A odisseia de Hal Barwood: como um roteirista de Hollywood redefiniu os games com Indiana Jones

Hal Barwood transformou o universo de Indiana Jones em game com roteiro cinematográfico, múltiplos caminhos e uma heroína inesquecível.
Troy Baker revela que, originalmente, recusou interpretar Indiana Jones em novo game Troy Baker revela que, originalmente, recusou interpretar Indiana Jones em novo game
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De Spielberg a LucasArts, a mente por trás de “Fate of Atlantis” revela como uniu cinema, mitologia e interatividade em uma obra-prima atemporal

Quando Hal Barwood decidiu atravessar o limite entre o cinema e os videogames, ele não apenas trocou de mídia — redefiniu o potencial narrativo dos games como forma de arte. Com uma bagagem que incluía trabalhos com Steven Spielberg e George Lucas, Barwood aportou na LucasArts com algo raro no início dos anos 90: uma compreensão profunda de como contar histórias com alma, ritmo e estrutura — ainda que agora o protagonista fosse um cursor em forma de mão.

Seu projeto mais emblemático na indústria dos jogos viria a ser Indiana Jones and the Fate of Atlantis, lançado em 1992. Muito mais do que uma adaptação do universo criado por George Lucas, o jogo é uma sequência espiritual — e intelectual — dos filmes. Em vez de simplesmente recriar cenas de ação ou referências óbvias, Barwood e seu parceiro Noah Falstein conceberam uma história original, com personagens marcantes, dilemas morais e uma mitologia complexa, oferecendo ao jogador mais do que entretenimento: uma verdadeira jornada arqueológica.

Da sétima arte ao clique: uma linguagem em reinvenção

Barwood entendia que, para o game funcionar, não bastava parecer com um filme. Era preciso que ele respeitasse o que torna os jogos únicos: a interatividade. “No cinema, você assiste. Nos games, você age”, ele afirmou em entrevista. Essa distinção o guiou na criação de um enredo que se desdobra em decisões, não em sequências fechadas.

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Ao contrário de adaptações que tentam replicar a linguagem do cinema dentro de uma mecânica engessada, Fate of Atlantis adota o ritmo do jogador. A interface SCUMM, marca registrada da LucasArts, se mostrou a ferramenta perfeita para explorar esse potencial: o jogador clicava, combinava itens, conversava com personagens e, sobretudo, construía seu próprio caminho.

Atlântida como metáfora e desafio

A escolha do mito de Atlântida não foi casual. Barwood buscava uma lenda que tivesse profundidade histórica, espaço para especulação e conexão com temas recorrentes da série Indiana Jones: o conflito entre razão e fé, ciência e misticismo, poder e corrupção. Inspirado por textos de Platão e pela popularização da Atlântida em obras do século XX, o roteirista encontrou o cenário ideal para uma trama que navegasse entre arqueologia e ficção científica, passando por nazistas obcecados por armas místicas — uma constante no imaginário da saga.

Atlântida, neste caso, não é apenas um lugar: é um símbolo da soberba humana. A civilização perdida serve como espelho para os erros modernos. “A ideia era mostrar o quanto a busca por poder absoluto pode ser autodestrutiva, assim como foi para os atlantes”, disse Barwood.

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Sophia Hapgood: a heroína à frente do seu tempo

Se Indiana Jones era o ícone da aventura masculina clássica, Sophia Hapgood representava o contraponto contemporâneo e necessário. Ex-colega de Indy e médium autodeclarada, ela não era uma simples coadjuvante ou interesse romântico — mas uma personagem com agência, convicções próprias e um passado tão denso quanto o do protagonista.

A química entre Sophia e Indy, marcada por rivalidade, tensão e respeito, elevou o roteiro do jogo. Ela não só acompanha o herói em parte da jornada, como desafia suas certezas. Ao dar espaço e voz a uma personagem feminina forte, Barwood ajudou a romper estereótipos comuns nos games da época — e antecipou discussões que viriam décadas depois sobre representatividade e protagonismo feminino na indústria.

Três caminhos, três versões da lenda

Um dos aspectos mais revolucionários de Fate of Atlantis está na sua estrutura tripla: o jogador escolhe entre seguir o caminho da Ação, da Equipe ou da Inteligência. Cada rota oferece desafios, diálogos e soluções próprias — criando, na prática, três jogos dentro de um só. Essa inovação aumentou drasticamente a rejogabilidade e, mais importante, respeitou diferentes estilos de jogadores.

Barwood apostou na inteligência do público. Em vez de empurrar uma única narrativa, ele ofereceu opções, consequência e autonomia. Foi uma decisão ousada para a época, em que jogos lineares ainda dominavam o mercado. A abordagem moldou não apenas o design da LucasArts nos anos seguintes, mas inspirou desenvolvedores mundo afora a explorar múltiplos caminhos narrativos.

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Um legado além da nostalgia

Mais de três décadas depois, Indiana Jones and the Fate of Atlantis permanece como referência. Em fóruns, vídeos e artigos, o título continua sendo celebrado não apenas por sua jogabilidade sólida, mas pela qualidade da escrita, dos diálogos e da ambientação. Muitos fãs ainda o consideram superior a alguns dos filmes da franquia — uma prova da força de sua narrativa.

O próprio Barwood seguiria na indústria por mais alguns anos, incluindo o trabalho em Indiana Jones and the Infernal Machine, mas Fate of Atlantis se mantém como sua obra-prima — o ponto de interseção entre duas mídias que raramente dialogavam com tanta harmonia.

A aventura como filosofia

Mais do que um jogo, Fate of Atlantis é uma declaração de princípios. Em um momento em que os games ainda lutavam por respeito artístico, Barwood mostrou que era possível unir diversão e profundidade, ação e reflexão. Ele provou que aventuras gráficas podiam ser tão ricas quanto os melhores roteiros de Hollywood — e que o verdadeiro tesouro, no fim das contas, está na jornada.

Sobre o autor

Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema. Jornalista, assessor de imprensa. Apaixonado por histórias que transformam. Todo mundo tem a sua própria história e acredito que todas valem a pena conhecer. Contato: matheus@nosbastidores.com.br

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