Momento do Contato: filme sobre caso famoso falha como documentário mas reforça lenda urbana
Com o passar do tempo, o episódio do “ET de Varginha” vai deixando de lado sua dimensão histórica e adquirindo típicas características de uma lenda urbana
Fora das principais plataformas de streaming no Brasil, o documentário “Momento do Contato – O Caso Varginha” (2022), dirigido por James Fox, encontrou grande divulgação no meio ufológico nacional desde que foi divulgado pela primeira vez, e hoje pode ser assistido gratuitamente no Youtube e em outras fontes alternativas.
O filme explora um subgênero em crescimento há anos (o da especulação conspiratória que mistura eventos históricos com o imaginário da literatura fantástica e ficção científica), o qual parece ter se convertido em fonte de renda relativamente garantida para os produtores por causa da ativa e fiel comunidade ávida por tal tipo de conteúdo (percorrendo temas como “formato da terra”, “governo mundial”, “sociedades secretas”, “chegada do homem à Lua”, entre outros).
Conforme tipicamente ocorre com o formato, o filme lança mão de informações amparadas ou não por fontes verificáveis para construir sua própria “tese” a respeito do que poderia ter acontecido a partir de janeiro de 1996, quando o episódio em Varginha adquiriu repercussão nacional e internacional. O próximo parágrafo resume tais supostos acontecimentos, então ele poderá ser ignorado por todos que estão familiarizados com o caso.
Em 1996, a cidade de Varginha, em Minas Gerais, foi palco de um dos casos ufológicos mais famosos do Brasil, conhecido como o “ET de Varginha”. Três jovens irmãs, Liliane, Valquíria e Kátia, relataram ter visto uma criatura estranha em um terreno baldio, descrita como baixa, marrom, com grandes olhos vermelhos e protuberâncias na cabeça. O avistamento ocorreu no dia 20 de janeiro, gerando uma onda de relatos de outros moradores que afirmaram ter visto fenômenos semelhantes. Alegações de movimentação militar e a captura da criatura pela Escola de Sargentos das Armas (ESA) em Três Corações aumentaram o mistério.
Testemunhas afirmaram que a criatura foi levada a um hospital local e depois transferida para a UNICAMP, em São Paulo. As autoridades brasileiras, incluindo militares e funcionários do hospital, negaram qualquer envolvimento com seres extraterrestres e apresentaram explicações alternativas, como operações militares rotineiras e a possível confusão com um cidadão portador de deficiência.
O caso atraiu a atenção da mídia e de ufólogos internacionais, mas a ausência de evidências físicas concretas, como fotos ou vídeos da criatura ou de algum OVNI, deixou muitas dúvidas. As testemunhas originais, no entanto, mantêm suas histórias, e o “ET de Varginha” permanece um dos maiores mistérios ufológicos do país.
Até hoje, o episódio como um todo (bem como seus quase infindáveis “desdobramentos”, que atravessam meses a partir da data inicial) apoia-se unicamente em testemunhos, sendo que a maioria deles é anônima (e muita vezes, sequer transcrita, sobrevivendo somente de forma oral no relato dos ufólogos, ou seja, “testemunhos de testemunhos”) ou notadamente indireta (alguém repete algo que, na data do testemunho, já era conhecido de forma pública ou por uma “fonte” anterior, de modo que ele pode ser simplesmente uma repetição de algo já divulgado), tornando a verificação de sua veracidade quase impraticável e fazendo com que a maior parte das “pistas” que poderia levar à elucidação do caso desemboque eventualmente num beco sem saída (uma suposta “testemunha” que jamais poderá ser identificada em nome de sua “segurança”, por exemplo, e cujo testemunho por sua vez não encontra respaldo em nenhum outro lugar – seja ele foto, filme, documento, carta, etc.).
Conforme qualquer distraído fã de tramas de investigação sabe, uma “testemunha anônima” (ao melhor estilo “Garganta Profunda”) só tem valor se o que ela alega ou informa leva a alguma informação que possa ser de alguma maneira confirmada – do contrário, tudo que ela diz permanecerá num moto-perpétuo de pura especulação. Mas o que esse “detalhe” poderia atrapalhar a cruzada quase religiosa dos fanáticos pelo caso?
“Momento do Contato – O Caso Varginha”, por sua vez, mirando esse público sedento de confirmação de crenças nas quais ele já acredita de antemão (pouco importando as evidências que se confirmam ou não), não questiona nem leva em conta nada disso, usando o habitual viés de confirmação que predomina na área, de modo que, inadvertidamente, reforça as características de lenda urbana que o caso apresenta desde que se transformou num autêntico fenômeno cultural dentro daquela ativa comunidade ufológica.
Quase 30 anos após os ocorridos, o caso do ET de Varginha revela essa natureza lendária, se observarmos que uma lenda urbana conforme é normalmente entendida apresenta origem incerta (uma boa parte dos testemunhos sobre Varginha é de natureza apócrifa ou vagamente determinada), alguma verossimilhança (muitos de seus relatos são críveis e, de fato, guardam relação com elementos da realidade), capacidade de disseminação (as histórias relacionadas espalham-se muito facilmente dentro da comunidade), temática universal (os relatos suscitam ansiedade, pavor e curiosidade) e uma moralidade presumida (no caso, a necessária desconfiança generalizada em autoridades e versões oficiais apresentadas à opinião pública).
Lamentavelmente, por optar pelo caminho da “lenda”, James Fox perde a oportunidade de confrontar as versões correntes do que, de fato, poderia ter acontecido em Varginha em janeiro de 1996 a partir do relato das três testemunhas iniciais (estas, bem identificadas e que mantêm o mesmo relato desde então), não analisa as inúmeras contradições e lacunas encontradas na sucessão de eventos até hoje e ignora informações cruciais para a compreensão de alguns dos eventos “misteriosos” descritos no documentários (como a provável e bastante realista causa da morte do policial envolvido na “captura” de uma criatura, facilmente encontrada na internet).
Não obstante, Fox incorre em erros de raciocínio também típicos do meio no qual o documentário está inserido: por exemplo, expandindo indefinidamente o horizonte objeto de sua reflexão (listando casos que não guardam qualquer relação com Varginha, por exemplo), confundindo a audiência e fazendo dela cúmplice involuntária da versão relatada (como se questionar objetivamente elementos relacionados ao caso do filme em si invalidasse ao mesmo tempo qualquer outro caso ou acontecimento similar: “Você duvida de Varginha, então acredita que todos que disseram ter visto OVNIs ao longo da história estavam mentindo?”, ou algo do gênero).
Quando o filme abre portas na narrativa, ele rapidamente desiste delas. Um exemplo (e que se refere especificamente a um dos maiores questionamentos que pode ser feito ainda hoje à versão “ufológica” sobre o caso) é a suposta queda de uma nave alienígena antes da primeira aparição das “criaturas”, que teria sido testemunhada por apenas uma pessoa (numa região com movimento e nada inacessível) e que não teria deixado qualquer vestígio material na área (exceto a lembrança do “papel de embrulhar frango” descrito numa passagem do documentário…).
Um outro problema que o filme herda da abordagem “ufológica” diante do caso é utilizar livremente suposições para preencher lacunas na própria pesquisa: quando uma testemunha recusa-se a falar, por exemplo, o realizador logo induz o espectador a tirar daquilo a “inevitável” conclusão de que ela “esconde algo”, eliminando a hipótese (no pior dos casos, igualmente razoável) de que o entrevistado não suporta mais responder as mesmas perguntas ou ser perseguido por desconhecidos por 25 anos, o que não é preciso ser nenhum investigador muito minucioso para imaginar o quão seria inconveniente e prejudicial, especialmente numa comunidade do interior do país e num estrato social visivelmente vulnerável.
Nenhum desses problemas do filme, entretanto, parece se comparar ao ridículo de levar a sério a lenda sobre os “homens de preto”, supostos agentes trabalhando para algum núcleo de poder misterioso e que eventualmente aparecem para testemunhas com o objetivo de intimidá-las (e que, no caso Varginha, teriam dado as caras para quatro testemunhas). No momento em que se afunda na fantasia típica da mitologia Sci-Fi, o documentário coloca em xeque a própria natureza do gênero que se dispõe a praticar e perde prestígio, descendo à especulação infantilizada predominante em “grupos de discussão” que ganham adeptos misturando irresponsavelmente dados da realidade, imaginário criado pela indústria do entretenimento e neuroses arraigadas – e, ato contínuo, contaminando qualquer questionamento dotado de razoabilidade que possa ser feito ao “sistema”, jogando tudo num mesmo saco de paranoia, delírio e mistificação.
Se de fato Fox quisesse cumprir seu papel de “documentarista”, ele poderia questionar, por exemplo: por que diabos “agentes secretos” em “missões ultrassecretas” agiriam como personagens de franquias de Hollywood, vestindo fantasias de Halloween e chamando o máximo possível de atenção para seu trabalho? Embora esta seja uma pergunta aparentemente óbvia, ignorá-la não é privilégio deste filme, sendo um padrão de comportamento observado em toda a comunidade ufológica estabelecida. Fox apenas replica uma “cultura de pensamento” predominante no meio para o qual ele pretende vender seu peixe.
Os questionamentos que “Momento do Contato – O Caso Varginha” demonstra desinteresse em fazer não são evitados por outros pesquisadores e interessados no tema. Um dos principais ufólogos da época dos acontecimentos e morador da própria cidade, Ubirajara Rodrigues escreveu dois livros sobre o assunto e, de 1996 até hoje, reviu boa parte de sua interpretação a respeito do que poderia ter acontecido, reconhecendo até mesmo que sua abordagem à época (tipicamente “ufológica”) não teria sido a mais precisa para muitos dos fatos observados (https://www.youtube.com/live/5jsDXic4DO8?si=Kskrl9Z8wrXbQsnf).
Em 2024, por ter retrocedido em alguns conceitos e feito comentários bastante pertinentes, em retrospectiva, a tudo que foi afirmado anteriormente, Ubirajara já é incluído na paranoia generalizada que cerca o caso, sendo eventualmente acusado de participação em operações de “acobertamento” – palavra esta repetida mecanicamente entre ufólogos sempre que as respostas obtidas não correspondem às expectativas alimentadas.
Embora recorrente no meio, tal paranoia não elimina contradições lógicas nem preenche lacunas essenciais para que a narrativa ufológica a respeito do caso faça sentido. O canal Fábrica de Noobs, por sua vez, apresenta uma bem fundamentada lista de questionamentos e contradições em tal narrativa (https://youtu.be/JHPc9vzE_CI?si=6-PdgNzkIOfiox7u), levantando pontos que seriam imprescindíveis para que a história como é contada hoje (e da qual o documentário acaba sendo mais um dos replicadores) faça sentido.
Um dos elementos que se observa e que James Fox confortavelmente deixa de lado é que, conforme os anos passam, ao mesmo tempo em que um maior número de “testemunhas” se apresenta para supostamente corroborar a versão aceita dentro do meio ufológico, mais testemunhos contradizem-se entre si (em termos de datas, horários, localidades ou cronologia dos eventos de forma geral), de modo que pouco interessa ter “500 testemunhos” para o mesmo caso se uns anulam ou colocam em dúvida os outros – e apontar tal falha de raciocínio é talvez o maior mérito da pesquisa desenvolvida pelo canal Fábrica de Noobs a respeito do caso.
O diretor do documentário prefere, por outro lado, gastar seu tempo e o do espectador com passagens que nada contribuem para uma melhor compreensão dos fatos que ele pretende descortinar, por exemplo na dispensável entrevista com um político ou na passagem do “povo-fala”, na rua, que por si só tem baixa importância, bastando se questionar: ao ser indagadas por um estrangeiro com uma câmera sobre um assunto que tornou a cidade onde moram conhecida internacionalmente, quantas pessoas responderiam que “nada sabem” sobre o ocorrido, ou mesmo que acham ser aquilo uma bobagem inqualificável?
O documentarista honesto sabe que é muito mais fácil arrancar de um entrevistado desatento algo como um “Sim”, “Concordo”, “Foi isso mesmo”, do que um “Não”, “Discordo” ou “Não foi nada disso que aconteceu”, e essa percepção é crucial na condução de depoimentos.
As entrevistas definitivamente não são o ponto alto do filme, mas ao mesmo tempo expressam uma abordagem que também é tipicamente “ufológica”. Quando se encontra com um ex-controlador de voo que teria presenciado alguns dos eventos incluídos na narrativa do documentário (e que afortunadamente está disposto a mostrar o rosto), Fox não esmiúça qualquer das alegações do entrevistado, que por sua vez dá um depoimento totalmente vago:
O que foi dito pra nós é…silence…total silence – afirma o entrevistado.
Quem disse isso a vocês? – poderia ser a réplica de Fox, mas ele convenientemente não “complica” a entrevista.
Na sequência, o mesmo entrevistado completa:
Eles (os americanos) pousaram sem autorização do governo brasileiro. Era uma missão secreta.
Fox poderia explorar tal alegação, perguntando por exemplo:
Como vocês sabiam que a missão era “secreta” (sendo ela secreta, como sabiam ser aquilo uma “missão”)?
Se não havia autorização do governo para o pouso, como o avião não foi abatido no ar?
Qual foi o procedimento dos controladores de voo durante a aproximação?
Em solo, quem deu autorização para que o avião (que supostamente teria pousado sem autorização) reabastecesse?
Mais uma vez, como não está concentrado em chegar a alguma verdade objetiva sobre o que realmente se passou, mas apenas em fazer crescer o bolo da mistificação em torno da lenda, Fox deixa tudo em suspenso, limitando-se a encenar uma repetitiva fisionomia de espanto.
Se para um espectador experimentado de documentários, tais lacunas enfraquecem o todo, para um aficionado do tema servem como elemento de “mistério” que “corrobora” a trama. No documentário ufológico, ironicamente, quanto menos se revela, mais se tem certeza.
Ao optar por sustentar ou fortalecer pontos já conhecidos, sem trazer informações novas ou investigar mais profundamente as lacunas e contradições, “Momento do Contato – O Caso Varginha” reforça a natureza do evento como uma lenda urbana, onde cada novo “causo” contado fortalece (sem, contudo, esclarecer coisa alguma) algo no qual vagamente já se acredita por “ouvir dizer”, ou simplesmente pela desconfiança (a qual, convenhamos, é muitas vezes justificada) diante de “autoridades”, “militares” ou “cientistas”.
Na verdade, o papel que James Fox desempenha aqui está longe de ser o do documentarista em sentido estrito, ou seja, do realizador que usa o cinema para criar um recorte onde o que importa é a apreensão da realidade objetiva ou sua impressão pessoal, “autoral”, a respeito dela. Fox assume outra função, hoje muito disseminada em diferentes modalidades ideológicas: a do cineasta de “agenda”, o “animador de torcida”, cujos filmes nada mais são que divulgação quase institucionalizada de universos de interesse e pensamentos, com a finalidade de manter determinada comunidade ativa ou angariar novos adeptos para ela.
Naquele sentido, Fox pode ser eventualmente encontrado na internet oferecendo “um milhão” por um vídeo do suposto “ET de Varginha” (https://youtu.be/r25kd8mdm5c?si=nJeAF1Juq9hBTaKS), vídeo este convertido em autêntico Santo Graal da comunidade ufológica (especialmente brasileira). Assim como as alegações envolvidas no caso como um todo carecem de esclarecimentos, tanto busca quanto proposta pelo “vídeo” deixam dúvidas bastante sensíveis: se tal vídeo aparecesse, como seria possível determinar que ele se referisse ao caso específico de Varginha e à época em ocasião dos fatos?
A criatura provavelmente não usaria um crachá identificando-se como “ET de Varginha”… Como seria possível afirmar com algum grau de confiança que o local de gravação do vídeo corresponderia aos locais constantemente citados pelas testemunhas? Exceto evidentemente se houvesse como identificar as instalações mostradas, comparando imagens reconhecidamente da época com as do vídeo…
Haveria “rostos humanos” visíveis num vídeo dessa natureza, de modo que as identidades ora reveladas pudessem ser checadas com civis ou militares em atividade na época? Tudo isso, evidentemente, sem deixar de lado as quase infinitas possibilidades de manipulação e falseamento que cada vez mais são difundidas e popularizadas no suporte audiovisual, nos fazendo crer que a obtenção desse “tesouro” teria menor relevância do que se imagina.
Apesar de suas falhas de princípio e execução, “Momento do Contato – O Caso Varginha” estimula a inquietude a respeito do que poderia, de fato, não só ter acontecido em Varginha, mas ainda (e aqui, o cinema desempenha papel crucial), o que poderia ser apreendido objetivamente, contado ou mostrado, e que fizesse sentido além da mera crença especulativa e paranoica que predomina na comunidade ufológica.
O que as três garotas realmente viram, por não mais de 10 segundos (pois teria sido este o tempo durante o qual elas avistaram a suposta criatura e tiraram todas as suas conclusões que sustentariam por décadas desde então), naquele dia em seu bairro?
Qual o real motivo para a movimentação de militares na região nos dias que se sucederam a este fato?
Qual a motivação de testemunhas para expor relatos que muitas vezes anulam uns aos outros?
E, finalmente, por que após quase três décadas não existe nenhuma imagem ou documento vazado, seja ele de que natureza for, para simplesmente nenhum dos supostos fatos entendidos como verdadeiros dentro da narrativa ufológica para o caso (convenhamos, a História mostra inúmeros “vazamentos” em episódios de importância igual ou maior que o de Varginha)?
São perguntas que permanecem e que ficarão penduradas até que, eventualmente, outro documentarista faça o trabalho que preguiçosamente James Fox deixou para trás.
Momento do Contato – O Caso Varginha (Moment of Contact, EUA/Brasil – 2022)
Direção: James Fox
Gênero: Documentário, Histórico
Duração: 100 min