Há anos que a Bioware está com a água no pescoço. A desenvolvedora, uma das mais influentes da indústria, viu seu prestígio despencar após o lançamento muito complicado de Mass Effect Andromeda em 2017.
Com a reputação abalada, o golpe derradeiro viria dois anos depois, em 2019, com o fracasso colossal de Anthem, primeiro jogo como serviço idealizado pelo estúdio. No silêncio do hiato sem grandes lançamentos desde então, a expectativa do estúdio é alta para o aguardado lançamento de Dragon Age: The Veilguard, que continua a história do excelente Inquisition, lançado há uma década.
Felizmente, em muitos níveis, o novo Dragon Age comprova que a Bioware conseguiu retomar o prumo e entregar um produto da qualidade superior ao que seus fãs estavam acostumados. Porém, diante de polêmicas envolvendo o design artístico do novo capítulo, além do óbvio abraço aos valores DEI que assolam a indústria, eu temo pelo futuro do estúdio, já que os fãs não parecem empolgados com o novo jogo. O que, já adianto, é uma verdadeira pena, pois se trata de um produto de excelente qualidade técnica, visual e sonora.
Jogado ao Véu
Quando o novo capítulo da sua franquia de história linear demora uma década para ser lançado, não resta muita opção além de abordar a história de um novo ângulo, que seja amigável para novos jogadores que nunca conheceram Thedas antes.
Acontecendo anos depois dos eventos derradeiros da DLC de Inquisition, o jogador é lançado diretamente na ação em um prólogo explosivo. Sem cerimônia, somos apresentados ao novo protagonista, Rook (ou “novato”). Em parceria com Varric e Harding, membros da Inquisição do último jogo, o personagem, que pode ser de seis diferentes facções, compartilha do mesmo objetivo: impedir que Solas, o Dreadwolf, destrua o Véu que separa as realidades, permitindo a invasão de uma legião de demônios no mundo.
Indo de encontro a Solas, Rook e seus parceiros conseguem impedir a conclusão do ritual, mas as coisas não saem do modo perfeito que todos imaginavam. Na confusão mágica, duas grandes divindades malignas élficas escaparam de suas prisões no Véu. Trazendo corrupção e pragas a Thedas, o protagonista e seus amigos terão que lidar com a nova ameaça.
Assim como Inquisition, a estrutura narrativa de Veilguard é similar. Novamente há uma grande ameaça que somente o protagonista poderá lidar, mas para isso, terá que recrutar uma equipe de grandes especialistas para conseguir enfrentar o mal com poder de fogo o suficiente. O formato narrativo que é visto desde Mass Effect 2 nas mãos do estúdio é bastante eficaz e como os riscos são altos, creio que foi uma escolha bastante prudente em apostar no seguro.
Ao todo, Rook vai encontrar sete parceiros, sendo que Harding e a maga Neve já se tornam companheiras logo no começo do jogo. Se tratando de um título muito mais linear que Inquisition, não há riscos de perder a oportunidade de recrutar um parceiro no meio do caminho (o que é ótimo já que as histórias individuais de cada um deles costumam ser mais interessantes que a principal).
O que acontece de novo, como de costume já franquia com exceção de Dragon Age 2, o protagonista sofre com o próprio estabelecimento de sua própria história. Há até uma tentativa em uma cena na qual ele interage com objetos importantes refletindo sobre algumas passagens, mas é tudo muito raso.
Apenas sabemos que se trata de um personagem bem intencionado e só. Sendo um RPG da Bioware, quem dita a história é o jogador nas opções clássicas de bom moço, neutro ou agressivo – importante mencionar que o jogo dita o rumo “agressivo” como mais direto ao ponto. É praticamente impossível ser um anti-heroi em Veilguard. Aqui, há também muita opção em seguir o caminho “engraçadinho” com Rook fazendo piadinhas a la MCU, de um humor light e sem riscos, em muitas oportunidades de diálogo.
Mesmo que se trate de uma história de fantasia em um cenário “medieval”, não espere que os diálogos sejam muito rebuscados. Há sim alguns personagens mais arcaicos no modo de se comunicar, mas a maioria conversa de modo normal chegando até mesmo a solicitar tratamento correto de pronomes não binários em certos momentos.
Aliás, Thedas nunca foi tão diversa como aqui. São inúmeros personagens que variam de idade, gênero, orientação sexual, cor, raça, entre outros. Há uma prevalência de parceiros efeminados no time de personagens principais, enquanto as mulheres são representadas de modo mais único. Há também uma parcela significativa de conteúdo secundário, focada em identidade de gênero e linguagem neutra.
Embora os arcos progressistas sejam interessantes de acompanhar, as histórias secundárias destoam bastante do resto do tom do jogo ao apresentar questões realistas e contemporâneas enquanto o jogador lida com uma antagonista elfa-centopeia, magias, cavaleiros e demônios. Ou seja, há uma confusão de tons aqui. Isso é agravado conforme o jogo avança, já que há uma ênfase MUITO clara que o jogador precisa completar as missões secundárias da equipe antes de progredir – não é obrigatório, mas é incentivado ao máximo.
Como há essa interferência clara dos roteiristas, em enfatizar as secundárias, o ritmo do jogo sofre em sua metade, afinal é bem complicado convencer o jogador que, com o destino de toda Thedas em jogo, a prioridade é definir a resolução de problemas muito menores dos outros parceiros. Se não fosse algo de mão pesada, eu nem mencionaria, mas de fato é e incomoda.
Por conta disso e dos personagens atestarem que é difícil focar na missão enquanto tem seus problemas para resolver, o conteúdo secundário principal é um pouco prejudicado, embora seja um dos mais detalhados e elaborados que a Bioware já concebeu – de fato, está anos-luz de distância do que já vimos em Mass Effect. Ainda assim, recomendo a conclusão dessas histórias.
Embora The Witcher 3 tenha mudado o cenário dos RPGs com as suas quests secundárias de alta qualidade em 2015, Inquisition já trazia também uma parcela significativa de conteúdo opcional interessante. Embora as missões disponíveis nos mapas sejam menos elaboradas, elas são variadas e têm um escopo narrativo intrigante em maioria. A verdade é uma só: caso você consiga se imergir na atmosfera envolvente de Thedas e sua rica mitologia, todo o conteúdo é interessante e divertido que vale o seu tempo.
Eu lamento apenas que, apesar de trazer coisas interessantes, a história não assume muitos riscos, além de sofrer de problemas sérios de clichés mais que batidos e previsibilidade intensa em muitos arcos. Tudo bem que há anos que a franquia não é muito arriscada, mas é uma pena que mais uma vez não há escolhas realmente pesadas e intensas na história – as que existem impactam a narrativa, mas estão longe de ter o peso de outras existentes em outros jogos da Bioware.
Em termos narrativos, se trata de uma boa experiência repleta de problemas de tom em sua atmosfera que mistura humor no meio do desastre e matanças em massa, anacronismos ao abraçar bandeiras progressistas que não encaixam em uma fantasia medieval – isso faria muito mais sentido em Mass Effect do que nessa franquia, entre outros.

Brilhantismo técnico dita novos rumos
A Bioware, apesar do lançamento quebrado de Mass Effect Andromeda, sempre teve um renome de rigor técnico intenso. Felizmente, Dragon Age: The Veilguard resgata esse preciosismo do estúdio com um lançamento praticamente impecável até mesmo no PC.
Misturando o DNA de Inquisition e do segundo jogo da saga, exploramos diversas áreas lineares de bolsões exploráveis em toda a Thedas. As áreas são grandes o suficiente para guardar segredos e desafios divertidos, além de possuírem um design de arte fantástico. É fácil ficar embasbacado pela prisão submersa do Ossuário, assim como a beleza misteriosa e sombria da Necrópole. Há um capricho igual em cenários persistentes como o Farol e a Encruzilhada, hubs de convivência e viagem no mundo que o jogador visita constantemente. Aliás, o detalhe em mudar a organização dos quartos dos parceiros conforme o tempo avança é de muito bom gosto.
Os belos cenários de diferentes arquiteturas ornam muito bem com o estilo artístico mais cartunesco a la Fortnite dos personagens que habitam este mundo. Sobre este ponto, eu nem chego a reclamar, já que é tradição da franquia não manter qualquer coerência estética ao longo dos seus títulos.
Aliás, não apenas o design artístico é bonito, como toda a qualidade gráfica em si. Facilmente se trata do título mais bonito do ano, superando com facilidade jogos como Stellar Blade e Final Fantasy. Não se trata apenas dos belos gráficos e efeitos visuais, mas de como tudo isso orna em tela. Há anos que um jogo não me cativa visualmente como esse daqui.
O brilhantismo também está presente na forma que o jogo é executado, sendo muito bem otimizado, mantendo taxas de quadros constantes graças a pré compilação de sombreadores e auxílio de tecnologias como o DLSS – infelizmente não testei a geração de frames já que o jogo está com um bug que não reconhece a minha 4090 possibilitando o uso da tecnologia. Até mesmo os efeitos em ray tracing não chegam a comprometer muito da saúde de frames do jogo, podendo ser utilizados com ajustes satisfatórios.
Deixando um pouco o visual de lado, o game também possui ótimo desenho sonoro e boas atuações por todos os lados, tornando boa parte dos personagens bem carismáticos e interessantes de acompanhar. Isso se reflete também no protagonista que é um dos menos robóticos já apresentados, atingindo um nível satisfatório de animações faciais mesmo com tantas alterações em design do bom criador de personagens do jogo – deve ser o segundo melhor da indústria, ficando atrás apenas de Baldur’s Gate 3. A trilha musical também tem seus momentos, embora seja prejudicada por diversos temas anacrônicos que investem em sintetizadores e batidas futuristas em um jogo de fantasia medieval.
Em termos de jogabilidade, esta talvez seja a iteração mais simples da franquia. A cada jogo, a Bioware se aproximava cada vez mais de uma abordagem em favor da ação do que a estratégia pura e simples que marcava o primeiro título. Aqui é a culminação completa disso, permitindo que o personagem execute golpes como em títulos Final Fantasy 7 e God of War.
É possível encadear ótimos combos variando entre golpes de dano normal, centrados em destruir armadura ou outro feito para quebrar barreiras de magia. Apesar de não ser difícil, o jogo traz bons desafios ao jogar diversos inimigos variados em tela com táticas diferentes de combate, encorajando bastante mobilidade nos conflitos sempre divertidos.
Nisso, o jogador ainda consegue selecionar três magias e golpes especiais, além de um golpe de fúria que é carregado com o tempo, aplicando muito dano. Os combos também estão presentes podendo escolher aplicar duas magias que trabalham em sinergia dos parceiros para detonar inimigos individuais ou em área.
É simples, funcional e muito divertido. Praticamente ideal para um RPG de ação como esse daqui, além de ser muito interessante de dominar. Em geral, os parceiros que acompanham Rook possuem quatro magias principais, uma complementar e outra que é liberada após o término de sua linha narrativa paralela.
Já Rook possui uma árvore de habilidades imensa aplicando melhorias passivas em inúmeros efeitos e outras magias que podem ser trocadas no menu do personagem. O jogo encoraja a construção de diferentes builds de personagem sem penalidades para restituir pontos de habilidade. O que é ótimo já que há três especializações distintas que reservam as habilidades mais poderosas do jogo para os trechos finais do game.
Como era de se esperar, o jogo também traz muitos itens para loot, aprimorando armas e armaduras também para os parceiros. Entretanto, a cadência do loot é bem irregular com muitas recompensas sendo inferiores ao conjunto atual do jogador ou com status menos interessantes. Há diversos modificadores também. Fora isso, o game sofre com o design de muitos dos equipamentos que simplesmente não são atraentes de se usar (ainda bem que há a transmogrifação). Boa parte deles sofre com overdesign, exagerados em detalhes, cores ou tamanho.
Por fim, há um sistema interessante e um tanto único de lojas. Com diversas facções, é possível aprimorar diversas lojas com pontos de lealdade para ter acesso a itens mais seletos. O mesmo acontece com a forja para aprimoramentos ou encantamentos de itens atuais. É um sistema bom e natural que encaixa na progressão do jogo.

A magia persiste em Dragon Age
É com alegria que confirmo que Dragon Age: The Veilguard é um dos melhores jogos do ano com facilidade. Há bons personagens, boa história, excelente produção artística, belos gráficos e jogabilidade muito divertida que não chega perto de enjoar durante a longa duração do jogo. Obviamente tem a minha recomendação.
Porém, é inegável que o game está com uma percepção negativa por abordar com ênfase pautas progressistas que, como atestei no texto, não ornam com o universo do jogo e parecem ter sido forçadas no produto final por algum capricho muito sério no período de produção. Temo que pelas vendas do jogo, a Bioware se encontre em uma situação ainda mais rudimentar na EA para aprovar o orçamento de novos projetos ou até mesmo da produção atual do novo Mass Effect. Torço para que não e que seja um sucesso, mas a possibilidade é real.
No fim, nota-se que o time é extremamente apaixonado pela mitologia e legado de Dragon Age, trazendo mais uma iteração de qualidade que até hoje não viu um jogo ruim. Que o retorno para Thedas não leve mais uma década em uma próxima aventura que já aguardo com ansiedade.
Agradecemos a EA pela cópia gentilmente cedida para a realização desta análise.