Há muito se reclama que a saga Assassin’s Creed sofre, de tempos em tempos, de estagnação criativa. No ciclo anterior, o que era inédito em Origins já havia se desgastado em Valhalla e, mais uma vez, a Ubisoft teve que repensar seus planos para apresentar sua franquia mais popular para a então “nova” geração de consoles.
Além de lidar com as naturais reformas e novas ideias da franquia, a Ubisoft teve que se preparar para atender um dos desejos mais antigos dos fãs da saga: trazer uma boa história situada no Japão Feudal. Anunciado em 2022, sob o codinome Red, Assassin’s Creed Shadows teve uma generosa dose de drama e polêmica antes de seu lançamento oficial programado agora para dia 20 de março.
Mantendo a sua proposta original em retratar o final do período Sengoku com a destituição do senhor de guerra Oda Nobunaga em sua tentativa violenta de unificar todo o Japão sob uma só bandeira. Contando com a figura histórica real de Yasuke, o famoso “samurai negro”, e apresentando Naoe, uma kunoichi original para a narrativa como protagonistas, Shadows certamente é um ótimo jogo, mas que tropeça em suas próprias novidades da reformulação da mecânica.
As sombras da vingança
Assim como acontece com tantas outras histórias da franquia, Shadows traz uma narrativa de vingança com Naoe perseguindo samurais misteriosos que foram responsáveis pelo extermínio da sua província em Iga que culminam em tragédias familiares significativas. Ao mesmo tempo, Yasuke encontra a liberdade ao se tornar um dos ativos mais importantes da guarda de Oda Nobunaga, que segue expandindo sua unificação sob conquistas violentas.
Apesar da história demorar para engrenar, focando muito mais em Naoe no início da aventura – dando a impressão também de haver conteúdo cortado de Yasuke para evitar mais polêmicas no pós-lançamento, é impressionante o modo orgânico que a história é contada, apresentando personagens muito carismáticos como o molequinho Junjiro e tantos outros parceiros que a dupla poderá contar ao longo da história.
Se fosse para comparar, há uma mistura de narrativas com características claras ao cinema de Akira Kurosawa com Os Sete Samurais e Yojimbo com os filmes Kill Bill de Quentin Tarantino, tanto na estética refinada de ambos os autores quanto na estrutura lógica de cada história. Ao longo da jornada, Naoe e Yasuke encontram diversos aliados que podem se unir à Liga que os dois fundam em 1579 enquanto perseguem os muitos alvos da ordem secreta maligna – os Templários dessa história.
As narrativas em geral são boas, mas nada que realmente vá impressionar jogadores calejados. Há um ponto alto específico envolvendo a união de Naoe e Yasuke respingando em outro personagem coadjuvante, em uma cena bastante catártica e dramática que eleva a história. É bastante divertido recrutar os aliados que, após ingressarem na Liga e conviverem juntos no esconderijo, também podem ser ativados para auxiliar o jogador em momentos de combate.
A história também reserva uma boa dose de reviravoltas e evolui propostas distintas para cada protagonista. Enquanto Naoe tem um objetivo muito claro de vingança e justiça, Yasuke apenas sente que deve estar perto dela para descobrir um novo propósito em sua vida. É curioso que o samurai é muito mais carismático que Naoe, fazendo piadas e tendo um diálogo particularmente melhor escrito e engajante ao jogador.
No fim das contas, Yasuke é uma das melhores coisas de Shadows – e isso só evidencia um defeito muito mais significativo do jogo que vou detalhar em breve. A Ubisoft também acerta em direcionar muito do desenvolvimento de Naoe em flashbacks disponíveis em atividades secundárias de meditação que te recompensam com pontos de sabedoria, vitais para desbloquear novas habilidades.
As missões secundárias também são mais inteligentes em explorar mais da cultura, topografia, mitologia e alguns contos japoneses. Engajam e trazem um bom divertimento que, com certeza, está anos luz de distância do marasmo narrativo de Valhalla. Aqui, Shadows é muito melhor
Consertos mais que óbvios que inauguram novos problemas
Uma das maiores reclamações dos fãs e da crítica sobre Valhall era a chatice completa que se tratava da árvore de habilidades imensa e irrelevante que o jogador dispunha para aprimorar Eivor. Sendo esse o principal problema do jogo anterior, é com alegria que digo que a desenvolvedora pensou com muito mais cuidado e carinho nas seis árvores de habilidades disponíveis para cada protagonista.
Com a divisão inaugurada em Shadows, creio que os próximos jogos da saga devem contar com dois personagens jogáveis: um focado em gameplay stealth muito mais aproximada dos jogos originais da saga – aqui, no caso, é Naoe, e outro personagem tanque para combate direto hack n’ slash consagrado na trilogia anterior – no caso, Yasuke.
Qualquer jogador vai compreender rapidamente que as coisas que Naoe pode fazer, Yasuke, muitas vezes não consegue – e vice-versa. Uma das limitações mais frustrantes é não conseguir fazer os pontos de sincronização com Yasuke sendo que diversos deles ficam no topo de pagodes imensos que só são acessíveis através do gancho que a ninja usa para auxiliar na exploração.
Ao mesmo tempo, muitos desses pagodes ficam em castelos repletos de inimigos fortes que são muito mais fáceis de lidar enquanto jogamos com Yasuke. Naoe é frágil e sempre vai preferir uma abordagem indireta, cometendo assassinatos oportunos enquanto se esgueira nos belos cenários detalhados do jogo. Logo, a alternância forçada entre os personagens acaba cansando ao longo do tempo – era simples resolver isso permitindo que Yasuke também fosse capaz de cumprir todos os pontos de sincronização do mapa.
Ele é muito mais lerdo, barulhento e violento que Naoe, tornando a jogatina numa abordagem stealth com o personagem bastante inviável. Até aí, tudo bem, pois se trata de uma proposta mecânica do jogo em conseguir atingir as duas audiências da franquia – os jogadores das antigas e os que vieram a partir de Origins.
Como o jogo, em estrutura, ainda se trata de um RPG, o sistema de níveis com certeza torna a experiência mais complicada para os jogadores mais apressados em fechar a história, já que é preciso investir bastante experiência nos personagens para conseguirem sobreviver combates contra inimigos com alguns níveis acima – numa diferença muito absurda, até mesmo Yasuke acaba morrendo em um só golpe.
Felizmente, o grinding não está tão irritante quanto antes pela diversidade de missões secundárias e atividades divertidas como pintar a fauna em situações relaxantes ou explorar antigos templos para conquistar pontos de sabedoria – a cada tier de conhecimento, o jogador destrava habilidades novas que fazem sim bastante diferença na gameplay incluindo golpes novos e possibilidade de assassinatos duplos.
O combate também se trata do mais visceral da franquia, também apresentando três variedades de armas para cada personagem, cada uma com habilidades únicas, mesclando com maestria as duas jogatinas de Assassin’s Creed pré e pós Origins. Fico realmente impressionado com isso pelo talento em atender os dois públicos da saga com eficácia.
O mesmo se dá no tamanho do mapa, que é bem mais enxuto que o de Valhalla, se aproximando mais de Origins, com uma cadência muito boa de locais novos para explorar seja Quioto ou Izumi. Cada macrorregião do jogo apresenta uma topografia distinta, fauna e flora, além dos saltos significativos de nível, cadenciando o ritmo do jogo. Felizmente, ele nunca se torna enfadonho mesmo após dez horas de jogatina, trazendo batalhas memoráveis e momentos intensos para o miolo do jogo – algo até então que só lembro de acontecer em Assassin’s Creed 2.
O jogo também apresenta um modo imersivo, configurado por padrão, ocultando os objetivos da missão nos mapas, incentivando o jogador a usar seus shinobis para fazer reconhecimento de campo e explorar mais o mapa. Particularmente, nunca tive problema com as orientações claras de objetivos que os jogos contam, então pode ser que muita gente ache interessante – eu achei a possibilidade bem-vinda, mas muito frustrante pela dificuldade de encontrar o objetivo no meio dos densos vilarejos.
Como a região japonesa é tradicionalmente montanhosa, é uma boa ideia também se manter nas estradas já que as florestas densas podem causar uma poluição visual ao se adentrar nelas para encontrar atalhos. É bom pelo uso do cavalo, que apesar dos controles seguirem horrorosos, te levam mais rápido para o destino. O jogo também apresenta a mesma mecânica de aprimoramento do esconderijo, com mais foco em decoração. É funcional e divertido, jogadores que amam essas customizações serão bem recompensados.
Na exploração, em termos envolvendo a nova mecânica da troca de estações, somente no Inverno que temos uma diferença grande na mobilidade, dificultando a travessia do mapa. De resto, é mesmo uma questão estética, variando mais o clima e coloração da direção de arte com a flora reagindo adequadamente a cada clima. É bem bonito, aliás, o jogo em si é belo como um todo.
Dessa vez a Ubisoft caprichou bastante nas animações faciais entregando mais intensidade nas cenas e nos diálogos. Claro, ainda existem NPCs com “cara cansada”, mas é em uma quantidade muito menor e os protagonistas são mesmo muito mais expressivos que Eivor ou Alexis, por exemplo.
A dor do refinamento
Anteriormente, Shadows teria sido lançado na janela tradicional de novembro para os grandes jogos da franquia, mas foi adiado por motivos de marketing e técnicos. Por mais dolorosa que pode ter sido a espera para alguns fãs, digo com tranquilidade que o tempo a mais no “forno” fez muito bem ao jogo em seu estado técnico.
Apelidada carinhosamente de Bugsoft, a Ubi conseguiu entregar um dos projetos mais polidos até então. Jogando no PC, afirmo com tranquilidade que o jogo está funcional e otimizado na medida do possível mantendo 100 fps em 4K com DLSS e frame gen com RT ativado. Claro, não está tudo no máximo, mas tentei encontrar uma configuração ideal para ter performance e qualidade visual.
Presenciei raros bugs visuais, nenhum problema na progressão e apenas um crash durante minha experiência com o jogo. A única coisa que segue problemática é a inteligência artificial dos inimigos que varia entre muito inteligentes até mesmo te notando no topo de edificações até muito burros correndo histericamente de um lado para o outro se revezando com outros inimigos para te atacar. É bem esquisito e cômico demais.
Outra boa característica do adiamento foi refinar outras mecânicas com acessórios bons para aprimorar a jogabilidade de Naoe que conta com shurikens, bombas de fumaça, sinos de distração e kunais para criar boas oportunidades – a iluminação em tempo real também é vital para conseguir se engalfinhar nas sombras, com a ninja destruindo postes e lanternas em diversos momentos – só é meio chato de encontrar os baús certos para reaver insumos de vida e ferramentas (eles não aparecem com frequência no radar ativado ao pressionar L2).
Em termos de RPG, temos diversos equipamentos novos para aprimorar os personagens e atributos, além de modificadores de dano ou de vida. É um trabalho bem-feito como já tinha sido apresentado anteriormente. Também há comerciantes para encontrar novos equipamentos com regularidade.
Outro ponto que merece muito destaque é a trilha musical que entrega diversos temas muito bem produzidos, sendo o principal conectado intrinsecamente à narrativa de Naoe. Em momentos-chave, há canções excelentes que conferem um certo anacronismo, mas que elevam o estilo da ação para um fator mais “tarantinesco” como tinha dito anteriormente.
O mesmo se dá para a dublagem original que usa talentos japoneses e portugueses para garantir maior imersão ao jogador. Os atores estão ótimos, entregando performances dignas de grandes produções japonesas, conferindo identidade para cada personagem que, apesar de não se distinguirem tanto no visual, possuem um excelente trabalho nesse sentido.
Inaugurando uma nova era
Assassin’s Creed Shadows é um ótimo jogo. Para a saga, o melhor já entregue em anos para um título principal – nunca fui fã de Valhalla e de Odyssey pela repetitividade, admito. Aqui, a história flui melhor, o ritmo do jogo é bom, apresenta um desafio justo, além de trazer atividades secundárias mais interessantes de realizar para se adentrar em uma cultura tão rica e bonita como a japonesa.
A história de Naoe e de Yasuke nunca foi para ser fiel à história do que aconteceu de fato ao período Sengoku, afinal, essa nunca foi a proposta da franquia – a fidelidade histórica, afinal, pelo amor de Deus, tem um jogo inteiro centrado em assassinar a família Borgia – por mais que alguns tenham sido, de fato, assassinados. O ponto é que fidelidade histórica nunca foi a força motriz da saga e não teria razão de ser agora em torno do debate envolvendo Yasuke.
Me diverti bastante jogando Shadows e, admito que fiquei surpreso, pois faz um bom tempo que um jogo da saga não consegue me divertir de verdade. Para mim, isso é o que mais importa ao resenhar um jogo, se ele é divertido ou não. Com tantos games se assemelhando mais a um trabalho do que diversão ao trazer tantas atividades repetitivas, é bom ter um exemplo bem sucedido que consegue dosar bem a progressão e divertimento.
Agradecemos à Ubisoft pela cópia gentilmente cedida para a realização desta análise.
Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema. Jornalista, assessor de imprensa.
Apaixonado por histórias que transformam. Todo mundo tem a sua própria história e acredito que todas valem a pena conhecer.
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