Enzo Staiola, cujo rosto infantil e olhar melancólico se tornaram um dos símbolos mais duradouros do cinema mundial, morreu aos 85 anos. O ator mirim italiano ficou para sempre gravado na história por sua interpretação de Bruno Ricci na obra-prima neorrealista de Vittorio De Sica, “Ladrões de Bicicletas” (1948). A notícia de seu falecimento foi divulgada na quarta-feira pelo jornal italiano La Repubblica, e a causa da morte não foi revelada.
O olhar que definiu o neorrealismo italiano
No auge do neorrealismo italiano – um movimento cinematográfico pós-Segunda Guerra que buscava retratar a realidade da classe trabalhadora com autenticidade, usando locações reais e atores não profissionais –, Enzo Staiola, então com 9 anos, foi escalado para o papel do pequeno Bruno. Ao lado de Lamberto Maggiorani, um operário na vida real que interpretou seu pai, Antonio Ricci, Staiola entregou uma performance comovente. Seus olhos grandes e expressivos capturaram a inocência da infância em contraste com a dura realidade da Roma do pós-guerra, enquanto acompanhava a odisseia frenética e desoladora de seu pai em busca da bicicleta roubada, essencial para o sustento da família.
O filme, vencedor de um Oscar honorário de melhor filme estrangeiro, é universalmente aclamado como um dos maiores da história, e a imagem do pequeno Bruno, testemunhando a humilhação de seu pai, é uma das mais poderosas e inesquecíveis do cinema.
A descoberta por De Sica e uma carreira que poderia ter sido
A forma como Staiola conseguiu o papel parece, em si, uma cena de um filme de De Sica. Em uma entrevista ao La Repubblica em 2023, ele relembrou o encontro fortuito. “Eu estava voltando da escola e, em determinado momento, notei um carro enorme me seguindo a passos largos”, contou. Um “senhor de cabelos grisalhos”, o próprio Vittorio De Sica, saiu do carro e tentou conversar, mas Staiola, orientado pela mãe a não falar com estranhos, permaneceu em silêncio.
O famoso diretor o seguiu até sua casa, onde foi reconhecido por seus pais. “Ele sentou-se à mesa em nossa casa e tentou convencê-los a me deixar atuar em seu novo filme. Mas eles não quiseram”, disse Staiola. Foi somente após a insistência de seu tio, que o levou ao estúdio de De Sica, que Enzo conseguiu o papel, sem sequer precisar de um teste. Curiosamente, apesar do sucesso estrondoso, ele nunca mais trabalhou com o diretor. “De Sica era assim; ele te descobriu e pronto. Talvez se ele tivesse me seguido e me feito outras propostas, eu teria me tornado ator para o resto da vida”, refletiu.
Do estrelato precoce à vida comum como professor de matemática
Após o fenômeno de “Ladrões de Bicicletas”, Staiola teve uma breve carreira no cinema. Atuou em alguns filmes italianos nos anos 1950 e teve uma participação notável no drama hollywoodiano “A Condessa Descalça” (1954), ao lado de gigantes como Humphrey Bogart e Ava Gardner. Seu último crédito foi um pequeno papel em 1977.
Distante dos holofotes, ele construiu uma vida completamente diferente. Retirou-se dos sets de filmagem e se tornou professor de matemática, além de trabalhar por muitos anos como escriturário em um cartório de registro de imóveis em Roma, uma vida anônima que contrastava radicalmente com sua fama infantil.
O fardo da fama: ‘um verdadeiro pé no saco’
Em suas raras entrevistas, Staiola expressava uma visão surpreendentemente amarga sobre sua experiência como astro mirim. “No final, foi um verdadeiro pé no saco”, disse ele de forma contundente ao La Repubblica no ano passado. A fama precoce roubou-lhe a liberdade de uma infância normal. “Quando criança, eu nunca conseguia brincar com meus amigos, porque se eu deixasse uma marca no rosto, não conseguia mais fazer filmes”, lembrou. “Na época, também era um pouco chato, os tempos do cinema são muito longos.”