o sucesso desses garotos. Suas músicas tocavam em todos os cantos, eles apareciam em todos os canais de TV; qualquer pessoa, gostasse ou não, conhecia suas músicas. Eu nunca me esqueço de um dia estar em um bar, no banheiro, e quando a banda local tocou Robocop Gay os homossexuais do recinto entraram em polvorosa, dançando loucamente. Foi realmente um fenômeno midiático. Este fato por mim presenciado ainda diz muito sobre uma característica que a geração Z desconhece – o humor em retratar tipos, como os gays, como nessa música. Na época do politicamente correto como a atual, soa quase subversivo. Assim como Os Trapalhões, que tiravam sarro de tudo e de todos, cuja história é parcialmente retratada no filme Mussum, o Filmis (Sílvio Guindane, 2023). Humor politicamente correto não existe.

Como o texto está abrindo muitas pontas, é melhor parti-lo para melhor compreensão.

O rock dos anos 80

Os anos 80 foram de profunda crise econômica, e consequentemente perda do poder de compra. No entanto, um certo ar de liberdade pairava com a redemocratização. Nesse contexto surge o chamado rock dos anos 80. Em oposição a uma MPB saturada e envelhecida, incapaz de se renovar, essas bandas tinham um caráter juvenil e mais ingênuo, resvalando em um humor leve do qual a MPB sempre foi incapaz, pois sempre se viu como pretensamente séria. O rock, ao contrário, era leve, e fez um sucesso danado. Os Paralamas do Sucesso, Titãs, Kid Abelha, Blitz faziam músicas com letras bobas, absolutamente despretensiosas, que satisfaziam as necessidades de um mundo adolescente em expansão. Tão ingênuas que costumava se brincar que o Kid Abelha era o QI de Abelha, num belíssimo trocadilho.

Uma banda que se destacou, por seu humor mais ácido e politicamente incorreto, foi o Ultraje a Rigor. Críticas ao próprio universo pop e a geração dos millennials (música Rebelde Sem Causa e Eu me amo), ao comportamento masculino e feminino adolescente (Ciúme), à geração economicamente perdida dos anos 80 (Inútil), chamar veladamente uma mulher de galinha (Marylou), aos farofeiros (Nós Vamos Invadir tua Praia), o Ultraje soltava tapas e humor sem filtros para todos os lados.

Mas ao entrar nos anos 80 o mundo mudou, e as bandas idem.

Conforme algumas bandas começam a entrar nos anos 90, a inocência se esvai. Como em qualquer fenômeno cultural de mercado, seus integrantes passam a achar que o sucesso é fruto de sua genialidade. Como exemplo, podemos citar os Titãs. Em uma de suas primeiras músicas, havia versos como “Não posso mais viver assim ao seu ladinho/ por isso colo o meu ouvido no radinho /… de pilha / pra te sintonizar sozinha, numa ilha”. Rimas pobres, mas de uma ingenuidade cativante. Mas nos anos 80 começam a se considerar intelectuais, e passam a querer fazer versos concretistas. Assim, deixam a inocência dos anos 80 para entrar na verborragia inócua da MPB.

         A menção aos anos 80 não é gratuita. De certa forma, os Mamonas recuperam a inocência e o humor do rock dos anos 80, e o público reage a isso. O humor politicamente incorreto remete ao Ultraje, mas com um acréscimo cênico maior, vide no filme a decisão de usar roupas diferentes a cada música.

O papel do impresario

Os mais incautos vão achar que a grafia está errada, mas não. Impresario eram os produtores italianos de óperas, que fez da ópera italiana a mais relevante no mundo nos séculos XVIII e XIX. Basta lembrar no filme Amadeus (Milos Forman, 1984) quando um membro da corte austríaca se espanta com o fato de Mozart querer fazer uma ópera em alemão, e não em italiano, que era o tradicional. Ao contrário de outros países, a ópera na Itália era predominantemente popular. Assim, sua resiliência era atrelada aos gostos populares e às apresentações. Desse modo, se forma uma rede de produtores que contratavam músicos e cantores e produziam os espetáculos. A concorrência era brutal, os cantores viviam uma espécie de star system, com altos salários, os compositores disputavam com suas obras as preferências dos produtores. No filme Il Boemo (Petr Václav, 2022) se percebe bem esta dinâmica entre o compositor em busca dos produtores das óperas, e também sua relação com as divas e todo o universo musical da época. Não sem razão, isso produziu uma forma de arte popular de primeiro nível, com admiradores como Stendhal, que chegou a escrever uma biografia sobre Rossini tal seu afã pelo compositor (nos livros Cartuxa de Parma e O Vermelho e o Negro há referências sobre o espetáculo operístico).

Stendhal não escolheu Rossini ao acaso. Ele era um paradigma. Garoto pobre, músico talentoso, assim como Mozart uma pessoa com altíssimo talento cênico, compôs uma infinidade de óperas, chegando a compor mais de uma por ano. Se você pegar uma partitura de ópera, vai ficar assustado com o trabalho envolvido. Assim, Rossini trabalhava como um louco. Dizem que tinha uma linha de produção, onde compunha a parte principal e as partes menos significativas, como os recitativos, eram feitas por seus ajudantes. O mesmo que faziam os grandes pintores (é daí que vem a expressão, que se vê nos museus em relação à autoria, “do ateliê do pintor X”) e o mesmo que fazem os músicos de cinema que trabalham muito, como Hans Zimmer. Enfim, muito antes da preconceituosa Escola de Frankfurt tascar a existência de uma indústria cultural, essa prática existia há muito. Muitos trabalham, um assina. E foi esse mercado que permitiu a Rossini se aposentar aos trinta e poucos anos de idade, apenas se dedicando aos prazeres da vida. Virou um bon vivant, a ponto de um filé receber o seu nome em homenagem.

Um dos aspectos interessantes e instrutivos do filme sobre os Mamonas é que fica claro que boa parte do sucesso do grupo foi devido ao Enrico, o impresario do filme, que no mundo real foi Rick Bonadia. É esta personagem que percebe o verdadeiro talento da banda e do seu vocalista – o humor. Originalmente, de acordo com o filme, os membros do Mamonas tinham uma banda chamada Utopia, e seu objetivo era fazer o “verdadeiro” rock, ser uma banda de rock progressivo. É Enrico que percebe que, continuassem nesse caminho, seriam apenas mais uma banda, e se explorassem a irreverência, se fossem mais autênticos, poderiam explodir.

Fica claro assim que a sacada, o golpe de gênio, foi dessa figura. Nisso o filme, que em muitos momentos é ingênuo, acaba por ser justo. Boa parte do sucesso das coisas que conhecemos são realizados por pessoas de fora do palco, por mentes que conseguem perceber o gosto do mercado, que investem e buscam retorno financeiro e satisfação própria. Sem os impresari, não existiriam os Rossinis, Verdi, os Mamonas, boa parte dos filmes clássicos, etc. Muitas vezes, o impresario participa inclusive da formação do conjunto, como o Led Zeppelin (que foi formado pelo músico e empreendedor Jimmy Page) e Os Trapalhões (Dedé agrega Mussum e Zacarias ao grupo), como se nota no filme Mussum – o Filmis.

De forma nenhuma isso desmerece a figura que está no palco. O que queremos dizer é que a equação sucesso só é possível se o talento encontra         alguém capaz de ganhar dinheiro com tal, de viabilizar o empreendimento.

Assim ocorre na música, assim ocorre no cinema. Sem a intermediação do fator mercado, que geralmente é representado pelo produtor, os realizadores acabam por perder o centro racional. Os filmes acabam por ficar por demais erráticos, e os diretores livres demais, sem freios. Alguns fazem disso um trunfo, mas a verdade é que, em geral, as pessoas se perdem dentro das próprias liberdades criativas, cegadas pelo próprio ego exacerbado.

Conclusão

Desse modo, assistir ao filme dos Mamonas se revela quiçá interessante. Há nele uma visão positiva sobre as forças do mercado e do empresariado. Ademais, as músicas do grupo, que obviamente perpassam o filme inteiro, são deliciosas.

Ao contrário da onda recente de filme sobre a MPB, onde se sente o cheiro de mofo, neste percebe-se a irreverência, o lado anárquico e engraçado da banda. E se reavalia o fenômeno que foi a sua curta carreira.

Como sempre ocorre no país, onde se há um desprezo pelos fenômenos de mercado, havia entre a elite intelectual um desprezo pelos Mamonas. E isso é fácil de entender. A intelligentsia brasileira, ladeada pela mídia tradicional, é absolutamente esnobe, e tem uma postura de desprezo pelo lado mais pop. O mais curioso é que o contraponto que oferecem não é a música erudita, que seria o mais racional em termos de qualidade. Não!- é a MPB. O que obviamente é uma coisa absolutamente de filisteu.

Essa elite intelectual, que tem formação e referências falhas, tira da postura apenas o esnobismo, não o conhecimento. A história é longa. Reclamaram quando da introdução da guitarra na música popular; quando Caetano Veloso gravou a música Sonhos, do Peninha, que era considerado por essas pessoas como um cantor brega, houve falsa indignação e por aí vai. Mas essas pessoas são tão pobres culturalmente que, uma vez que o mestre intelectual aceita, elas também o fazem, agindo como cordeiros intelectuais. E aí Peninha virou cult.

E isso parte de uma premissa completamente errônea: a de que existe MPB e pop. Oras, toda música brasileira de consumo é popular. A diferenciação entre MPB e pop é ridícula, esnobe, filisteia. Mas é o jeito do pessoal da universidade ficar achando que tem um gosto mais depurado que a maioria das pessoas. No Twitter, é fácil ver ministro do STF, achando que está fazendo referência intelectual, citar músicas da MPB como se tivessem um grande valor. E o mais curioso é que a chamada MPB, ao menos os que se chamam por isso, é letra morta desde os anos 80. A inovação, o sangue novo, era o rock, os Mamonas, o sertanejo.

Não sou apenas eu quem conclui isso. José Paulo Paes, que era um poeta, crítico, ensaísta e tradutor (porém independente, não ligado ao meio acadêmico) fez o mesmo, escandalizando o repórter. Ele colocou o Mamonas, ao qual admirava, em pé de igualdade a Chico Buarque em uma entrevista. O óbvio ululante.

Portanto, assistir ao filme é uma experiência no mínimo instrutiva.

Adriano Barbuto

Adriano S. Barbuto é diretor de fotografia, professor de cinematografia e gosta de ir ao cinema, ler, ouvir música e assistir óperas. E fazer longas caminhadas.

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