Enquanto os atores de Hollywood conquistaram proteções contra o uso indiscriminado da inteligência artificial (IA) após as greves históricas de 2023, seus colegas na Índia já sentem na pele os efeitos da tecnologia. Profissionais da indústria de dublagem e locução do país relatam que trabalhos já começaram a desaparecer, substituídos por IA, e agora enfrentam uma nova e assustadora ameaça: a clonagem de suas vozes para uso sem consentimento ou remuneração justa.

A situação acendeu um alerta no setor, que, por ser majoritariamente composto por freelancers, se encontra em uma posição vulnerável. A Associação de Dubladores da Índia (AVA) tem se mobilizado para conscientizar seus cerca de 20.000 membros sobre os riscos e a necessidade de se protegerem.

O avanço silencioso da IA

Atualmente, a IA ainda não consegue replicar perfeitamente a emoção e a nuance de uma dublagem dramática. No entanto, ela já se tornou perfeitamente funcional para trabalhos de narração mais simples, como vídeos corporativos, infomerciais e comerciais de TV — um mercado que servia como importante complemento de renda para muitos profissionais.

“Se antes um dublador fazia de 15 a 20 projetos por mês, agora caiu para talvez seis ou sete”, afirma Amarinder Singh Sodhi, Secretário-Geral da AVA e a voz hindi de personagens como o Gavião Arqueiro. Segundo ele, o impacto é ainda maior para os artistas mais velhos, que não têm como mudar de profissão facilmente.

“Sua voz é sua propriedade intelectual”

Diante do avanço da tecnologia, a AVA iniciou uma campanha de educação. “Nossa regra básica é que, antes mesmo de ir para uma audição, faça perguntas — pergunte para que exatamente você está fazendo essa audição”, diz Sodhi. O objetivo é evitar que os artistas gravem “roteiros aleatórios” que, na verdade, servem apenas para alimentar e treinar modelos de IA com suas vozes.

A dubladora Rakhee Sharma levanta a questão ética. “Amanhã, se alguém me enviar um trecho de um discurso de ódio com a minha voz, ficarei horrorizada, porque não apoio. A voz faz parte da nossa personalidade. É a nossa identidade”, defende.

A clonagem de voz e os dilemas éticos

A tecnologia mais recente e preocupante é a clonagem de voz, uma espécie de “deep fake” de áudio. Ela permite que a “textura” da voz de um grande astro de cinema seja aplicada sobre a “atuação” de um dublador profissional. O resultado é que um ator de Bollywood que fala hindi pode, por exemplo, ter seus filmes lançados em outras línguas indianas com sua própria voz, e não a de um dublador.

Embora a técnica ainda exija a performance de um dublador habilidoso para servir de base, os profissionais temem que isso leve a uma precarização do trabalho, com os estúdios argumentando que devem pagar menos, já que a voz final não será a do dublador.

Diferente dos EUA, onde o sindicato SAG-AFTRA conseguiu acordos que regulam o uso de IA, na Índia ainda não há leis ou intervenção do governo. “Precisamos de algo como [a negociação coletiva do SAG-AFTRA]”, afirma o dublador Ankur Javeri, a voz de Goku em hindi. A batalha dos profissionais de voz da Índia contra a IA está apenas começando, e o resultado definirá o futuro de toda uma indústria.

Mostrar menosContinuar lendo