Os apelos dos fãs para que Assassin’s Creed retomasse às origens já acontecem há um bom tempo, mas os pedidos ficaram tão reforçados após o lançamento de Valhalla em 2020 que a Ubisoft não teve muita alternativa além de atender os desejos dos fãs. Assim, uma grande DLC prevista para o jogo traria a história de Basim, o mestre assassino que auxília Eivor durante a imensa aventura.
Porém, em algum ponto do desenvolvimento, a matriz autorizou a Ubisoft Bordeaux a desenvolver um título completo, ainda que em menor escopo, resultando nesse experimento bastante intrigante de Assassin’s Creed Mirage, lançado há poucos dias. Ainda que seja uma aventura muito mais enxuta, beirando somente as 15 horas de duração, Mirage se trata de um retorno muito valioso à fórmula que consagrou a franquia.
A origem de um assassino
Ainda que esteja muito longe de contar a melhor história da saga, Assassin’s Creed Mirage se benefícia de trazer uma narrativa enxuta que não protela seu desenvolvimento. Nela, acompanhamos a história de Basim desde os seus dias como ladrão comum de rua vivendo apenas com sua companheira de golpes Nehal.
Seu maior sonho é ser notado pelos Ocultos, justiceiros sociais que vão dar origem ao Credo dos Assassinos. Em um roubo mal sucedido ao califa de Bagdá, Basim acaba se envolvendo com os Ocultos ao conhecer a mestre assassina Roshan que se torna a sua mentora. Deixando todo o seu passado para trás, Basim inicia uma nova vida na qual terá que seguir dogmas nunca antes explorados que vão de encontro diretamente a cinco figuras ocultas poderosas que controlam a Ordem dos Anciões no território.
Como apontado anterior, Mirage falha em contar uma história substancial para a saga que vem sofrendo tropeços narrativos desde Origins que, particularmente, considero uma das melhores histórias, assim como o carismático protagonista Bayek. Muito provavelmente por limitações de orçamento, o game simplesmente não reserva tempo para explorar mais a figura de Basim, principalmente no desenvolvimento do personagem.
Ele é assombrado por um Djinn, conferindo algo místico à narrativa, além de ter certa resistência em seguir os dogmas perpetrados por Roshan que tenta o manipular o tempo todo. Apresentando essas boas ideias, porém, o roteiro falha em desenvolver os conceitos e tornar Basim um pouco mais interessante – o personagem é carismático, mas é bastante esquecível por raramente possuir vontades próprias sendo um protagonista passivo na maioria da história.
Somente no final do jogo que há algumas reviravoltas intensas que, pela velocidade abrupta, atropela bastante o entendimento do jogador, principalmente em relação a Nehal e a hierarquia que Roshan também tem que seguir. Aliás, toda a relação entre mestra e aprendiz é muito superficial, nunca rendendo um momento genuíno de afeto entre os personagens. De longe, o rol de personagens de Mirage é um dos mais fracos, possuindo muitos elementos desinteressantes.
O jogo não segue uma narrativa linear, apostando no formato de Valhalla em conferir liberdade para os jogadores explorarem capítulos livremente – todos representados por cada chefe Ancião até liberar o grande líder no quinto capítulo. Logo, fica mais difícil tornar a experiência coesa, já que os coadjuvantes somem e nunca mais reaparecem em outros arcos.
Enfim, se for pela narrativa, Mirage não vai valer muito a pena, mas felizmente a fraca história é compensada em diversos outros pontos positivos.
Jogos de assassinos
Demorou e demorou muito, mas finalmente Assassin’s Creed voltou a ser Assassin’s Creed. Por mais que Origins seja um excelente jogo que agregou muito bem o formato de RPG à saga, ele foi a origem para a Ubisoft se desviar muito da receita que tornava a franquia tão única e distinta das outras.
Então ao ver Mirage enfim cumprindo as longas promessas do estúdio em se ater ao formato clássico ao mesmo tempo que conferia uma repaginada nas mecânicas, admito que foi um alívio. Aqui, o jogador após terminar a introdução, tem a total liberdade de escolher determinados alvos para iniciar um arco. Em cada um deles, Basim precisa investigar pistas que vão revelar a identidade do alvo mascarado.
O design das missões funciona com uma cadência saudável. Como o jogo é curto, repetir algumas tarefas não chega a exaurir o jogador como acontecia com Valhalla e suas 50 ou mais horas para encerrar a narrativa. Fora isso, os desenvolvedores exploram boas homenagens com algumas missões para seguir alvos – que eram muito irritantes em outros jogos, mas com todas bem curtas e com trajetos inspirados.
A desenvolvedora também procura pegar inspiração em Hitman e também de Unity ao usar diferentes abordagens para completar missões, mas com uma maior ênfase no uso de disfarces para infiltrar áreas restritas. O jogo foi inteiramente pensado para ser experimentado com a abordagem stealth para se infiltrar em bases e acampamentos e chegar próximo ao alvo e concluir o assassinato.
Caso o jogador decida partir para o confronto direto, é bem provável que seja morto rapidamente, já que Basim não é um lutador exemplar – ainda que a mecânica de parry seja boa para se livrar de diversos guardinhas – uma pena que a variedade de inimigos seja uma das menores de toda a saga.
Para aprimorar a experiência e garantir a diversão do jogador, contamos com uma árvore de habilidades que trazem aprimoramentos que mudam a dinâmica do jogo e facilitam a vida de assassinato, além de contarmos com cinco ferramentas bastante úteis como as facas de arremesso, bombas, distrações de barulho, bomba de fumaça (sempre poderosa e útil) e uma zarabatana.
Ou seja, a variedade de abordagens é mais que suficiente e satisfatória. Mirage sabe bem equilibrar a dose para nunca esgotar a diversão do jogo. O mesmo acontece com as torres de sincronização e com o retorno de lojas para aplicar melhorias em armas e transmogrifação em roupas. O jogo também resgata o nível de notoriedade que era presente na trilogia de Ezio Auditore. Toda a cidade de Bagdá é reativa às ações do jogador então é preciso tomar cuidado ao matar alguns inimigos e se certificar de não ser notado.
Para diminuir a notoriedade mais rapidamente, podemos rasgar pôsteres de procurado e também pagar um poeta para limpar a sua imagem diante o público. Aliás, com eles e outras facções como mercenários, são pagos com tokens de favores que o jogador recebe em algumas missões e também ao furtar transeuntes – por sinal, a mecânica de furtos é bem divertida o que ajuda bastante ao progredir no jogo com esses furtos sorrateiros.
A cidade redonda
Mantendo o alto padrão artístico e design visual da saga, Mirage cumpre muito bem no quesito visual. A cidade redonda de Bagdá e seus arredores são fascinantes, apesar do restante do mundo aberto ser bastante vazio trazendo apenas um deserto menos interativo que o de Origins – pelo menos dá para explorar montado em camelos o que nunca deixa de ser divertido.
Dito que a cidade teria o mesmo tamanho de Paris, posso afirmar categoricamente que não é verdade. Bagdá é menor, mas possui uma densidade significativa de prédios e construções, a tornando muito divertida para realizar as manobras de parkour e ficar distante do solo o maior tempo possível.
Aliás, desde Unity que não tínhamos uma ênfase tão intensa em parkour como acontece aqui. Ainda assim, Unity segue o líder como melhor experiência nesse quesito, já que as animações de Mirage ainda são recicladas de Origins que não foram pensadas para essa exploração.
Ainda que seja visualmente bonito e ter uma distinção clara entre a Cidade Redonda e os demais distritos de Bagdá (esses menos diferenciados entre si), Mirage já demonstra a idade da Anvil com NPCs que seguem limitados, pop-ins muito expressivos e também demora no carregamento de algumas texturas.
Fora isso, por padrão, o jogo aplica o insuportável filtro visual de aberração cromática que deixa o visual bastante borrado, enfeiando o jogo. Até agora, não é possível desativar o filtro, mas é possível que isso seja corrigido em patch. No PC, há um problema bastante grave que não foi resolvido com o patch do Dia 1. Mesmo com um i5 12600K e uma RTX 4090, o jogo sofre com travamentos visuais frequentes nos quais os FPS vão a 0 e então voltam a ser renderizados.
Trata-se de uma falha técnica muito irritante mesmo e que precisa ser resolvida o mais rápido possível. Nas outras plataformas, não vi relatos apontando o mesmo problema. Mesmo diante desse problema grave, o jogo está sim bem otimizado, além de contar com FSR 2, DLSS 2 e o XeSS da Intel aprimorando os FPS de todas as placas de vídeo possíveis.
Outro ponto que merece muito destaque é a trilha musical de Mirage que realmente é ótima trazendo faixas que têm potencial de se tornarem icônicas em toda a saga. O tema principal e o da tela de pausa, em particular, são meus favoritos. O departamento de dublagem – digo da original em inglês, também mantém o bom trabalho de sotaques trazendo entonações árabes bem pontudas, além de expressões características do Iraque.
Nem tudo é Miragem
É satisfatório ver que a Ubisoft enfim atendeu os apelos dos fãs com Assassin’s Creed Mirage. Uma pena, porém, que por ser relegado a um jogo AA de alto nível, nitidamente há falta de orçamento para trazer mais atividades e locais para o jogador explorar. Então eu apenas torço para que Red, o próximo título AAA da franquia, não jogue fora o experimento tão válido que foi feito em Mirage.
A Ubisoft Bordeaux conseguiu fazer um ótimo trabalho que provou mais uma vez que a fórmula da saga era mesmo visionária e que mesmo após 15 anos de existência, continua divertindo, desde que seja bem dosada. Que enfim o estúdio entenda de uma vez por todas que menos é mais. Para quem embarcou na franquia a partir de Origins e tem preguiça de testar os outros títulos por serem “datados”,
Mirage é o ponto perfeito para entender porque tantos jogadores afirmam que “Assassin’s Creed morreu no Black Flag” – o que, obviamente, é um baita exagero.
Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema. Jornalista, assessor de imprensa.
Apaixonado por histórias que transformam. Todo mundo tem a sua própria história e acredito que todas valem a pena conhecer.
Contato: matheus@nosbastidores.com.br