Review | Little Nightmares III estreia trazendo bons pesadelos compartilhados
Little Nightmares é uma das franquias de terror mais criativas e atmosféricas dos últimos anos, conhecida por transformar o medo infantil em experiências sombrias e poeticamente perturbadoras. Após o sucesso dos dois primeiros títulos, que conquistaram jogadores com sua estética única e narrativa silenciosa, a série retorna em 2025 com Little Nightmares III, desenvolvido pela Supermassive Games. Mantendo o espírito inquietante da saga, mas trazendo novidades significativas em jogabilidade e ambientação, o novo capítulo se arrisca a expandir o universo criado pela Tarsier Studios, apostando em uma jornada cooperativa que aprofunda a imersão emocional e visual da série.
Entre sombras e reflexos
Little Nightmares III marca uma evolução decidida na franquia, mantendo muito do que os dois primeiros jogos fizeram bem e imprimindo novidades que alteram de fato o ritmo e o modo de experimentar o terror. Desenvolvido por Supermassive Games (em vez de Tarsier Studios), ele introduz elementos de jogabilidade que respondem a pedidos antigos dos fãs — co-op online, mecanismos de movimentação e submissão ao medo mais flexíveis —, ao mesmo tempo em que preserva a atmosfera sufocante, o sentimento de vulnerabilidade, os puzzles com pouca explicação e monstros grotescos que se movem lentamente pelos cantos.
Para começar, um dos diferenciais mais evidentes de III é que, pela primeira vez na série, o jogo permite jogar em modo cooperativo online. No passado, Little Nightmares e Little Nightmares II tinham também momentos de parceria entre personagens, mas III vai além: Low e Alone, os novos protagonistas, podem ser controlados por dois jogadores simultaneamente. Este não é apenas um "modo extra": ele influencia diretamente no design de puzzles e encontros, que muitas vezes exigem cooperação ou divisão de tarefas entre os dois personagens.
Se você preferir ir sozinho, o segundo personagem será controlado por IA, o que mantém a experiência intacta. Essa novidade altera bastante a experiência seguindo uma tradição de solidão e medo pessoal: agora o terror pode surgir da imprevisibilidade de cooperar, de depender de outro “eu”, de compartilhar a vulnerabilidade.
Low e Alone não são apenas nomes novos; cada um possui uma ferramenta distinta que modula sua interação com o mundo. Low tem um arco, útil para alcançar alvos distantes, acionar mecanismos à distância ou lidar com inimigos em locais inacessíveis, enquanto Alone carrega uma chave inglesa, que serve para abrir portões, esmagar obstáculos ou manipular partes mecânicas dos cenários. Essas diferenças não são cosméticas: elas forçam o jogador, especialmente no coop, a pensar em qual personagem agir primeiro, em quem resolver cada trecho do nível, fomentando sinergia entre habilidades e tornando o design dos puzzles mais complexo do que em iterações passadas da série.
Outra diferença importante está na variedade e na escala dos ambientes. Os jogos anteriores tendiam a se concentrar em áreas domésticas ou industriais, corredores estreitos e espaços que pregam sustos por proximidade e enquadramento. III, por sua vez, expande esse leque para locais mais exóticos e com atmosferas distintas: a Spiral, que inclui a Necropolis, uma “cidade perdida” que parece suspensa no tempo, as ruínas, espaços abertos como feiras decadentes, Carnivale, etc.
Essas áreas maiores permitem exploração mais livre, momentos em que o jogador pode observar o horror à distância antes de se aventurar, ou hesitar na fronteira entre correr ou esconder-se. Esse tipo de expansão do espaço de jogo deixa o terror menos previsível e mais investido em contrastes, com trechos claustrofóbicos alternando com panoramas degradados ou paisagens estreladas obscurecidas por névoa ou areia.
No que diz respeito à movimentação e aos controles, Little Nightmares III parece se apoiar tanto no legado quanto numa leve modernização. O personagem se move com o peso característico da série, não há a impressão de superpoder, nem reflexos instantâneos, mesmo nos momentos de urgência, o que reforça a sensação de fragilidade.
Saltos, plataformas e físicas interativas continuam sendo parte central: existem alguns pulos imprecisos em certos momentos, especialmente aqueles que exigem coordenação ao jogar em coop ou trocar entre personagens. Apesar disso, elas não reduzem o mérito de que a experiência parece mais fluida do que no passado, com ajustes visuais e de checkpoint que atenuam a frustração de retravar grandes seções do nível.
O uso de ferramentas de travessia foi também incrementado. Há objetos de ambiente que permitem interações mais criativas: Low pode usar flechas para cortar cordas, atingir mecanismos distantes, interagir com alavancas à distância; Alone pode deslocar partes do cenário, usar sua chave inglesa para abrir caminhos ou modificar obstáculos.
Essa assimetria abre novas possibilidades de puzzle design, inclusive em níveis que só poderão ser vencidos combinando habilidades, algo presente já em Little Nightmares II, mas levado aqui com maior ambição tanto em escala quanto em diversidade de situações. Além disso, existe o novo objeto guarda-chuva que possibilita deslizes controlados sobre vãos ou brechas, trazendo uma dinâmica de mobilidade ligeiramente diferente (mais aérea) em alguns momentos.
A tensão do jogo assenta não apenas nos monstros ou em momentos de perigo explícito, mas em jogos de luz, sombra, som e silencios. O som ambiente, os passos, o ranger de portas, as respirações dos protagonistas criam uma tensão que é mais eficaz do que sustos baratos. III mantém a tradição da série de contar muito com ambiente como o terceiro personagem: animatrônicos, estátuas deformadas, cadeiras tortas, sombras que se arrastam, iluminação que corta o campo de visão em ângulos estranhos, tudo contribui para gerar desconforto no jogador.
A nova geração de consoles e PC permite gráficos mais detalhados, reflexos, partículas, névoa volumétrica, etc., e isso repercute diretamente na jogabilidade: esconder-se atrás de objetos ou na escuridão, espiar pelos cantos, antecipar perigos visuais — todas essas mecânicas funcionam melhor visualmente, o que amplifica o impacto emocional.
O jogo mantém elementos de sigilo importantes. Em vez de confrontos diretos, muitas vezes a melhor alternativa é evitar o encontro, esperar o monstro passar, seguir silenciosamente, usar o ambiente para distrações. Isso, aliás, é reforçado no co-op: dois jogadores precisam coordenar não só para resolver puzzles, mas também para evitar chamar atenção desnecessária. Em muitas fases, a IA ou o parceiro online pode falhar, e erros de sincronização podem levar a consequências severas (ter de repetir seções, escapar de emboscadas). Ao mesmo tempo, jogar sozinho significa confiar totalmente no comportamento da IA companheira — o que, em alguns momentos, parece funcionar bem, mas outras vezes não substitui a imprevisibilidade humana.
O game também parece mais consciente sobre acessibilidade: há configurações para checkpoints mais frequentes, tutoriais um pouco mais claros que no passado, e opções para quem tiver menos paciência ou quiser um progresso menos brutal. Isso sem que se descaracterize o estilo da franquia; em vez de aliviar o terror, essas ajudas visuais ou de controle tendem a tornar a experiência mais fluida, menos frustrante, especialmente em sessões interruptas de jogo.
Entretanto, nem tudo soa perfeitamente novo ou aperfeiçoado. Embora o modo cooperativo seja uma das maiores novidades, sua implementação às vezes parece redundante: puzzles que só marginalmente mudam quando comparados a modos solo, ou momentos em que a câmera ou controle dos personagens em coop introduzem imprecisões. Saltos, colisões, trajetória de flechas ou física de objetos dizem respeito ao detalhe fino, e algumas dessas partes receberam críticas por não estarem polidas. Além disso, a duração do jogo parece relativamente curta (em torno de cinco horas para a campanha principal), o que é uma mudança de ritmo perceptível para quem esperava algo mais expansivo.
O modo Friend’s Pass é outra adição que muda como a jogabilidade coletiva pode ser aproveitada: permite que um jogador convide outro mesmo que o convidado não tenha o jogo, facilitando bastante o acesso ao cooperativo. Isso reduz uma barreira comum em jogos com coop, tornando mais inclusiva a experiência. Essa mecânica não altera diretamente os puzzles ou os monstros, mas torna possível que jogadores compartilhem o desconforto e a descoberta juntos, o que é, no fim das contas, uma mudança significativa na vivência da série.
Pesadelos Compartilhados
A narrativa acompanha Low e Alone, dois jovens que tentam escapar desse mundo distorcido. Assim como os protagonistas anteriores (Six e Mono), eles não falam; suas emoções são comunicadas por gestos, olhares e hesitação. Essa ausência de voz é, novamente, um recurso narrativo que acentua o sentimento de impotência: os personagens não podem verbalizar o horror, apenas reagir a ele.
Cada um traz consigo uma identidade sutilmente distinta. Low, com seu arco, simboliza o impulso de distância, de cautela, talvez até de negação; Alone, com sua chave inglesa, representa a tentativa de interferir no mundo, de consertar o que está quebrado. São duas formas de lidar com o medo: o afastamento e o enfrentamento. Essa dualidade se torna o motor da narrativa, e o vínculo entre ambos se constrói silenciosamente, numa mistura de confiança e vulnerabilidade.
A estrutura narrativa de Little Nightmares III mantém o estilo característico da série: uma sequência de capítulos ou regiões autônomas, cada uma com seu próprio microcosmo de horror. O enredo não é contado por diálogos ou cutscenes tradicionais, mas pelo design de ambiente.
O jogador descobre a história ao observar: fotografias caídas, objetos quebrados, sons distantes, corpos imóveis. Tudo faz parte da narrativa. A ausência de explicações literais é deliberada — o mundo fala através de ruínas e de repetições. Cada cenário de The Spiral tem sua lógica própria, uma variação sobre o tema central do medo infantil e da desintegração da segurança.
O primeiro grande espaço visitado é Necropolis, uma cidade deserta tomada por estruturas em ruína, onde o tempo parece suspenso. O céu sem cor, os prédios inclinados e os ruídos subterrâneos criam uma sensação de desolação quase arqueológica. Necropolis funciona como o prólogo simbólico do jogo: um lugar onde os vivos parecem sombras e os mortos ainda se movem.
É na Necropolis que Low e Alone se conhecem e percebem que o único modo de sobreviver é seguir juntos. Um acordo que, ironicamente, será também sua condenação. Já nas áreas seguintes, o jogo mergulha em temas mais íntimos, como a manipulação, o abandono e a deformação do corpo e da mente, representados por inimigos que são menos monstros e mais extensões do ambiente.
Entre esses inimigos está o Monster Baby, uma criatura gigantesca de aparência infantil, que simboliza o medo de crescer e a distorção da figura materna. Sua presença ecoa o tipo de terror que a série sempre explorou: O grotesco como metáfora de algo emocionalmente reprimido.
Já os Dwellers, figuras mascaradas e subumanas, habitam os corredores e servem como lembretes daquilo em que as pessoas se tornam quando se adaptam ao medo. Não há vilões no sentido clássico; há apenas vítimas que sucumbiram ao próprio desespero, convertidas em ameaças. Essa ambiguidade moral é uma das marcas da série e, em Little Nightmares III, encontra uma das suas expressões mais sutis: o horror nunca vem de fora, ele é o resultado da tentativa frustrada de se proteger.
À medida que a história avança, Low e Alone vão sendo separados, física e emocionalmente, por obstáculos que parecem responder às suas próprias emoções. Quando o ambiente se torna mais agressivo, a distância entre os dois aumenta; quando há breves momentos de luz, eles se reaproximam. Essa oscilação constante dá ao jogo uma estrutura quase cíclica — reforçando o conceito de “espiral” que nomeia o cenário principal.
O Spiral não é apenas um lugar, mas um estado psicológico de repetição, um purgatório em que as crianças estão presas a memórias que não compreendem. Em certos momentos, o jogo sugere que os protagonistas não estão tentando escapar de um lugar físico, mas de uma culpa coletiva, de um trauma que os une.
Conclusão
Em resumo, Little Nightmares III consegue ser ao mesmo tempo familiar e novo: ele retém boa parte da fórmula já conhecida, que inclui plataformas, puzzles ambientais, monstros bizarros, atmosfera pesada, mas acrescenta camadas de cooperação, estética visual ampliada e ajustes que tornam a experiência menos sacrificada em termos de frustração. Pode não reinventar completamente a roda, mas muda o campo de jogo, oferecendo versões incrementais porém importantes das mecânicas centrais. Para fãs que amam o desconforto, a ambientação sufocante e o terror delicado da série, III entrega quase tudo que se espera e algumas novidades que justificam sua existência, mesmo que aqueles que tinham expectativa por uma inovação mais radical fique parcialmente insatisfeita.
Agradecemos à Bandai Namco pela cópia gentilmente cedida para a realização desta análise.
Review | Silent Hill f traz o encontro entre o belo e o terrível
Silent Hill é uma das franquias de terror mais icônicas dos videogames que infelizmente ficou desaparecida dos consoles por um bom tempo até ser revivida em 2024 com os jogos The Short Message (exclusivo gratuito para PS5) e o remake de Silent Hill 2 desenvolvido pela Bloober, sendo um sucesso retumbante. Recentemente foi lançado mais um jogo na franquia, Silent Hill f, com uma proposta um tanto ousada.
Um Estranho no ninho
Silent Hill é uma franquia que acompanho de perto há muitos anos e sempre tive uma fascinação especial por ela. A considero uma das melhores séries do gênero de terror em qualquer mídia. O que evoca esse sentimento para mim é um conjunto de coisas, a começar pela arte dos jogos, que utilizam de forma muito criativa uma cidade envolta em névoa, inserindo o protagonista ali em posição praticamente isolada.
Geralmente os protagonistas nos jogos da série interagem com alguns poucos personagens, porém na maioria do tempo ele está sozinho e apenas a ideia de se imaginar isolado em um ambiente assim é suficiente para dar calafrios. Acrescente a isso o fato de que essa cidade está infestada de monstros, possui uma seita maligna que quer trazer o demônio e o paraíso (na verdade o inferno) para a cidade e espalhar sua corrupção para outras localidades e ainda o cenário da cidade vive mudando, revelando outro mundo, enferrujado e em ruínas. Tudo que envolve Silent Hill parece ser tirado de um verdadeiro pesadelo bem elaborado.
O sucesso da série se deveu a uma equipe de escritores, artistas e programadores japoneses da Konami bastante criativos que ficaram conhecidos como “Team Silent”, que desenvolveram do Silent Hill 1(1999) ao 4 (2004). A principal fonte de inspiração deles eram filmes e livros americanos. É possível identificar diversas referências a obras do Stephen King e do Dean Koontz e filmes americanos como Hora do Pesadelo, Bebê de Rosemary, Iluminado, entre mutos outros que permeiam o repertório dos criadores. Outra influência importantíssima para a série são também as obras do diretor David Lynch (Twin Peaks, Cidade dos Sonhos).
Apesar da maioria das influências serem de obras ocidentais, especialmente americanas, nâo deixa de se tratar de um grupo de desenvolvedores japoneses. Assim, os jogos tinham um sabor incrementado do horror oriental. Ao contrário do terror tradicional do ocidente que se apoia mais em gore (mostrar vísceras, sangue, mutilações, etc.) e jumpscares (cenas com o intuíto de causar susto), O horror japonês procura criar uma atmosfera que deixe o espectador tenso e até mesmo reflexivo. Como o produtor da série, Motoi Okamoto disse “há uma beleza no horror japonês”. E essa mistura de ocidente/oriente na abordagem do horror era parte essencial da característica única de Silent Hill.
Depois de Silent Hill 4: The Room, a equipe foi desfeita e a série passou pelas mãos de desenvolvedores ocidentais, perdendo cada vez mais essa característica que tanto a marcou. Porém, nesse revival que a Konami está fazendo de Silent Hill, com uma quantidade enorme de jogos sendo anunciados, ela promete também recuperar o que fez a série ser tão amada pelos fãs em seus primórdios enquanto explora novas possibilidades. Silent Hill f é a tentativa mais clara disso.
Eu chamo essa seção do texto de “Estranho no ninho” pois para muitos fãs mais puristas, a ideia desse jogo pode parecer estranha, assim como foi para mim quando ele foi anunciado. Afinal, esse jogo se passa no Japão, quando a cidade de Silent Hill sempre foi situada nos Estados Unidos. Ou seja, o jogo não trata da cidade título e isso pode causar estranheza nesses fãs. Eu vejo esse jogo como um resgate radical da parte que ficou tanto tempo perdida na série, a oriental. Mas considero radical pois o jogo é 100% japonês dessa vez, contendo pouca ou nenhuma (vou deixar no mistério para quem não jogou) referência a contraparte ocidental, a cidade de fato.
Mesmo assim, para tranquilizar esses mesmos fãs e pessoas que podem ter sido atiçadas pelo que disse aqui, o jogo ainda possui características que o encaixam como um “Silent Hill”. Ebisugaoka, a cidade nesse jogo, é enorme e pode ser acessada livremente, há névoa e monstros em todo lugar e há a excelente trilha de Akira Yamaoka (que fez a trilha de todos os jogos, exceto do Downpour) acompanhando a aventura. Além disso, existe a narrativa, que o roteirista Ryukishi07 (Higurashi When They Cry) tentou fazer nos moldes clássicos de Silent Hill (ou pelo menos do que ele acha que é), com uma história nebulosa com uma grande catarse no final envolvendo temas sombrios e psicológicos.
Ficando claro o contraste que noto entre esse e demais jogos na série, estabelecendo o que creio que foi a intenção da Konami e dos desenvolvedores ao fazê-lo, podemos prosseguir para falar de outros aspectos presentes no jogo, a começar pela jogabilidade.
Descendo ao Inferno
Silent Hill f assume a tarefa difícil de renovar uma série tão icônica, equilibrando tradição e mudança, e grande parte desse peso recai sobre sua jogabilidade, que consegue mesclar horror psicológico clássico com elementos mais diretos de ação, sem abandonar a sensação de angústia e isolamento que define Silent Hill. Jogando como Hinako Shimizu, uma estudante de ensino médio em Ebisugaoka nos anos 60, o jogador entra num ambiente inicialmente familiar (névoa, monstros grotescos e quebra-cabeças para resolver) que logo se distorce: sons estranhos, portas rangendo, reflexos que não deviam existir. A neblina não é apenas estética, ela modela os encontros, limita a visibilidade, cria expectativa e medo do invisível. Cada passo pela cidade enevoada exige cautela, pois o ambiente funciona como obstáculo tanto quanto cenário.
O combate em Silent Hill f foi planejado para ser mais presente do que em jogos anteriores mais voltadas ao suspense. Há um enfoque maior em combate corpo a corpo, com armas simples, cano, foice, faca, etc. que se combinam com mecânicas de esquiva e contra-ataque que privilegiam o timing. Não se trata de um soulslike em termos de stamina ou micro-gestão de combate pesado, mas é claro que o jogador não pode simplesmente sair atacando tudo a esmo, pois essa stamina tem que ser gerenciada. Luzes, ruídos próximos, padrões dos inimigos e o risco de exposição moldam cada confronto. Os combates são momentos de picos emocionais, exigindo precisão, paciência e, às vezes, recuo.
Outro componente importante é o gerenciamento de recursos. Desde munição relativamente escassa até itens de cura ou reparo, tudo deve ser usado com ponderação. Em Silent Hill f, os jogadores não têm espaço para desperdiçar, e cada item carregado no inventário representa uma escolha: levar mais munição para potenciais confrontos ou reservar espaço para objetos de exploração e puzzle. Isso cria tensão entre querer avançar e saber quando é mais seguro recuar ou evitar confrontos. As armas também têm durabilidade ou uso limitado em alguns casos, o que adiciona peso ao uso de recursos: uma lâmina enferrujada, uma arma perde eficiência. Não é apenas sobre derrotar monstros, mas também saber quando fazê-lo.
Os puzzles mantêm tradição da série: enigmas ambientais, pistas escondidas em objetos, diários, símbolos criptografados. Em Silent Hill f, os puzzles são enfatizados como parte da narrativa; não são pausas entre o horror, mas sim extensões dele. Há momentos em que resolver um enigma exige observar detalhes do cenário – padrões culturais japoneses como espantalhos, uso de simbologia local – o que reforça a ambientação de Ebisugaoka e mergulha o jogador nas tensões sociais e psicológicas da época. O jogo parece projetado para que a exploração e o medo andem lado a lado: caminhar por corredores escuros, ouvir um som atrás de uma parede, pisar em piso rangente, tudo isso prepara para puzzles que exigem calma mesmo com o coração batendo mais rápido.
Também é notável como o jogo introduz elementos que aumentam a rejogabilidade. Desde o modo New Game+ com rotas alternativas, confrontos de chefes e inimigos variando, até múltiplos desfechos, sendo cinco finais ao todo. Esse design, clássico na série, incentiva que o jogador volte, explore outras escolhas, tente caminhos distintos. Isso afeta não só o combate, mas decisões narrativas e interações menores: pequenas escolhas, aceitar ou recusar ajuda, explorar áreas opcionais ou não. Tudo isso pode influenciar como o terror se apresenta em cada nova jogada.
O ritmo geral da jogabilidade parece calibrado para transitar entre tensão e alívio, mas com uma clara inclinação para manter o jogador desconfortável. Não se trata de ação frenética contínua, mas de instantes de confronto que perfuram momentos de silêncio e exploração. A exploração de Ebisugaoka, por si, já energiza esse ritmo: ruas enevoadas, casas abandonadas e desgastadas pelo tempo, músicas que brotam em momentos inconvenientes, trilha sonora que assombra. Cada combate ou quebra-cabeça parece desenhado para ser um clímax local, antes de retornar ao medo suave, à atmosfera sussurrada.
No que diz respeito à interface e feedback, há indicações de que Silent Hill f vai cuidar bem do jogador sem trivializar os desafios. Mecânicas de esquiva e contra-ataque dependem de sincronização visual/auditiva: sons que alertam, sinais visuais sutis, luz e sombra contrastantes que denunciam perigos. Também há elementos de qualidade gráfica que reforçam a jogabilidade: alta fidelidade visual permite que sombras e brilhos sejam usados estrategicamente pelo jogo para esconder ou revelar; resolução 4K no PS5, por exemplo, aumenta o impacto dessas texturas, do nevoeiro, das criaturas deformadas. Mesmo movimento lento ou pesado (quando intencional) ajuda a intensificar a sensação de vulnerabilidade, fazendo com que cada ataque seja sentido de forma mais concreta.
Porém, há riscos embutidos nessa abordagem. Se os confrontos pesarem demais, ou se houver falta de variedade nos inimigos, pode resultar em combate repetitivo; se os momentos de tensão forem muito espaçados ou os puzzles demasiado intrincados, o ritmo pode se tornar arrastado. Jogadores acostumados à ação direta podem se sentir frustrados com limitação de recursos ou com combates que requerem paciência. Também, apesar do foco na ação-corpo a corpo, a sensação de poder do jogador precisa ser bem balanceada — permitir que Hinako não se torne excessivamente resistente demais para manter a sensação de ameaça.
Em linhas gerais, Silent Hill f entrega uma jogabilidade que parece combinar com sucesso o terror psicológico clássico da franquia com uma ação mais abreviada, uma execução visual sofisticada e uma estrutura de escolhas que recompensam o retorno ao jogo. A sensação é de um jogo que exige não só coragem para enfrentar criaturas grotescas, mas também rapidez mental, reflexão sobre cada movimento, e disposição para mergulhar em um mundo que pune os descuidos.
A busca da Identidade
Ambientado em 1960s no Japão rural, Silent Hill ƒ transporta o terror psicológico para um cenário inesperado, onde a tradição conservadora molda todo o drama. A vila fictícia de Ebisugaoka, inspirada em povoados japoneses da época, parece inicialmente tranquila, mas rapidamente revela pressões sociais sufocantes. Os estresses cotidianos das normas sociais daquela era dão lugar a inquietação psicológica e horror explícito, a beleza da cidade murcha em putrefação e neblina, e o conflito interno se materializa em monstros.
Assim, o jogo usa o contexto histórico como lente temática: as rígidas regras de gênero e a vigilância comunitária dos anos 60 estão presentes em cada detalhe do ambiente (de bonecas tradicionais nas casas a rituais folclóricos). De fato, seus artefatos, incluindo o diário de Hinako, acompanham essa transição; as entradas do diário mudam à medida que ela percebe a podridão por trás da fachada pacata. Em outras palavras, as raízes campestres e as estruturas de madeira típicas do Japão rural passam a servir de palco frágil ao horror, conforme o próprio design do jogo integra altares e orações locais para reforçar o clima opressivo da época.
A protagonista, Hinako Shimizu, é a chave do suspense. Adolescente marcada pelas expectativas familiares, ela se recusa a aceitar o papel restrito que lhe é imposto. Como uma análise observa, “Hinako resiste a esse papel. Ela não quer ser tratada como propriedade… Suas anotações enfatizam a importância de pensar com ‘uma mente calma e um coração claro’, de conhecer a si mesma para poder escolher quem quer ser”. Esse traço foi intencional: o roteirista Ryukishi07 escolheu uma heroína feminina precisamente para dar-lhe agência, evitando que ela fosse apenas levada pela história.
Ao longo da trama, essa luta pela autonomia é dramatizada de forma visceral. A cerimônia de casamento arranjado, símbolo da opressão tradicional, é retratada como um ritual monstruoso: Hinako sofre uma “transformação grotesca em uma noiva monstruosa que consome seus entes queridos (e eventualmente a vila inteira)”, um potente metáfora da auto aniquilação imposta pela sociedade. Esse tema é caro para os japoneses, aparecendo em diversos filmes clássicos de diretores como Yasujiro Ozu, Kenji Mizoguchi e Mikio Naruse. Mas aqui em Silent Hill, além da carga dramática trágica, ganha também uma roupagem sinistra.
Dessa forma, a dissolução do eu fica explícita: o jogo deixa claro que se Hinako se submeter ao destino de “noiva”, ela terá de “cortar laços com todos que conhece, matar velhas versões de si mesma e dissolver-se num papel definido pelos outros”. Sua resistência ao casamento torna-se, assim, uma luta existencial. Ela não busca ser egoísta, mas manter sua individualidade intacta num mundo que quer defini-la apenas como filha, esposa ou “vaso de tradição”.
Um dos elementos mais marcantes do jogo é o horror floral. Flores avermelhadas invadem a visão repetidamente, sobretudo lírios-aranha (higanbana) e cerejeiras (sakura), transformando-se em agentes de terror. No folclore japonês, o lírio-aranha já tem uma história sinistra: tradicionalmente chamado de “flor do cadáver”, simboliza morte e o além. Silent Hill ƒ explora isso de forma perturbadora: ver essas flores tão belas proliferando em ambientes corroídos ou brotando de corpos retorcidos cria um contraste inquietante. Ver algo tão bonito espalhado pelo ambiente ou crescendo em corpos distorcidos é verdadeiramente perturbador.
Assim, o jogo demonstra que a beleza pode rapidamente se transformar em algo horrível, brincando com o conceito eroguro japonês (erótico-grotesco): flores líricas que logo se tornam floresta carnívora. As cerejeiras vermelhas também têm duplo significado cultural: ao mesmo tempo que evocam a primavera e a renovação, representam a caducidade da vida e o renascimento após a morte. Essa dicotomia entre beleza e morte, ciclo natural e corrupção permeia toda a atmosfera do jogo. O horror floral funciona como metáfora do próprio enredo: algo aparentemente puro e delicado (como Hinako ou a tradição) abriga uma essência parasitária, lembrando que até nas pétalas mais brilhantes pode florescer o medo.
No cerne do terror está uma entidade vegetal-parasita que assola a vila. Ela surge como uma flor vermelha gigantesca, de cujos tentáculos em forma de raiz tudo se conecta. Vemos suas raízes, ou corpo, alcançando e conectando tudo como cordas, lembrando até o logo de Silent Hill 2. De fato, moradores e personagens vão sendo invadidos: criaturas híbridas surgem ao redor da flor, e humanos tornam-se hospedeiros transformados. Essa infestação ganha tom simbólico se vista pela tradição da série.
Em Silent Hill, criaturas parasitas sempre significaram controle psicológico, por exemplo, o parasita do primeiro jogo representava o sentimento de ser manipulado por uma força superior e controlando outras pessoas. Analogamente, pode-se interpretar que o fungo de Ebisugaoka materializa o trauma interior de Hinako (ou até a carga histórica da aldeia). Como outros monstros da série, ele traduz medos secretos para o mundo real, fundindo psicologia e metafísica: a “flor” parece drenar a sanidade da vila, tornando tangíveis as ansiedades e culpas que os personagens carregam. Em última análise, ela é menos um inimigo externo e mais uma extensão dos próprios demônios internos, tanto pessoais quanto culturais, que Hinako e seus vizinhos procuram enfrentar.
Outra coisa que Silent Hill f faz é explorar como trauma e isolamento distorcem a realidade dos personagens. Temas como “isolamento, trauma e decadência” são o cerne do jogo, e o próprio vilarejo toma formas fantasmagóricas à medida que Hinako se afasta dos outros. A névoa constante e a pouca comunicação reforçam a sensação de solidão. Sakuko, por exemplo, é uma jovem neurodivergente isolada que vê a “desaparição” de Hinako como traição devido à dor de ser deixada só. Isso espelha a ideia clássica de Silent Hill de que a cidade reflete o conflito interno dos personagens. Isso se encaixa bem no tema geral da série em que a cidade de Silent Hill age como um espelho, refletindo as lutas e medos internos dos personagens.
Aqui não é diferente: os becos tortuosos de Ebisugaoka, as ameaças visuais e sonoras, tudo parece questionar se Hinako está presa num pesadelo ou numa alucinação – as linhas entre real e ilusório são muito tênues. A série sempre aborda essa ambiguidade, fazendo o jogador duvidar de suas próprias percepções. Em Silent Hill f, vemos isso nos finais alternativos: num deles, a protagonista quebra emocionalmente e o vilarejo entra em ruínas (como espelho externo de seu desespero), enquanto num outro ela alcança paz interior e um desfecho sereno.
Essa abertura interpretativa, encorajada até pelos próprios roteiristas, sublinha o quanto o foco é psicológico. O jogador é levado a ponderar se os horrores são literais ou alegóricos, mas, independentemente da resposta, fica claro que o terror em Silent Hill f reside na fragmentação da realidade causada por traumas pessoais e coletivos.
A narrativa de Silent Hill f dialoga diretamente com temas centrais da franquia: culpa, repressão social e busca pela identidade. Por exemplo, o pai de Hinako carrega culpa e vergonha por ter endividado a família para custear um tratamento médico, sentimento que ele tenta mascarar com severidade.
Esse peso de culpa e honra ferida ecoa o eterno tema da série sobre como segredos e remorsos corroem a alma. A repressão aparece na exigência de obedecer tradições e silenciar emoções, mostra-se tanto nos personagens adultos (o silêncio da mãe e a opressão do pai, ambos vítimas das mesmas expectativas) quanto na própria Hinako, forçada a calar seus desejos.
A busca pela identidade ressoa no arco da jovem que, dividida entre duas vidas (casada ou livre), só encontra sentido ao afirmar quem realmente é. Em termos emocionais, o impacto do jogo é profundo: sua atmosfera melancólica e o destino ambíguo de Ebisugaoka arrancam empatia e reflexão. O desfecho aberto, que pode ser encarado como redenção ou tragédia, deixa uma impressão duradoura.
Conclusão
Em conclusão, Silent Hill ƒ confirma que mudança de época e cultura não muda o cerne do terror psicológico, mas pode enriquecer seu simbolismo. A ambientação em um vilarejo japonês dos anos 60 impregna a narrativa de tradições folclóricas (como o culto ao dragão d’água e aos deuses da floresta) enquanto reconta temas familiares de culpa e repressão.
A história pessoal de Hinako, seu confronto com o patriarcado e o casamento arranjado, dá um novo viés à velha máxima da série: nossos maiores demônios pessoais assumem formas reais e aterrorizantes. O horror floral serve de metáfora para o parasitismo das culpas e expectativas alheias, e o isolamento da protagonista intensifica a perda de noção da realidade.
Ao final, Silent Hill ƒ deixa em aberto se a narrativa foi estritamente sobrenatural ou primariamente uma viagem interna, mas de qualquer forma sela um comentário crítico sobre liberdade e identidade. O jogo prova que, mesmo sob um luar japonês, as memórias reprimidas, os pecados do passado e os conflitos internos ainda florescem como o mais intenso dos horrores um terror que ecoa muito além do rolar dos créditos.
Para quem curte jogos de horror profundo, com puzzles, combate que importa e atmosfera sufocante, Silent Hill f parece cumprir e, em muitos aspectos, superar expectativas, sem abrir mão de deixar o jogador inquieto, como um bom jogo dessa franquia deveria ser.
Review | Cronos: The New Dawn traz horror atmosférico para trabalhar trauma
Cronos: The New Dawn é o mais novo jogo da desenvolvedora Bloober Team, famosa por ter feito jogos de terror e sobrevivência como Layers of Fear, The Medium e mais recentemente o aclamado remake de Silent Hill 2. O estúdio traz sua experiência acumulada em títulos de sucesso para colocar em prática o que é sem dúvidas seu projeto original mais ambicioso. Aqui vamos analisar como o jogo se saiu nessa empreitada.
Evolução é morte
Cronos: The New Dawn é um jogo que se apoia em uma ideia central: transformar cada encontro em um evento carregado de tensão, onde a sobrevivência não é garantida e cada decisão do jogador deixa marcas. À primeira vista, ele lembra alguns títulos populares do gênero como Dead Space e Resident Evil, mas é um pouco mais do que isso. O título se distancia da pura experiência narrativa para propor uma jogabilidade que mistura survival horror clássico, mecânicas inovadoras de combate e uma ambientação opressora que influencia diretamente no ritmo do jogo.
Ao jogar, a sensação é de que não se trata apenas de enfrentar monstros ou sobreviver a emboscadas, mas de lidar com um ecossistema de ameaças que reage às escolhas do jogador, punindo descuidos e recompensando atenção. O primeiro elemento que se destaca no gameplay é o combate e a mecânica de fusão dos inimigos.
Diferente de outros jogos em que matar um inimigo encerra imediatamente o perigo, em Cronos a morte de uma criatura pode ser apenas o início de um problema maior. Quando um inimigo cai, se o jogador não tomar a decisão de incinerar o corpo, ele pode ser absorvido por outros monstros, resultando em uma fusão que cria versões mais poderosas, rápidas e resistentes.
Essa mecânica altera por completo a lógica dos encontros, pois a luta não termina no último golpe: é necessário decidir o que fazer com o cadáver e, em muitas situações, essa escolha é tomada sob pressão, com outros inimigos se aproximando ou com recursos já escassos.
Isso gera uma tensão contínua, porque mesmo vitórias parciais podem se transformar em derrotas se o jogador não agir com rapidez e precisão. Assim, ao jogar, temos apenas duas opções: além de incinerar o inimigo, conseguir derrotar as criaturas avançando sem recuar, pois se isso ocorrer, na certa eles se fundirão, gerando uma baita dor de cabeça.
Esse aspecto do gameplay está diretamente ligado ao gerenciamento de recursos, outro pilar essencial da experiência. Em Cronos: The New Dawn, munição, combustível para incineração, suprimentos de cura e até mesmo tempo útil são limitados. Não existe espaço para desperdício. O jogador precisa avaliar constantemente quando gastar munição pesada, quando usar recursos de área e quando economizar para batalhas mais adiante. Essa lógica de escassez não é apenas um detalhe cosmético, mas uma parte integrante da sensação de sobrevivência.
Cada projétil disparado tem um peso, cada corpo não queimado pode se tornar um inimigo muito mais difícil de derrotar mais tarde. Essa economia forçada impõe uma disciplina ao jogador, que deve pensar à frente e administrar sua pequena reserva de recursos como se estivesse em uma guerra de atrito. O ritmo do combate é reforçado pela própria movimentação do protagonista.
Diferente de jogos de ação frenética, em que esquivas rápidas e movimentos acrobáticos permitem escapar de emboscadas, aqui o peso da armadura e do traje utilizado pelo personagem impõe lentidão. Cada passo parece calculado, cada giro da câmera exige atenção, e a ausência de mobilidade exagerada aumenta a vulnerabilidade diante de inimigos mais ágeis. Essa decisão de design aproxima Cronos dos survival horrors mais clássicos, onde o medo não vem apenas da monstruosidade dos inimigos, mas também da percepção de fragilidade do jogador.
A lentidão do movimento nos força a pensar antes de agir, planejar emboscadas, escolher rotas mais seguras e, muitas vezes, fugir em vez de lutar. A tensão nasce justamente da limitação: você não pode fazer tudo, não pode correr sempre e nem pode enfrentar todos os inimigos de frente.
Escuridão, Claustrofobia e Viagem no Tempo
Outro fator que dá peso à jogabilidade é a ambientação, que não serve apenas como cenário, mas como parte integrante do gameplay. Os corredores estreitos, a névoa que limita a visão, os hospitais abandonados, fábricas industriais e ruínas cobertas de escuridão são projetados para dificultar a leitura do espaço e obrigar o jogador a se expor em pontos críticos.
Muitas vezes, para encontrar suprimentos ou abrir uma rota, é preciso explorar áreas onde a visibilidade é quase nula ou onde o design do ambiente força encontros desfavoráveis. Esse tipo de construção dá à exploração um caráter arriscado, no qual cada desvio de rota pode custar caro. Ainda assim, a exploração é essencial, pois muitos recursos só podem ser adquiridos em locais escondidos, exigindo coragem para encarar riscos em troca de possíveis recompensas.
Um elemento particularmente interessante na jogabilidade é o sistema de viagem temporal, que transporta o jogador entre o cenário pós-apocalíptico e um passado situado na Polônia dos anos 80. Essas viagens não funcionam apenas como variação estética, mas interferem diretamente na dinâmica da jogabilidade. No passado, o jogador pode coletar essências de pessoas que morreram no apocalipse, e essas essências podem ser utilizadas para fortalecer o personagem ou obter vantagens específicas.
Porém, essa mecânica vem acompanhada de riscos: carregar muitas essências pode afetar a mente do protagonista, causando distorções visuais, vozes perturbadoras e até dificuldades adicionais no combate. Isso cria um dilema constante: buscar poder adicional em troca de enfrentar consequências psicológicas, ou evitar essas essências e aceitar uma progressão mais lenta e insegura.
O design do gameplay deixa claro que a intenção da Bloober Team é oferecer uma experiência difícil, porém justa. A dificuldade não nasce de inimigos imbatíveis ou de controles mal calibrados, mas da soma de fatores que pressionam o jogador por todos os lados: inimigos que podem evoluir se você não tomar cuidado, recursos escassos que obrigam a tomar decisões difíceis, movimentação limitada que aumenta a tensão de cada confronto, ambientes hostis que dificultam a exploração e, ainda, a necessidade de lidar com as consequências psicológicas da coleta de essências. É um ciclo de risco e recompensa que mantém o jogador em alerta constante, sem permitir momentos longos de relaxamento.
Essa proposta, no entanto, também traz riscos. A lentidão e a limitação podem se tornar frustrantes para jogadores acostumados a ação mais ágil. A escassez de recursos, embora eficaz para criar tensão, pode acabar gerando situações de repetição ou frustração, especialmente se o jogador ficar preso em áreas onde a progressão depende de recursos que ele já gastou em excesso.
Do mesmo modo, a mecânica de fusão precisa ser calibrada com precisão: se os inimigos evoluírem rápido demais ou de maneira imprevisível, pode gerar picos de dificuldade que fogem do controle. Esses são desafios de design que só se confirmam após longas horas de jogo, mas que já despontam como pontos sensíveis.
Mesmo assim, a sensação geral é de que Cronos: The New Dawn acerta ao propor uma jogabilidade centrada no peso das escolhas. O jogador não sobrevive porque é mais rápido ou porque tem reflexos impecáveis, mas porque pensa estrategicamente, porque entende o ambiente, porque aprende a equilibrar risco e cautela.
A cada corpo incinerado, a cada bala poupada, a cada essência escolhida, constrói-se um caminho de sobrevivência que não é óbvio nem garantido. Essa densidade transforma o gameplay em uma experiência angustiante, mas também gratificante, especialmente para aqueles que apreciam jogos que não tratam o jogador como invencível, mas como alguém vulnerável em meio a um mundo hostil.
Encare o Abismo
Cronos: The New Dawn constrói um cenário dual: de um lado, uma Polônia dos anos 80 sob regime comunista à beira do colapso; do outro, um futuro pós-apocalíptico devastado por um evento chamado “Mudança”. Essa ambientação mistura o brutalismo arquitetônico do Leste Europeu com toques retrofuturistas. Os desenvolvedores afirmam que o distrito fictício “New Dawn” do jogo foi inspirado em Nowa Huta (Cracóvia), um bairro comunista construído como símbolo de poder soviético nos anos 1950. A década de 1980 na Polônia – marcada por lei marcial e tensão social – fornece um pano de fundo sombrio rico em paranoia e incerteza.
Cronos então se passa em um mundo sombrio onde o brutalismo do Leste Europeu encontra tecnologia retro-futurista, que transita entre passado e futuro. Ao viajar no tempo para 1980, o jogador testemunha o auge da Mudança, um surto viral misterioso que funde seres humanos em monstruosidades (os “Órfãos”) enquanto no presente cada ruína urbana reforça o sentimento de colapso civilizacional iminente. A fidelidade histórica deste ambiente é enfatizada por elementos de época como letreiros e arquitetura comunista, conferindo realismo à experiência de caminhar por bairros pré-apocalípticos e sentir “o peso do caos iminente” na sociedade retratada.
O jogador assume o papel do Viajante, uma agente misteriosa enviada de um futuro pós-apocalíptico por uma organização sombria chamada Coletivo. Como explica a direção de jogo, “em Cronos, você joga como o Viajante, um misterioso agente armado até os dentes, enviado de um futuro pós-apocalíptico por uma organização sombria conhecida como o “Coletivo”. Sua missão é simples: lutar pelo futuro resgatando o passado.
Para isso, o Viajante deve localizar fendas temporais nos escombros do futuro e usá-las para viajar de volta à Polônia dos anos 80, onde viveram pessoas-chave que não sobreviveram à Mudança. Armado com um dispositivo chamado Harvester, ele extrai as “essências” (almas) desses indivíduos e as carrega para o presente, na esperança de preservar sua consciência para salvar o futuro.
Em Cronos, portanto, o herói é ao mesmo tempo investigador e salvador, motivado pela promessa de impedir que a humanidade seja extinta. Há um dilema intrínseco nessa missão: cada pessoa extraída é vital para reconstruir o futuro, mas o ato de arrancar sua essência do passado tem consequências, um tema explorado na narrativa e nas escolhas do jogo.
Todo o arco do personagem gira em torno desse sacrifício pessoal e da urgência de sua tarefa, criando uma tensão dramática entre dever e dúvida.
Os inimigos de Cronos são as criaturas deformadas resultantes da Mudança. Chamados de Órfãos, são humanos transformados em monstros grotescos por um vírus desconhecido. Esses seres nascem a partir dos restos da humanidade extinta – como salienta o site oficial, são “criaturas horripilantes, nascidas dos remanescentes da humanidade”. Cada encontro de combate reforça o tema da carnificina social.
O sistema de fusão incorporado no jogo reforça o body horror inspirado em filmes como The Thing: monstros contorcidos e “fundidos” ilustram o colapso de corpos e da própria humanidade. Dentro da história, a fusão de Órfãos simboliza o efeito dominó da catástrofe e o medo de que a morte não seja o fim, mas o prenúncio de horrores ainda piores, amplificando o senso de desespero e urgência na trama.
Cuidado ao mexer com o tempo
A mecânica de viagem no tempo é o eixo central da história. O próprio termo Cronos, emprestado do titã mitológico, sugere tempo, e o jogo obriga o jogador a atravessar eras. No enredo, o Viajante usa dispositivos especiais (como a Dive) para navegar por fendas temporais e revisitar eventos vitais nos anos 80. Cada missão no passado vira uma narrativa dentro da narrativa: o jogador observa os horrores da Mudança antes de acontecer e tem a chance de intervir, retirando indivíduos selecionados.
Essas excursões no passado permitem construir dramaticidade e suspense. O jogador sabe que algo terrível (a Mudança) está para ocorrer, e então testemunha pequenos detalhes que podem, ou não, ser alterados. Por exemplo, ao extrair a essência de um personagem, a história se bifurca, gerando consequências que reverberam no final do jogo.
Essa busca por um ponto específico que alterou toda a realidade em Cronos lembra algumas séries de viagem no tempo como a popular Dark da Netflix. Porém, aqui o ponto crítico é uma siderúrgica polonesa em 1980.
Esse modelo distorce a linha temporal: a cada salto, o jogador confronta paradoxos e realidades alternativas, enriquecendo o enredo com mistério. Assim, o sistema não serve apenas ao gameplay, mas também simboliza a implacável relação entre passado e futuro: a noção de que as origens do apocalipse só podem ser plenamente compreendidas encontrando-se “os escombros do passado” e extraindo deles respostas (e pessoas).
Trauma, Colapso e Identidade
A história de Cronos se ancora em temas maduros. O colapso da civilização é mostrado não apenas pelos cenários destruídos, mas sobretudo pelo impacto humano desse fim. Elementos simples, como leituras de cartas de despedida, conversas frias de medo e cartazes de pessoas desaparecidas expõem a dor no cotidiano antes do apocalipse. Assim, o jogo permite ao jogador testemunhar a degradação da sociedade.
O tema do trauma permeia o texto: além dos horrores externos, existe o horror interno. A própria polêmica escolha de retirar (ou não) cada essência é carregada de culpa e esperança, reforçando a ideia de que não há vitórias isentas de cicatrizes morais.
Por fim, a perda de identidade é um tema recorrente. A protagonista é intencionalmente anônima, chamada apenas de Viajante. Aos poucos ela vai descobrindo que sua própria existência foi manipulada.
Conclusão
Cronos: The New Dawn é um jogo que une ficção científica e horror para refletir sobre trauma coletivo e individual. É uma história que faz o jogador encarar a luta pela sobrevivência como uma experiência profundamente humana, conectando ruínas físicas e emocionais. Através de suas viagens no tempo, escolhas de salvar vidas e enfrentamentos contra horrores que podem renascer como monstros, o jogo tece um comentário sombrio sobre como eventos cataclísmicos destroem mundos exteriores e interiores ao mesmo tempo, colocando em xeque quem somos quando o passado e o futuro colidem. A Bloomberg Team lança mais um jogo que vale a pena para os fãs do gênero de Survival Horror.
Agradecemos à distribuidora pela cópia gentilmente cedida para a análise.
Review | Hell is Us nos convida a investigar um mundo devastado pela guerra
Hell is Us é o novo jogo da Rogue Factor, desenvolvedora responsável por Mordheim: City of the Damned. O jogo é liderado por Jacques-Belletete, que foi responsável pelos excelentes Deus Ex: Human Revolution e sua sequência, Deus Ex: Mankind Divided.
O jogo possui elementos que lembram os soulslike, muito em voga atualmente, porém também vem com uma proposta ousada. Hell is Us tem uma proposta mais “minimalista”, não traz mapas ou minimapas, o jogador precisa se guiar através de pistas encontradas em diálogos, documentos e no cenário. Aqui analisamos como o jogo se sai na sua abordagem.
Encontre seu caminho em meio ao inferno
Hell Is Us é um jogo que desafia convenções modernas de design ao apostar em uma jogabilidade centrada na exploração orgânica e no combate tenso, sem recorrer às “muletas” mais comuns de jogos de mundo aberto, como minimapas, ou marcadores constantes na tela. Ele é, em essência, um título que pede ao jogador atenção, paciência e disposição para interpretar o ambiente, transformando a própria paisagem em guia, e não apenas em pano de fundo. Essa decisão, embora arriscada, é a base de sua identidade e define quase todos os aspectos da experiência de gameplay.
O primeiro ponto que chama atenção é a exploração. Diferente de grandes franquias que entopem a tela de indicadores, Hell Is Us exige que o jogador observe marcos geográficos, sons, luzes e até mesmo detalhes arquitetônicos para se orientar. Esse elemento pode ser comparado a jogos de sobrevivência ou a aventuras minimalistas como Shadow of the Colossus, onde o mundo comunica mais do que o próprio HUD.
A ausência mapa digital força uma imersão genuína: perder-se é parte da experiência, e o caminho errado pode render tanto frustração quanto descobertas inesperadas. Essa aposta funciona bem para quem aprecia exploração contemplativa, mas pode ser uma barreira para jogadores acostumados à praticidade dos fast travels e das missões sempre marcadas. Tudo que o jogador tem para se guiar é uma bússola e com ela e a pista certa, o jogador pode encontrar seu caminho. Apesar da ausência da marcação, as pistas definem bem o destino, como por exemplo, “siga a nordeste para encontrar a capela”.
O combate é o segundo pilar da jogabilidade, e talvez o mais divisivo. Hell Is Us utiliza um sistema de combate corpo a corpo baseado em armas tradicionais, como espadas, lanças e machados. Cada arma tem peso, cadência e alcance próprios, exigindo que o jogador aprenda não apenas os golpes, mas também os tempos de recuperação e as janelas de ataque. A inspiração em mecânicas “soulslike” é clara, mas com uma identidade menos voltada para combos complexos e mais para a leitura da situação.
Os inimigos, em especial as criaturas conhecidas como Hollow Walkers, funcionam como verdadeiros testes de paciência: não basta atacar de forma agressiva, é preciso estudar seus padrões, aproveitar aberturas e recuar quando necessário. O drone que acompanha o protagonista cumpre um papel de suporte e também auxilia em alguns ataques. A combinação certa de combos com seu auxílio pode fazer danos devastadores aos inimigos.
Apesar disso, a repetição pode se tornar um problema. O leque de inimigos, embora criativamente concebido em termos visuais e simbólicos, não apresenta a variedade necessária para manter o frescor durante toda a campanha. Muitos confrontos acabam se parecendo mais do que deveriam, e a evolução no arsenal nem sempre é suficiente para dar a sensação de progressão. Ainda assim, o peso do combate, a fisicalidade dos golpes e o risco constante de falhar conferem ao jogo um senso de intensidade que compensa parte dessa limitação. Além disso, a mecânica de parry e as variadas animações de finishes que decorrem do ataque após atordoar os inimigos são sempre satisfatórias de assistir.
Outro aspecto interessante é a integração de puzzles ambientais. Diferente de quebra-cabeças isolados ou excessivamente artificiais, Hell Is Us aposta em enigmas que se misturam ao cenário: símbolos ocultos em ruínas, diários que sugerem soluções e até mesmo a forma como certos objetos são posicionados no espaço. Resolver esses desafios não é apenas uma questão de avançar na história, mas também de compreender a lógica interna do mundo. O jogo recompensa a observação e a curiosidade, criando uma sensação de descoberta que se alinha com sua proposta de exploração sem guias.
A ausência de sistemas de navegação tradicionais se reflete também na forma como missões e objetivos são apresentados. O jogo raramente diz “vá até o ponto X”; em vez disso, ele oferece pistas narrativas e visuais que levam o jogador a montar o quebra-cabeça por conta própria. Isso significa que muitas vezes o progresso depende da interpretação: seguir a trilha de fumaça no horizonte, perceber a luz de uma tocha em meio à escuridão ou notar a mudança na vegetação podem ser as únicas indicações de que você está no caminho certo. Esse design reforça a sensação de estar realmente perdido em um mundo devastado, mas pode soar hermético para quem prefere direções claras.
No campo da mobilidade, o protagonista conta com movimentos básicos de corrida, esquiva e escalada limitada. Não há acrobacias exageradas ou parkour, o que reforça a intenção de manter o jogo mais grounded e realista. Isso também influencia na exploração: alcançar certos pontos exige atenção ao relevo, observar onde há superfícies escaláveis ou pequenas rotas alternativas. A decisão de manter a movimentação simples pode parecer restritiva, mas ela cria um contraste interessante com a vastidão do cenário — o jogador nunca se sente um super-herói, mas sim um ser humano vulnerável tentando sobreviver.
A mecânica de cura é outro ponto que merece destaque. Ao contrário dos frascos de vida instantâneos de outros jogos, Hell Is Us utiliza um sistema que exige tempo e atenção. Recuperar energia em combate não é trivial: é preciso encontrar momentos seguros para ativar o recurso, o que adiciona uma camada de estratégia e tensão. Consiste em atacar o inimigo e apertar um botão no tempo certo sem ser atingido. Muitos jogadores podem achar essa escolha punitiva, mas ela dialoga diretamente com a proposta de um jogo que valoriza cautela sobre pressa.
O ritmo de Hell Is Us também merece análise. Não é um jogo que entrega recompensas constantes ou progressões rápidas. Pelo contrário, a sensação é de lentidão deliberada, em que cada vitória é conquistada a duras penas e cada passo dado em direção ao desconhecido carrega peso. Essa cadência pode ser considerada tediosa para quem espera ação constante, mas é justamente ela que sustenta a atmosfera densa e opressora do mundo apresentado.
A interface minimalista contribui para a imersão, mas cobra um preço. Sem indicadores claros de objetivo ou até mesmo de status detalhados, o jogador depende de observar o próprio corpo do personagem, as reações visuais do ambiente e pequenos sinais de feedback. É um design corajoso, que vai contra a tendência atual de interfaces informativas e didáticas, mas que pode alienar parte do público. No entanto, para quem aceita o desafio, essa escolha gera momentos únicos, como perceber que a respiração ofegante do personagem indica o esgotamento da stamina ou que a mudança no som ambiente pode significar perigo iminente.
No que diz respeito ao equilíbrio de dificuldade, Hell Is Us busca um meio-termo. Não chega a ser tão brutal quanto um Dark Souls, mas também não é indulgente. O jogo recompensa a observação e pune a pressa. Morrer em combate é comum, mas raramente injusto; o aprendizado vem da repetição, da paciência e do refinamento das estratégias. Essa curva de aprendizado é consistente e, apesar da repetição, gera satisfação quando finalmente se domina um inimigo ou se descobre um novo caminho.
Por fim, é importante destacar que a jogabilidade de Hell Is Us não se resume a sistemas isolados, mas à maneira como todos eles se entrelaçam. A exploração sem guias, o combate meticuloso, os puzzles integrados e a ausência de convenções modernas se combinam para criar uma experiência que exige engajamento ativo do jogador. Não é um jogo que se entrega facilmente; ao contrário, ele pede dedicação e disposição para se perder, errar e tentar de novo. Para alguns, essa pode ser uma experiência frustrante; para outros, será exatamente o que torna o jogo memorável.
O Inferno somos Nós
A história de Hell Is Us é um mergulho nas camadas mais sombrias da condição humana, utilizando a guerra, o luto e a violência como eixos narrativos para construir um enredo que não apenas acompanha o protagonista, mas também interpela diretamente o jogador. Desde os primeiros minutos, percebe-se que não se trata de um jogo interessado em entregar explicações fáceis ou narrativas lineares. Pelo contrário, sua força está em provocar, em deixar lacunas, em sugerir mais do que revelar. O resultado é uma trama que mistura ficção científica, simbolismo e drama psicológico, costurando uma experiência narrativa que funciona em vários níveis.
O protagonista, Rémi, é um personagem que chega ao cenário devastado do jogo já carregando um peso pessoal considerável. O país em que ele se encontra, Hadea foi dilacerado por uma guerra civil que deixou marcas visíveis nas cidades destruídas, nas paisagens despovoadas e nos escombros que contam histórias silenciosas.
Ao mesmo tempo, há uma camada sobrenatural que se sobrepõe a esse pano de fundo: as criaturas conhecidas como Hollow Walkers, manifestações enigmáticas que não são simplesmente monstros, mas representações simbólicas de emoções humanas extremas. Elas não surgem por acaso, e cada uma guarda relação com sentimentos como luto, medo ou raiva, transformando o próprio campo de batalha em um reflexo das cicatrizes emocionais dos personagens.
Essa fusão entre guerra real e elementos sobrenaturais é um dos pontos mais fascinantes da narrativa. O jogo nunca trata os Hollow Walkers apenas como inimigos a serem derrotados; eles são metáforas corporificadas. O combate contra eles tem sempre um duplo sentido: além do desafio físico, há o enfrentamento de dilemas internos. É nesse equilíbrio que Hell Is Us constrói uma de suas maiores forças narrativas — a ideia de que a verdadeira batalha não é contra um exército rival, mas contra os fantasmas que a própria violência humana gera.
A história também se destaca pela maneira como é contada. Não há longos monólogos expositivos ou cutscenes intermináveis explicando cada detalhe. O enredo se desenrola através de fragmentos: documentos encontrados, símbolos cravados em paredes, conversas curtas com NPCs sobreviventes e até mesmo o design do ambiente. O silêncio das cidades arrasadas, por exemplo, fala mais do que qualquer diálogo.
Essa abordagem reforça a imersão, pois coloca o jogador na posição de investigador, alguém que precisa reconstruir os acontecimentos passados a partir de vestígios. É uma narrativa que respeita a inteligência de quem joga, ao invés de mastigar cada detalhe.
No centro da trama está a jornada pessoal de Rémi. Sua busca não é apenas por sobrevivência ou vitória militar, mas por autoconhecimento e reconciliação com suas próprias feridas. O jogo sugere, em diversos momentos, que ele não está apenas lutando contra forças externas, mas enfrentando traumas íntimos, perdas familiares e ressentimentos mal resolvidos.
Esse aspecto é reforçado pela presença do drone que o acompanha, que funciona não apenas como recurso de gameplay, mas também como uma espécie de testemunha silenciosa, quase um confidente. Sua relação com o drone é ambígua: ao mesmo tempo em que depende dele, Rémi parece projetar parte de sua solidão nessa companhia mecânica.
Outro ponto relevante é o tratamento da guerra. Diferente de outros jogos que exploram conflitos armados de forma glorificada ou puramente estratégica, Hell Is Us adota um tom introspectivo e crítico.
A guerra aqui não é apenas cenário, mas também uma consequência da incapacidade humana de lidar com emoções profundas. A destruição que vemos é fruto tanto da brutalidade física quanto da deterioração psicológica coletiva. Essa abordagem dá ao jogo um caráter quase filosófico: em vez de perguntar “quem vai vencer?”, ele pergunta “qual é o preço de se lutar?”. Cada ruína visitada, cada diário encontrado reforça essa reflexão, tornando a narrativa mais pesada e impactante.
Os personagens secundários contribuem para expandir essa visão. Embora não haja uma grande quantidade deles, cada encontro é significativo. Sobreviventes relatam fragmentos de suas vidas, muitas vezes marcados por perdas irreparáveis. Não são figuras que fornecem missões tradicionais, mas vozes que ajudam a compor o mosaico do sofrimento humano. Essas interações curtas e densas lembram muito o estilo literário, em que cada diálogo carrega um peso simbólico. Muitos desses personagens parecem existir não para avançar a trama central, mas para ampliar o tema do luto coletivo.
A estrutura narrativa é fragmentada, e essa fragmentação é intencional. O jogador nunca tem acesso imediato à “verdade” sobre os eventos que desencadearam o surgimento dos Hollow Walkers ou sobre a própria história pessoal de Rémi. Em vez disso, a verdade é construída em camadas, revelada aos poucos, como se fosse uma cicatriz que só pode ser compreendida quando observada de diferentes ângulos. Essa escolha pode ser frustrante para quem prefere narrativas lineares, mas é fundamental para o impacto do jogo. O objetivo não é entregar respostas claras, mas provocar questionamentos.
Um dos momentos mais marcantes da trama ocorre quando o jogador percebe que os Hollow Walkers não são apenas inimigos externos, mas reflexos internos do protagonista. Esse ponto de virada redefine a leitura de todos os encontros anteriores e dá à narrativa uma dimensão mais íntima. Não se trata mais de “derrotar monstros”, mas de aceitar, entender e talvez até perdoar partes de si mesmo.
A luta contra o luto, em especial, é central: Rémi precisa lidar com a dor da perda de pessoas próximas, e o jogo retrata isso de forma simbólica, com confrontos que funcionam como representações viscerais de seu sofrimento.
O final da história, sem entrar em spoilers específicos, não é convencional. Em vez de uma conclusão triunfante ou de uma resolução clara, o jogo opta por deixar a sensação de ambiguidade. Não há respostas fáceis, nem fechamento completo. Essa decisão pode dividir opiniões, mas está alinhada com o tom geral da narrativa: em um mundo marcado pela guerra e pelo trauma, raramente existe um “final feliz”. O que resta é o esforço de compreender, de continuar e de conviver com as cicatrizes.
Outro elemento que merece destaque é a simbologia presente em todo o enredo. Desde a paleta de cores usada nos ambientes até os nomes dos inimigos e os objetos coletados, tudo possui uma camada interpretativa. Nada é gratuito, e cada detalhe pode ser lido como metáfora.
Essa densidade simbólica faz com que a história seja aberta a múltiplas interpretações, um convite para que cada jogador construa sua própria leitura. Alguns podem ver o jogo como uma crítica direta à guerra, outros como uma jornada de autoconhecimento, outros ainda como um estudo psicológico sobre o luto. Todas essas leituras são válidas e coexistem dentro da obra.
A narrativa de Hell Is Us também dialoga com tradições literárias e artísticas. É possível identificar influências de obras de ficção científica existencial, como as de Jeff VanderMeer (Aniquilação), e até de clássicos da literatura russa, com sua insistência em retratar personagens atormentados pela culpa e pela perda. Essa intertextualidade reforça o caráter sofisticado do enredo, que não se limita à lógica do entretenimento, mas aspira a algo maior, quase artístico.
Em resumo, a história de Hell Is Us é uma experiência complexa, densa e muitas vezes desconfortável. Ela não busca agradar a todos, mas desafiar, questionar e provocar. Sua força está em transformar um jogo de ação em uma reflexão sobre a condição humana, em que os monstros não são apenas criaturas de outro mundo, mas espelhos distorcidos de nossas próprias emoções. A narrativa é fragmentada, simbólica e ambígua, mas é justamente isso que a torna marcante. Hell Is Us não entrega respostas; entrega perguntas, e talvez seja essa a maior qualidade de sua história.
Conclusão
Hell is Us traz um gameplay que inova em tempos em que os desenvolvedores tentam facilitar a todo momento a vida dos jogadores, colocando um enorme X nos objetivos. Aqui a imersão fica maior, forçando o jogador a buscar pistas, sendo o jogo uma escolha perfeita para aqueles que se divertem com essa abordagem mais investigativa. O combate também é mais dinâmico que a maioria dos outros jogos, forçando o jogador a se manter ativo e atento para conseguir sobreviver.
O jogo também traz uma história interessante e cheia de simbologias que lida com luto, família e guerra de forma bastante reflexiva e provocativa. Aqueles que gostam de obras de ficção científica com esse teor devem achar a história deste jogo um deleite. Dito isso, certamente não se trata de um jogo que vai agradar a todos, porém certamente tem o seu público entre fãs de soulslikes e sci-fi.
Esta análise foi realizada com uma cópia gentilmente cedida pelo desenvolvedor.
Review | The Rogue Prince of Persia reinventa a franquia no gênero roguelite
Prince of Persia é uma franquia clássica e não seria exagero nenhum que é uma das mais influentes dos videogames. Ela ficou sumida de um grande lançamento nos consoles por um bom tempo desde o Forgotten Sands de 2010 até ressurgir em janeiro do ano passado com o excelente Lost Crown de 2024. No mesmo ano, alguns meses depois The Rogue Prince of Persia surgiu com uma versão em acesso antecipado que dividiu opiniões. Recentemente ela foi oficialmente lançada e é essa nova versão que estaremos analisando aqui.
https://www.youtube.com/watch?v=Y9QwyBz-FW4&ab_channel=PlayStation
Salve a Pérsia
The Rogue Prince of Persia é uma ousada reinvenção da franquia clássica, trazendo a agilidade característica do Príncipe para um formato roguelite que mescla exploração, combate dinâmico e progressão estratégica. Desenvolvido pela Evil Empire (responsável por Dead Cells) e publicado pela Ubisoft, o jogo se destaca pela jogabilidade polida e pela integração inteligente de mecânicas de movimento e combate.
Logo de início, os jogadores são apresentados a um sistema de movimento excepcionalmente fluido. O Príncipe pode escalar paredes, deslizar sob obstáculos, saltar entre plataformas e realizar acrobacias com uma naturalidade que remete aos melhores títulos de plataforma 2D. A mecânica de wall run, em particular, é tão bem implementada que se torna central na exploração e no combate, permitindo desencadear ações como saltos, mergulhos e chutes sem interrupções. Essa mobilidade é amplificada pelo sistema Vayu's Breath, que recompensa sequências de movimentos elegantes com aumento de velocidade e efeitos visuais amplificados, criando uma sensação de ritmo e fuxo que é tão prática quanto é gratificante.
No combate, o jogo oferece uma variedade de armas e ferramentas que incentivam estilos de jogo distintos. Espadas curtas favorecem a agressividade, enquanto armas pesadas como machados exigem timing preciso, mas compensam com dano devastador. Ferramentas secundárias, como arcos e equipamentos especiais, adicionam camadas táticas, permitindo ataques à distância ou controle de multidões. Duas inovações se destacam: o dash tático, que posiciona o Príncipe nas costas dos inimigos para ataques surpresa, e o chute, que atordoa adversários ou os lança em armadilhas ambientais espalhadas pelo cenário. Essas mecânicas não só ampliam as opções estratégicas, mas também incentivam a criatividade durante os combates.
A progressão é baseada em ciclos de tentativa e erro, típicos do gênero roguelite. Moedas coletadas durante as runs permitem desbloquear upgrades permanentes no hub central (Oásis), como vida adicional ou dano ampliado, reduzindo a frustração de mortes repetidas . Além disso, os medalhões funcionam como perks modificadores de gameplay, concedendo benefícios que variam de ganhos passivos de recursos até efeitos situacionais, como criar poças de resina ao chutar inimigos. A customização via combinações de medalhões (até 4 slots) adiciona profundidade, permitindo que jogadores criem sinergias únicas adaptadas ao seu estilo.
A exploração é outro ponto forte. Os biomas são gerados proceduralmente, garantindo que cada partida seja única, com inimigos, armadilhas e recompensas reposicionados a cada tentativa. A descoberta de segredos ambientais, como os poços dos sonhos (pontos de fast travel) ou cachês de Cinza (recursos para upgrades), incentiva a investigação minuciosa dos cenários. No entanto, um ponto que pode ser frustrante é a perda desses recursos a cada morte, o que exige que jogadores os depositem em altares entre zonas para evitar perder tudo. Existe um sistema de risco e recompensa que adiciona tensão, mas pode ser punitivo para iniciantes.
Apesar dos elogios, há espaço para melhorias. O skill tree é considerado básico por alguns, focando em upgrades numéricos (ex.: +vida) em vez de habilidades transformadoras . Além disso, a repetitividade pode surgir após horas de jogo, já que a variedade de inimigos e biomas é limitada na versão inicial. Controles precisam de ajustes finos, especialmente em sequências de parkour de alta precisão, onde falhas podem parecer injustas.
Em suma, The Rogue Prince of Persia é uma celebração da mobilidade e do combate estratégico. Sua jogabilidade fluidamente integrada com mecânicas de roguelite cria uma experiência viciante que honra a herança da série enquanto inova com coragem. E as inovações que a nova versão oficilalmente lançada deixa o jogo ainda mais fluido e divertido.
O que (não) mata te deixa mais forte
The Rogue Prince of Persia destaca-se não apenas por sua jogabilidade refinada, mas por uma narrativa que integra de forma inteligente a mecânica de morte e renascimento à mitologia da série. Desenvolvido pela Evil Empire, o jogo explora temas como culpa, responsabilidade e a natureza da imortalidade, tudo ambientado em um universo persa repleto de magia e perigo. A história é contada de forma não linear, com fragmentos narrativos desbloqueados progressivamente, incentivando a exploração e a repetição de ciclos sem tornar-se repetitiva.
A premissa central gira em torno do príncipe da Pérsia, que subestima os hunos e vê seu reino ser invadido por um exército sobrenatural liderado por Nogai. Derrotado em batalha, ele acorda três dias depois em um oásis, revivido por uma bola mística (presente de seu pai) que lhe concede imortalidade ilimitada. Este artefato não é apenas uma ferramenta de gameplay, mas o cerne da narrativa: cada morte e renascimento é justificada pela bola, que amarra o príncipe a um ciclo de tentativas para salvar seu reino e corrigir seus erros.
A estrutura narrativa é um dos pontos mais elogiados. Diferente de muitos roguelites, onde a história é apenas pano de fundo, The Rogue Prince of Persia faz da morte uma ferramenta narrativa. Cada partida revela novas informações sobre a invasão dos hunos, a corrupção mágica que consome a cidade e os segredos por trás da bola da imortalidade. NPCs no oásis – como o ferreiro cínico e a alquimista misteriosa – oferecem missões e diálogos que aprofundam a trama, enquanto flashbacks e visões desvendam o passado do protagonista e suas motivações.
Um elemento inovador é o sistema de "detetive", onde o jogador deve coletar pistas espalhadas pelos biomas e conectá-las para avançar na história principal. Por exemplo, encontrar um objeto específico ou interagir com um personagem secundário pode desbloquear um novo caminho narrativo, incentivando a exploração meticulosa dos cenários. Essa abordagem lembra jogos de mistério como Sherlock Holmes, mas integrada perfeitamente ao gênero roguelite.
Os temas abordados são maduros e reflexivos. A culpa do príncipe por ter falhado em proteger seu povo é palpável, e sua jornada é tanto física quanto emocional. A imortalidade oferecida pela bola é apresentada como uma maldição disfarçada de benção, pois condena o protagonista a reviver incessantemente até cumprir sua missão.
A vilania de Nogai e dos hunos, embora funcional, não é tão desenvolvida quanto poderiam ser. Os antagonistas são representados como forças destrutivas sem motivações profundas, o que é uma limitação narrativa. No entanto, a relação do príncipe com seus aliados e com seu próprio passado compensa essa fraqueza, criando conflitos emocionais ressonantes. A progressão da história é gradual e depende diretamente do desempenho do jogador. Após derrotar chefes ou completar missões específicas, novos diálogos e cutscenes são desbloqueados, revelando camadas adicionais do lore.
Em comparação com outros roguelites, como Hades, a narrativa de The Rogue Prince of Persia é mais fragmentada e menos centrada em personagens carismáticos. No entanto, sua originalidade está em como a mecânica de morrer e renascer é organicamente tecida na trama, criando uma experiência coerente e imersiva. A direção artística – inspirada em miniaturas persas e obras de Moebius – reforça o tom épico e melancólico da história .
Em resumo, The Rogue Prince of Persia eleva a narrativa de roguelites ao transformar a morte em um elemento central da jornada do herói. Sua história de culpa e redenção, aliada a uma progressão não linear inteligente, oferece uma experiência cativante que honra a herança da série enquanto inova com coragem. Agora a história está mais satisfatória do que na versão anterior, agora estando completa.
Conclusão
The Rogue Prince of Persia continua o legado da franquia fazendo uma combinação de elementos do gênero roguelite com os que já ficaram marcados na série que incluem manipulação do tempo e isso caiu como uma luva, sendo uma ótima sacada dos desenvolvedores da Evil Empire. Além disso, o jogo tem uma bela arte, combate fluido e desafios que deixam o jogador ávido por jogar mais. O título é recomendado principalmente para fãs do gênero roguelite e metroidvanias.
Fundação e Duna | As Diferenças e Semelhanças que Unem as Duas Sagas dos Sci-Fi
Fundação é uma série de livros do Isaac Asimov cuja publicação foi iniciada na década de 1950, com o primeiro livro sendo lançado em 1951. O primeiro livro de Duna teve sua primeira publicação em 1965. Ambas as obras são grandes marcos da ficção científica e estão em evidência na cultura pop atualmente, com Fundação tendo uma série na Amazon escrita e produzida pelo David Goyer e Duna tendo uma série de filmes dirigida por Denis Villeneuve, além de uma série spin off na HBO.
As duas séries possuem similaridades interessantes que valem a pena ser discutidas. Não vou dizer aqui que uma série necessariamente “copiou” outra, elas possuem também diferenças suficientes para escapar dessa afirmação. Porém, o que acredito que ocorreu entre as duas era uma troca de ideias entre os autores. Tanto o Frank Herbert quanto o Asimov mantinham contato com outros escritores, até mesmo frequentando as casas um do outro. Para demonstrar isso, vou colocar um trecho da biografia Dreamer of Dune a seguir:
“Vários escritores de ficção científica famosos e que em breve se tornariam famosos visitaram nossas casas em São Francisco, incluindo Robert Heinlein, Poul Anderson, Jack Vance e Isaac Asimov.” (Dreamer of Dune).
Portanto aqui eu farei uma análise que evite colocar um autor acima do outro, afinal, gosto muito de ambos os autores e respeito as ideias deles. Outra observação a se fazer é que estou levando em conta principalmente os livros da série e não as suas adaptações. Portanto vamos agora dar uma olhada nesses dois pedigrees da ficção científica.
Impérios
O que popularmente se diz sobre Fundação é que o livro traria a primeira história que concerne a um império no espaço. Alguns chegam a dizer que seria a primeira space opera, porém fica complicado dizer isso, pois já existiam histórias sobre viagens a outros planetas de autores como HG Welles e Edgar Rice Burroughs. Porém, Fundação se destaca por colocar uma história de sci-fi se passando em escopo intergaláctico onde predomina exclusivamente a presença humana.
Asimov nos coloca cinquenta mil anos no futuro e imagina um cenário em que a humanidade conseguiu expandir-se para além do planeta terra, com um império vasto que se estende por toda a galáxia. A história se inicia com o matemático Hari Seldon apresentando os resultados catastróficos que aguardam o império em um futuro não tão distante que ele descobre através de uma nova ciência que ele cria, a psico-história.
Duna também apresenta um império vasto que se expandiu para além da via láctea. Em Duna temos uma organização da sociedade em um modelo que lembra o feudal. Existem vários senhores que possuem o domínio de planetas, os chamados feudos siridares. Estes senhores estão subordinados ao imperador. Além disso existe a Guilda Espacial que representa o poder econômico, possuindo o monopólio dos transportes espaciais. Essa organização social é caracterizada no primeiro livro como um tripé e diz ainda que esse modelo seria instável.
A civilização em Duna, apesar de avançada, se limita tecnologicamente, pois dez mil anos antes do ponto em que começa a história (que se inicia vinte mil anos depois da era contemporânea), a humanidade entrou em conflito com as máquinas pensantes, vulgo a Inteligência Artificial. Após isso se instalou uma grande repulsa contra essas máquinas a ponto de elas serem consideradas demoníacas pelas religiões dominantes do império. Daí surgem as Bene Gesserits, cujas reverendas madre possuem o acesso a memória genética, mentats que podem fazer cálculos como se fossem computadores e navegadores, que possuem o poder da presciência, utilizado na navegação.
Essa superação da IA e desenvolvimento do cérebro humano para que a humanidade não ficasse mais dependente dela no universo de Duna foi possível através da especiaria mélange, substância mais importante de todo o universo, encontrada apenas no planeta desértico Arrakis. Fundação também possui uma história conectada às Inteligências Artificiais, mais especificamente, o robô, figura que ficou icônica através dos escritos de Asimov, que inclusive cunhou o termo “robótica”. Porém, a forma que cada um aborda a questão é bem diferente. Logo chegamos lá, agora que cada universo foi estabelecido, eu gostaria de falar sobre estrutura narrativa e sobre alguns personagens de ambas as séries.
Vastos em espaço, também em tempo
A narrativa da trilogia original de Fundação abrange centenas de anos. No primeiro livro, cada capítulo conta uma história diferente. Iniciando-se com Gaal Dornick encontrando-se com Hari Seldon, que juntos fundam a Fundação no planeta Terminus. E no segundo capítulo, acompanhamos o prefeito Salvor Hardin décadas depois do ocorrido do primeiro capítulo onde tanto Seldon e Dornick jazem mortos.
Analisando apenas o primeiro livro de Duna, não existe uma lacuna de tempo tão grande dentro da narrativa deste, contendo apenas uma pequena passagem de dois anos entre a parte II, “Muad’Dib” e parte III, “O Profeta”. Porém, se levarmos em conta toda a série Duna e apenas a série Fundação de Asimov em consideração (sem contar com a série Robôs), Duna contém lacunas de tempo maiores entre um livro e outro. Cinco milênios separam os eventos do primeiro livro da série escrito pelo Frank Herbert e do último, “As Herdeiras de Duna”.
Duna também faz um comentário histórico e político ao longo de suas obras, porém eu acredito que a principal diferença entre as duas séries é que Duna se inclina mais para os elementos místicos e religiosos de sua obra. O que podemos notar é que ao longo destes livros, Herbert nos mostra como eventos do passado se tornam lenda para o futuro e tece comentários sobre como o passado molda o presente, e como as pessoas do presente veem o passado e dá ênfase em como o passado deveria servir de lição para as pessoas que hoje vivem. Comentarei um pouco mais sobre como isso ocorre na próxima sessão.
Heróis e vilões, Governos e Desgovernos
Asimov baseou sua história na ideia de que impérios sempre tem uma ascensão e um declínio, inclusive a obra que mais o inspirou falava sobre o império romano, como a nota e edição brasileira publicada pela editora Aleph diz:
“Um dos pontos notáveis é o fato de ter sido inspirada no clássico A História do Declínio e Queda do Império Romano, do historiador inglês Edward Gibbon. Não é portanto uma história de Glória e Exaltação, mas sim a epópeia de uma civilização que havia posto tudo a perder.” (Fundação, nota a edição brasileira)
Geralmente impérios justificam sua existência baseando-se em uma ideologia que denota a superioridade de um povo sobre outro, como o Destino manifesto dos americanos e as ideias de eugenia e superioridade racial dos alemães nazistas. Existem menções nos livros que nos fazem lembrar de tais fatos na própria forma que o império justifica sua permanência.
Portanto o elemento humano do livro abrange uma dimensão histórica, com diversos paralelos sendo feitos ao longo das páginas de Fundação. Geralmente quando um império cai, a humanidade passa por um momento difícil até que seja restabelecida a ordem, vulgo o que a dissolução do império romano promoveu na Europa, começando a era medieval. Hari Seldon, com sua psico-história sabe que é impossível evitar que isso venha a acontecer, portanto seu objetivo na verdade seriam minimizar os danos, fazer com que essa era de calamidade intergaláctica ao invés de durar milhares de anos, dure apenas algumas centenas.
O livro resume a psico-história da seguinte maneira: [...] ramo da matemática que trata das reações dos conglomerados humanos a estímulos sociais e econômicos fixos […]”. Ou seja, psico-história pode prever fatos que envolvem o coletivo, mas quando se trata do indivíduo, os cálculos passam a ficar menos precisos. Seldon conseguiu prever esses momentos em que a história ficaria mais nebulosa e os chamou de “crises”. Na maior crise enfrentada pela Fundação, surge O Mulo.
O Mulo para mim está entre os vilões mais interessantes de toda a ficção científica. Estudando história, observamos que em momentos em que uma população passa por provações severas em relação a situação econômica e social de seu país, muitas vezes surge a figura de um salvador, um líder que estaria para além de questionamentos para boa parte da população e que libertaria o povo do que quer que estivesse passando e restauraria seu orgulho como nação. Hitler foi um desses personagens e o Mulo tem uma característica forte de tirania na Fundação que foi inspirada nessas figuras.
Em resumo, o Mulo é um mutante que desenvolveu um poder mental especial, ele pode influenciar a emoção das pessoas e ele potencializa seu poder através da música, sendo ele também uma espécie de trovador no livro. Ora, líderes como Hitler, Mussolini, Napoleão, Mao Tsé-Tung e grandes figuras políticas da história recente e da antiguidade que receberam as alcunhas de ditador e tirano não eram apenas cruéis ou maldosos como alguns superficialmente os resumem, mas também ótimos oradores e inteligentíssimos, sabendo fazer discursos que toquem o emocional mais íntimo da população, utilizando o discurso que Aristóteles chamaria de páthos, proferido para causar uma resposta emocional. O Mulo é literalmente isso.
E é agora que retornamos a Duna, pois aqui temos uma reviravolta interessante, o “herói” da história, Paul Atreides é basicamente, o Mulo de seu universo. Coloque o termo que o designa entre aspas em respeito a intenção do Frank Herbert com o personagem, que o criou no intuito de que ele fosse questionado. Para ilustrar isso, demonstro uma frase do próprio primeiro livro de Duna:
“Não poderia acontecer um desastre mais terrível para sua gente do que cair nas mãos de um Herói.” (Duna)
E ainda, na biografia do Frank Herbert, Dreamer of Dune, escrita por seu filho, Brian Herbert
Heróis são perigosos, especialmente quando as pessoas os seguem cegamente, tratando-os como deuses. (Dreamer of Dune)
Esse pensamento que coloco aqui não é exatamente original, Tim O’Reilly havia expressado isso em sua tese sobre o Frank Herbert, mas pensemos nisso por um momento. Paul Atreides dentro do universo de Duna é um Kwisatz Haderach, um super humano projetado pelas Bene Gesserits, cuja aparição se deu graças a um programa de procriação de mais de dez mil anos.
Explicando de forma resumida, ele seria o suprassumo do desenvolvimento humano desde que as máquinas pensantes foram abolidas na época do Jihad Butleriano. Teria a memória genética das Bene Gesserits, a capacidade análitica dos mentats e a presciência dos navegadores, porém em um nível jamais alcançado antes por qualquer ser humano. Ele seria capaz de “conectar o passado ao futuro” e teria acesso a história da humanidade e também de seus possíveis futuros e seria aquele que “aponta o caminho” (significado de Kwisatz Haderach). Segundo a premissa das Bene Gesserits, ele saberia o melhor curso que a humanidade deveria tomar.
As Bene Gesserits são missionárias e implantam mitos e lendas dentro de religiões locais para conseguir refúgio em planetas distantes e hostis e isso também contribui para que pessoas reconheçam seu Kwisatz Haderach. Quando Paul e sua mãe, Jessica, estavam perdidos no planeta Arrakis, os fremen acolheram Paul acreditando que ele poderia ser o “Lisan al-Gaib”, que eles acreditavam que libertaria seu povo e transformaria o planeta desértico em um paraíso.
No início, Paul decide usar os fremen para chegar em seu principal objetivo no momento, vingar-se dos Harkonnen e do imperador que haviam assassinado seu pai e seus amigos, porém ao longo da história ele vai se afeiçoando aos Fremen e sua cultura a ponto de se sentir culpado por usá-los e ver seus amigos se tornarem adoradores.
Veja que Paul também suscitou grande apelo emocional nas massas assim como o mulo o fez, apesar dos métodos serem diferentes. O Mulo afeta diretamente o emocional das pessoas com suas habilidades mutantes. Já o Paul se apropria de uma lenda pré-existente, que ele sabia muito bem que foi fabricada com segundas intenções.
Agora a comparação em si, O Mulo simplesmente aparece em Fundação, como algo que não foi previsto por Seldon, sendo a maior ameaça para os planos da Fundação. Enquanto o leitor ficava confortável com a psico-história tendo a solução de tudo até Quele ponto, o surgimento Mulo quebra isso, aumentando a intensidade dramática da história de forma repentina. Lembro que esse elemento foi uma das principais coisas que mais me fizeram gostar de Fundação na primeira leitura.
De forma parecida, as Bene Gesserit não planejavam que Paul fosse o Kwisatz Haderach (apesar de haver suspeitas que foram negligenciadas, Herbert dedica uma seção do apêndice para falar disso) e sim que ele nasceria uma geração depois. O surgimento desses personagens em seus respectivos universos desestabiliza tudo, entre planos, governos e instituições.
A principal diferença está na motivação dos dois. Sendo o antagonista da história, não penetramos na mente do Mulo diretamente, ele parece querer conquistar apenas por conquistar. Mas existe uma motivação psicológica apresentada de forma sutil. Ele é extremamente solitário, não tem uma boa aparência e não consegue fazer amigos ou ter relacionamentos naturalmente, ficando totalmente dependente de seus poderes para tal. Ele então cria uma compulsão de sempre conquistar mais, até chegar ao nível planetário e depois galáctico.
Já o Paul Atreides não tinha essa compulsão, essa é a tragédia desse personagem. Ele nunca quis conquistar o império e guiar os fremen em uma cruzada fanática, as circunstâncias o levaram a isso e ele via o futuro com horror. Depois de despertar completamente sua consciência de Kwisatz Haderach, ele ficou sabendo de seu "propósito terrível" O que o fez permanecer foi que ele talvez poderia minimizar os danos do que foi iniciado em Arrakis, como é aludido algumas vezes nos livros.
Paul torna-se um prisioneiro do seu próprio destino, apesar de poder ver o futuro, ele não gosta dos resultados dos caminhos e sabe que não pode fazer muita coisa para impedi-los. Existem coisas que ele conseguiu impedir, como a própria morte e alguns futuros que ele vê no livro que nunca chegam a acontecer, porém existem alguns pontos que por mais que ele se esforce, não pode mudar, como o próprio jihad.
Completando a comparação, ambos são obras do acaso que desestabilizam a ordem vigente em seus universos. Os dois utilizam a emoção das pessoas para criar um fervor em relação a suas figuras. O mulo exacerba as emoções das figuras diretamente, já o Paul utiliza o elemento religioso, apresentando-se como uma espécie de Messias para os fremen.
Religião e política são duas das coisas que mais suscitam animosidade entre as pessoas e Herbert tenta demonstrar a linha tênue que existe entre eles ao longo dos livros. Ele sempre menciona políticos como Kennedy e Nixon em entrevistas e em Messias de Duna, Paul se compara a Hitler e Genghis Khan, sinalizando o que ele queria que tirássemos como mensagem da história. Heróis como o Paul podem ser tão perigosos quanto essas figuras e como um vilão como o Mulo.
Máquinas e Robôs: A Inteligência Artificial
Fundação não iniciou-se conectado diretamente a série Robôs. Isso ocorreu na década de 1980 quando Asimov estava escrevendo novos livros tanto na série Robôs quanto Fundação e decidiu conectá-las, fazendo uma espécie de retcon no processo. De certa forma isso deixou ambas as séries mais ricas.
No que concerne Fundação, a série se passa milhares de anos da série Robôs, onde a humanidade se expandiu tanto para além das estrelas, que a existência da Terra, planeta natal da humanidade, nem mesmo é lembrada. No passado, como ocorre na série Robôs houve um conflito entre os robôs que fez com que sua existência se tornasse uma mera lenda. Isso decorreu após a lei zero ser criada. Vamos relembrar aqui as leis da robótica.
"Primeira. Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano seja ferido.
"Segunda. Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas pelos seres humanos, exceto quando tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.
"Terceira. Um robô deve proteger sua própria existência, desde que isto não entre em conflito com a Primeira e a Segunda Leis.
Essas leis regem o comportamento dos robôs e o Asimov explora brechas nessas leis ou a própria ausência delas em alguns casos para mostrar que mesmo com um controle rígido os robôs podem dar problema e causar desastres que movem suas histórias na série Robôs. Porém, Asimov nunca é tão pessimista em relação a Inteligência artificial como o Herbert é na série Duna. Isso pode ser demonstrado na seguinte fala dele no prefácio de Robôs da Alvorada:
“Em 19 de abril de 1952, Gold e eu estávamos falando sobre um novo romance que deveria ser publicado na Galaxy. Ele sugeriu que fosse um romance de robôs. Meneei a cabeça de maneira veemente. Meus robôs tinham aparecido apenas em contos e eu não tinha certeza de que poderia escrever um romance inteiro baseado neles.
– É claro que consegue – Gold sugeriu. – Que tal um mundo superpovoado no qual os robôs estão tomando os empregos dos humanos?
– Depressivo demais – respondi. – Não tenho certeza se quero trabalhar com uma história de tema sociológico difícil.” (Prefácio de Robôs da Alvorada)
Essa filosofia continuou pelo resto de sua carreira, as histórias nunca se tornavam depressivas demais por mais que os robôs dessem problemas, ainda existia uma esperança de que eles fossem úteis à humanidade. É daí que decorre a lei zero que suplanta todas as outras, eis no que ela consiste:
“Um robô não pode ferir a humanidade nem deixar, por inação, que a humanidade venha a ser ferida.”
Em Origens da Fundação, Asimov revela que foi um robô (um personagem da série Robôs, só não vou revelar quem para não dar spoiler a quem for ler os livros) que auxiliou Seldon a aprimorar a psico-história e criar a Fundação, enquanto obedecia os regimentos dessa lei. O robô sabia que para o bem da Humanidade, Seldon teria que ser bem-sucedido em sua tarefa. Portanto, o grande plano de diminuição dos danos sofridos após a queda do Império teve uma contribuição substancial de uma máquina.
Voltando para Duna, a situação em relação às máquinas é completamente diferente, enquanto o Asimov tentava escapar de “temas sociológicos difíceis”, Herbert chafurda neles. O trauma do conflito envolvendo máquinas, o Jihad Butleriano foi tamanho que deixou sequelas na humanidade, mas ao mesmo tempo foi o evento propulsor para seu desenvolvimento. Porém, na maioria do tempo (existem exceções em alguns pontos da série), as máquinas são vistas como destruidoras da humanidade e não auxiliadoras e muito menos salvadoras como em Fundação.
Em Duna, a questão é ainda mais séria porque a luta do Kwisatz Haderach (como é enfatizado principalmente nas sequências) é salvar a humanidade não de um período ruim que poderia se alongar na história, mas da sua completa extinção. Às vezes se fala de um grande mal vindo para abater a humanidade caso ela não estiver sendo preparada, mas em suma, eles querem salvar a humanidade dela própria, afinal, tanto máquinas quanto seres prescientes que venham a ser ameaças não surgem do nada neste universo, mas são resultados da ação humana.
Assim, Paul e depois o Imperador Deus, se consideram não exatamente salvadores da humanidade, mas antes de tudo, seus professores (mu’addib em árabe quer dizer literalmente professor e é daí que Herbert adaptou o nome Muad’Dib). Por mais que seja um super humano, aqui quem aponta o melhor caminho para a humanidade seguir, ainda assim, é humano. Porém, esse melhor caminho ainda assim é sujeito a falhas, pois o próprio Imperador Deus sugere que ele é humano, no entanto, ele ainda é a melhor chance que a humanidade tem, como é dito aqui:
Zombar de você? Por meu nome, Stilgar, eu jamais zombaria de você. Eu lhe fiz um presente inestimável. Ordeno que o leve sempre perto do coração, como recordação de que todos os humanos podem errar e de que todos os líderes são humanos.
Uma risadinha leve escapou de Stilgar.
– Que naib você teria dado!
– Que naib eu sou! Eu sou o naib de todos os naibs! Jamais se esqueça disso! (Filhos de Duna)
Porém, a questão não é tão simples quanto parece. Ao longo dos livros, Herbert tece vários paralelos entre as máquinas e os Kwisatz Haderach, porque primeiro, ambos são seres programados que saíram do controle de seus programadores e ambos ameaçam a humanidade em igual medida, onde nenhuma salvaguarda foi capaz de contê-los. Por isso, o principal plano deles é garantir que um ser presciente capaz de aprisionar toda a humanidade em sua visão não surja nunca mais.
A série de Fundação e mais paralelos
O que me incentivou a escrever esse texto foi que, ao assistir a adaptação do David Goyer de Fundação produzida para a Apple TV, não pide deixar de notar que ele insiste em acrescentar ainda mais elementos que são mais característicos a Duna do que Fundação. São escolhas que achei curiosas visto que as duas séries já eram bem comparadas mesmo quando ainda estavam confinadas às páginas da literatura de sci-fi.
A primeira adição que chama atenção é a escolha de Gaal Dornick para ser protagonista da série. Nos livros ele aparece apenas no primeiro capítulo, mas aqui, a personagem (trocam o gênero na série) é a protagonista presente em todas as crises. Além disso, ela é presciente na série, lembra um certo personagem de algum outro lugar, não?
Outras semelhanças incluem os navegadores que são necessários para viagens interestelares. Os livros de Fundação não menciona isso, porém em Duna já sabemos que eles existem. Além disso, há na série uma ênfase em genética que nos livros não existe. Mas onde vemos bastante isso? Adivinhou, em Duna.
Nas sequências de Duna, somos apresentados aos Bene Tleilax que são especializados em modificação genética (os livros nunca usam a palavra “engenharia”, apesar de ser isso que eles fazem). Eles criam gholas, que são basicamente clones. Já na adaptação de Fundação somos apresentados à “dinastia genética” do imperador Cleon, que é composta por um triunvirato de clones de si mesmo em fases diferentes da vida.
O termo “dinastia genética” nunca é proferida em nenhuma das séries de livros de ficção científica, porém é algo que não seria estranho no universo de Duna, visto a importância que os livros dão à genética. Os Kwisatz Haderach, por exemplo, são o que são por causa de seus genes moldados por milhares de anos no programa de procriação das Bene Gesserit.
Conclusão
Fundação é interessante por ser a primeira história a ousar expandir o que temos de organização imperial para uma galáxia inteira. Asimov cria um conceito muito interessante com a psico-história e a utiliza para criar situações e conflitos envolventes que nos prendem nas páginas dos livros. Em geral, eu acho Asimov positivo, pois apesar de existir sempre um perigo iminente, sempre há uma saída, as crises são sempre contornáveis e a maior consequência seria um longo período de trevas. Não dá para dizer o mesmo de Duna.
Minha interpretação pessoal de Duna é que se trata de uma distopia com pretensões utópicas. Já era uma espécie de distopia por mostrar uma desigualdade brutal no primeiro livro, onde os Harkonnen caçam os fremen por esporte e o imperador faz o que quer, até mesmo erradicando casas inteiras que o desagradam (o que acontece aos Atreides). Porém, é uma distopia também de forma mais profunda.
Distopia se conceitua como uma sociedade imaginária caracterizada por condições de vida opressivas, frequentemente totalitárias, onde a liberdade e a felicidade são suprimidas. Logo após o primeiro livro de Duna, o império se torna exatamente isso nas mãos dos Atreides. A humanidade se torna prisioneira da visão dos Kwisatz Haderach, de fato Paul torna Arrakis um paraíso, mas a liberdade em si não existe quando todos estão presos em sua visão. Os fremen espalham guerra e intolerância religiosa por toda parte e o mundo se torna um lugar mais sombrio. Como o próprio Paul diz em Messias de Duna: “Eu trouxe as trevas”.
E porque eu disse que essa distopia se propõe a ser uma utopia? Porque descobrimos nas sequências (mais especificamente Filhos de Duna e Imperador-Deus de Duna) que o plano final do Kwisatz Haderach nada mais é do que educar a humanidade para que ela nunca mais siga cegamente mais ninguém. Seja um líder carismático humano presciente ou caia novamente na armadilha de “entregar a razão às máquinas”.
Ora, só essa pretensão já configura uma ideia utópica, extremamente idealista. O que constatamos no estudo da história é que problemas sociais e conflitos escalantes decorrentes deles ou de outras razões surgem sempre, por mais que tenhamos exemplos que nos ensinam o que não fazer. Paul e o Imperador Deus querem ensinar uma lição que fique “gravada nos ossos” da humanidade.
Como eles ensinam essa lição? Sendo eles próprios exemplos negativos para toda a humanidade. Eles pretendem libertar o povo a longo prazo através da opressão. Segundo eles, a humanidade passou muito tempo acomodada na estrutura que se formou após o Jihad Butleriano e isso teria que mudar ou as consequências seriam catastróficas. Eles usam a expressão “tronco chave”, pois através da tirania, eles impeliriam tal mudança. A meu ver, é uma ideia extremamente fantasiosa e a realização disso por si só já seria utópica. Porém não digo isso de forma a criticar negativamente o Herbert, pois é justamente essa ideia ousada, que eu raramente vejo algum autor tendo coragem de trabalhar, pois isso é justamente o que o Asimov chamaria de “tema sociológico difícil.”
Porém, ao contrário do Asimov, Herbert é bem mais pessimista. Apesar de alguns livros terminarem com uma nota de esperança para o futuro, o que vem adiante fica sempre cada vez pior. No quinto e sexto livros, Hereges e Herdeiras, todo o universo passa por dificuldades nunca enfrentadas antes e a humanidade parece que pode mesmo ficar à beira da extinção, apesar de todos os esforços do Kwisatz Haderach.
Esses assuntos podem ser melhor discutidos em outra oportunidade, mas aqui deixo meu veredito final sobre essa questão. Apesar de toda a semelhança entre as séries, no pior cenário de Fundação, a humanidade ainda existe para contar a história. Já em Duna, a ameaça seria a extinção, portanto creio que a principal diferença entre as duas esteja no tom em que abordam as histórias. Eu acredito também que nos dois últimos livros de Duna as semelhanças com Fundação se aprofundam ainda mais e os leitores provavelmente reclamariam do excesso de spoilers, então essa é uma discussão que fica para outra oportunidade.
Review | Dune: Awakening tem boa história soterrada em grinding excessivo
Dune Awakening é o novo jogo de ação e sobrevivência multiplayer da Funcom baseado no universo da popular série de livros de ficção científica escritos por Frank Herbert, Duna. Fazer algo baseado nesse universo nunca é uma tarefa fácil, muito foi escrito sobre a dificuldade de adaptar Duna, tanto pro cinema quanto para os videogames, o desafio é aparente na hora de adaptar uma série tão complexa.
Porém, os desenvolvedores sem dúvida conseguiram tirar algum proveito de tal tarefa monumental. Os desenvolvedores nos colocam em um cenário inédito mesmo para os fãs mais ferrenhos de Duna, incluindo este que vos escreve. O jogo ousa perguntar: E se Lady Jessica tivesse uma filha assim como a irmandade das Bene Gesserit a ordenou originalmente e não tivéssemos o Kwisatz Haderach naquele momento do primeiro livro e jamais surgisse um Muad’Dib?
https://www.youtube.com/watch?v=ztdVjiRpYfo&ab_channel=Funcom
Encontre os Fremen
Logo no começo após a criação de personagem, a Reverenda Madre Helen Mohiam Gaius nos transporta para Arrakis com a seguinte ordem: “Encontre os Fremen!”. É assim que sua jornada começa no planeta desértico de Arrakis, o mais importante para a economia do Imperium por sua preciosa especiaria e também o ppaneta mais perigoso desse universo.
Trata-se de um jogo de exploração e sohrevivência onde Arrakis é seu sandbox. O início do jogo pode ser monótono para alguns jogadores pois a primeira parte trata mais de coleta de materiais para criar itens e construções e isso consome quase as 10 primeiras horas de gameplay até termos todo o equipamento necessário para iniciar a jornada de fato. Aqui já vai uma crítica a esse design de gameplay que espanta jogadores mais casuais, onde o jogo fica parecendo quase um trabalho. Porém para um nicho específico de jogadores, ax tarefas oferecidas no jogo podem ser mais gratificantes do que frustrantes.
Assim como nos livros e filmes da série, a água é o recurso mais vital e escasso. Você a obtém coletando orvalho de plantas, extraindo sangue de inimigos mortos usando um coletor de sangue ou reciclando fluidos corporais com os trajestiladores. Negligenciar a hidratação leva à morte rápida sob o sol escaldante de Arrakis. Ficar diretamente sob o sol drena a água rapidamente, além de causar insolação, diminuindo sua vida. Isso força o jogador a planejar rotas entre sombras, como penhascos ou destroços. Outras ameaças ambientais incluem as tempestades de areia que matam em segundos se você não encontrar abrigo. Os vermes de areia detectam movimentos rítmicos no deserto aberto. Cruzar áreas expostas exige veículos, como as motos de areia ou técnicas de furtividade, sob risco de perder todos os itens ao ser devorado. Para evitar o verme é necessário seguir para áreas seguras, como formações rochosas.
Esquemas para equipamentos fremen (como trajes de água) exigem exploração de cavernas; escudos Holtzman vêm de naves científicas abandonadas. Além da moto de areia, há ornitópteros que dão acesso a novas áreas perto do final do jogo, mas exigem quantidades absurdas de metais processados para construção. Esse sistema de construção permite construir fortalezas em zonas seguras, onde há formações rochosas, mas a limitação de espaço e problemas no encaixe de peças podem ser bem frustrantes.
O combate é o calcanhar de Aquiles do jogo, pois nem sempre é uma experiência satisfatória. O jogo respeita o lore dos livros e inimigos com escudos Holtzman são imunes a projéteis rápidos e ataques corpo a corpo convencionais. Para vencê-los, é preciso fazer certas coisas: O primeiro dos métodos é tirado diretamente das obras do Herbert, os ataques lentos de facas ou espadas para penetrá-los e o outro é atravessá-los com tiros concentrados.
Alguns problemas que surgem incluem a repetitividade. Combates contra inimigos blindados tornam-se monótonos, com padrões previsíveis como espere, desfira um ataque lento, repita novamente. A IA dos inimigos é bem limitada, eles tem reações básicas e possuem pouca variedade visual.
Outra coisa que pode irritar são alguns bugs como o Parry não responsivo, armas que travam e animações rígidas.
Algumas exceções positivas em relação ao combate são as habilidades de classe, que incluem a das Bene Gesserit que podem fazer uma espécie de controle mental usando a Voz e os Mentat, que utilizam granadas antigravidade, adicionando uma camada estratégica ao combate, mas mesmo assim não compensam os problemas citados anteriormente. Outras classes disponíveis no jogo são os soldados, cuja habilidade inicial é um gancho que ajuda a alcançar certas áreas e o planetologista que possui mais habilidades que ajudam na sobrevivência.
O jogo possui um conflito entre tecnologia e performance. Em questões visuais, o cenário é sem dúvidas belo, a iluminação é dinâmica, tempestades de areia são viscerais e o rugido dos vermes criam imersão. Texturas são detalhadas em 4K, mas modelos de personagens são genéricos. podem ocorrer bugs de animação, crashes e quedas de FPS, mesmo em hardwares mais robustos.
Um mundo sem Muad’Dib
É possível diser que a história é o aspecto mais interessante desse jogo, que reinventa o universo de Frank Herbert ao transplantá-lo para um MMO de sobrevivência, mesclando a rica mitologia da saga com uma narrativa alternativa completamente nova, repleta de intrigas políticas, dilemas éticos e reviravoltas épicas, elementos pelos quais a série de livros é conhecida.
O "E Se?" redefine o universo. A história parte de uma premissa ousada: Paul Atreides nunca nasceu. Em seu lugar, Lady Jessica deu à luz Ariste Atreides, uma filha, assim como as Bene Gesserit haviam originalmente ordenado. Essa mudança na narrariva original desencadeia um efeito borboleta.
A casa Atreides sobrevive e a traição do Dr. Yueh é descoberta e frustrada pelas Bene Gesserit, evitando o assassinato do Duque Leto. O cerco a Arrakeen é resistido, e as Casas Atreides e Harkonnen entram em uma Guerra de Assassinos sob supervisão do Imperador Shaddam IV.
Os nativos de Arrakis, os Fremen do deserto são dados como extintos, e seu paradeiro torna-se o mistério central. O protagonista é uma espécie de agente secreto, recrutado pela Bene Gesserit, sob as ordens da Reverenda Madre Helen Mohiam Gaius, com a missão de "Encontrar os Fremen e despertar o Adormecido". Essa abordagem permite liberdade criativa sem desrespeitar o cânone, reintroduzindo personagens icônicos como Feyd Rautha em novos contextos .
A narrativa explora três camadas interconectadas. A Guerra política, inde conflito entre Atreides (honra) e Harkonnen (opressão) serve como pano de fundo. Sardaukar atuam como "fiscais da especiaria", enquanto guildas de jogadores influenciam a Landsraad com decisões que afetam o mundo. A sobrevivência, onde a gestão de água (extraída até de cadáveres via coletor de sangue) e os perigos do deserto (vermes, radiação) refletem temas herbertianos de escassez e adaptação. A Espiritualidade e vício, onde o consumo de especiaria não só concede habilidades especiais, mas também causa dependência, vinculando progressão de jogo à degeneração física e moral.
O protagonista é maleável: Sua origem (escolhida na criação) afeta diálogos e missões. Um peone (camponês) pode ser desprezado pelos Harkonnen, enquanto um nobre ganha vantagens diplomáticas. Figuras icônicas da saga como Lady Jessica, Barão Vladimir Harkonnen e o Naib Fremen, Stilgar, aparecem em contextos revisados, mas com profundidade variável.
O novo personagem, Maxim Kazmir destaca-se como vilão carismático e sarcástico. Infelizmente, a maioria dos personagens secundários é pouco desenvolvida, servindo como meros entregadores de missões .
Outra coisa que podd ser bastante frustrante é que para chegar nessas partes mais interessantes na narrativa, o jogador deve ter paciência com as primeiras 20 horas que focam em sobrevivência básica, com poucos elementos narrativos além de logs de áudio e hologramas em dungeons repetitivas. Após 40 horas, ao construir o primeiro ornitóptero, a trama ganha escala: cutscenes introduzem conspirações, e escolhas de facção impactam as missões.
Assim, o jogo tem um grande problema de ritmo. A necessidade de fazer muito grind (coleta de recursos para avançar na trama) quebra o ritmo da história. Missões como uma que inclui uma sequência de furtividade contra Sardaukar é bem deslocada. Isso tudo afeta a história que se diluída em menos horas de grind seria uma experiência melhor.
Um dos melhores acertos do jogo está em seu sucesso entre manter a fidelidade enquanto constrói uma narrativa original, lembrando alguns outros jogos que saíram recentemente com uma proposta parecida, como Hogwarts Legacy. O teste com o Gom Jabbar recria a clássica cena dos livros para estabelecer um tom filosófico. Termos como Kwisatz Haderach e Bene Gesserit são integrados organicamente, sem exposição forçada.
Porém tais elementos possuem suas controvérsias, como lore inacessível para jogadores não familiarizados com Duna, que podem se perder em referências como “Caminho Dourado” ou “Arrakis Prime”. O final é anticlimático. A revelação sobre os Fremen é apressada, e os 6 desfechos possíveis diferem mais em recompensas do que em consequências dramáticas.
Mais algumas críticas ao jogo incluem alguns temas subutilizads como a ética da escravidão e o trauma da especiaria que poderiam ser mais explorados. A experiência narrativa é mais rica jogando em grupo, já que jogadores solo perdem subtramas políticas ativadas por guildas. Decisões como aliar-se a Harkonnen alteram missões, mas não o rumo da trama principal.
Conclusão e veredito
Dune: Awakening é um jogo ambicioso, que faz uma bonita homenagem ao universo de Frank Herbert enquanto traz seu toque de inovação a ele. Sua premissa alternativa e integração de mecânicas de sobrevivência com temas clássicos (água, poder, vício) são brilhantes, mas a execução peca pela fragmentação e subdesenvolvimento de personagens.
Entre seus pontos fortes estão uma atmosfera imersiva, semelhante aos filmes mais recentes, dirigidos por Denis Villeneuve e uma premissa interessante que respeita o cânone sem se aprisionar a ele. A temática de sobrevivência é bem utilizada, a progressão de crafting pode ser viciante e a fidelidade ao universo de Duna.
Porém, o combate é repetitivo, a IA é deficiente, o grind é excessivo para veículos, o PvP é desbalanceado.O ritmo narrativo é quebrado e essas horas de grind fazem com que o jogo pareça mais um trabalho.O jogo é sem dúvidas recomendado para fãs de Duna, que acharão a história alternativa interessante e jogadores já acostumados ao gênero survival que tolerem tanto jank técnico. Quem busca ação polida ou narrativa mais profunda pode se frustrar. Com atualizações, tem potencial para evoluir como Conan Exiles. Dune: Awakening transforma Arrakis em um playground perigoso e belo, mas exige paciência para suportar suas areias movediças.
Review realizada com cópia gentilmente cedida pela distribuidora.
Review | The Alters é uma odisséia existencial no espaço que vale o seu tempo
O jogo The Alters de 11 bit studios nos instiga a perguntar “e se nossa vida em diferentes momentos fosse um pouco diferente? Que rumo minha vida tomaria?”. Este é um dos jogos mais ousados deste ano, sem dúvidas, mas será que o jogo faz mesmo jus a tal proposta?
https://www.youtube.com/watch?v=965Km7t6KwM&ab_channel=11bitstudios
Ambiente Insalubre
Em The Alters, o protagonista, Jan Dolski está em uma missão em um planeta distante e hostil, onde o resto de seus companheiros foram mortos ao chegar no local. Jan precisará de todos os recursos que puder achar no local e administrá-los de forma a suprir das melhores maneiras o que cada objetivo pede. Assim, trata-se de um jogo de construção e sobrevivência.
Os materiais ficam espalhados pelo mapa, existem alguns recursos que ficam na superficie, prontos para serem colhidos e outros que ficam no subterrâneo. O jogador precisará desses recursos para fazer ferramentas, e ampliar a base. O mais adequado seria completar as tarefas que o jogo coloca antes de o sol nascer. Jan se cansa depois de um tempo, o que faz as tarefas demorarem mais e o leva a exaustão, onde ele se recusa a trabalhar e deve retornar para a base para descansar. A luz solar é letal, forçando exploração apenas em períodos seguros. Dormir mais restaura energia, mas reduz o tempo para tarefas críticas .
Assim, trata-se de uma corrida contra o tempo entre o cumprir da missão e a própria sobrevivência de Jan Dolski. Distorções espaço-temporais, rochas flutuantes e radiação exigem ferramentas como *scanners* e detectores para serem evitadas. Erros resultam em morte instantânea. No entanto, Jan não estará sozinho nessa difícil empreitada.
A inovação mais marcante é a criação de "Alters", versões alternativas de Jan geradas via *Rapidium*, um mineral que permite materializar realidades paralelas baseadas em escolhas passadas do protagonista . Cada um dos alters criados por Jan a partir de suas memórias modificadas possui uma especificação diferente. Temos um técnico, um cientista, um operador, um médico, etc. O jogador pode designar esses alters em diferentes funções na barra de alters. Designá-los corretamente pode seer a chave para a sobrevivência e sucesso na missão.
Cada Alter tem personalidade, traumas e necessidades. Negligenciar sua saúde mental pode levar a revoltas, suicídios ou até "Altercídio" (assassinato em massa seguido de suicídio) . Presentes, conversas (com opções de diálogo estilo RPG) e atividades como beer pong afetam o humor deles. Um Alter viciado em opioides pode sabotar a base; outro, deprimido por saudades da ex-esposa, exige atenção constante .
A superfície do planeta é um sandbox desolado, com depósitos marcados por nuvens coloridas (vermelho = metais, azul = orgânicos). Postos avançados de mineração exigem conexão via pylons (como em *Death Stranding*) para transportar materiais. O centro de operações é uma roda gigante com salas customizáveis (laboratórios, cozinhas, áreas sociais). A navegação interna alterna entre visão lateral (estilo Fallout Shelter) e 3D, com elevadores ligando os módulos .
Decidir entre construir um detector de anomalias (para exploração segura) ou uma sala de lazer (para moral dos Alters) cria dilemas permanentes.
O jogo divide-se em Prólogo, Ato 1, 2 e 3, com interlúdios entre eles. Cada ato redefine objetivos e introduz novos sistemas. No Ato 1, o foco é coletar metais; no Ato 2, suprimir radiação com filtros avançados. Um contador inicial ("30 dias até o nascer do sol") foi substituído por alertas como "O Sol está distante", reduzindo ansiedade desnecessária e permitindo exploração tática. Existem seis desfechos possíveis, determinados por escolhas no "ponto de virada", quantidade de Rapidium coletado e relações com os Alters.
Uma Odisséia Existencial
The Alters lembra algumas aventuras de naufrágio espacial como o filme “Perdido em Marte”, porém possui também uma premissa muito interessante do ponto de vista filosófico e ético. Durante o jogo, Jan para sobreviver cria clones de si mesmo utilizando o material “Rapidium”, principal razão da humanida se lançar nesse tipo de expedição espacial no universo do jogo, esse recurso permite criar cópias da matéria orgânica. A clonagem é um dos temas principais do jogo, aparecendo desde a tela de carregamento, onde uma ovelha é mostrada e a primeira criatura a ser clonada no jogo é também uma ovelha. Ambas referências a ovelha Dolly, primeiro animal a ser clonado com sucesso.
Assim sendo, The Alters é uma exploração profunda das consequências de nossas escolhas, materializada em uma narrativa sci-fi que desafia noções de identidade, arrependimento e destino. Jan Dolski, um trabalhador comum em uma missão de mineração espacial, torna-se o único sobrevivente de um acidente em um planeta hostil, onde o nascer do sol é mortal. Para operar uma base móvel gigante e escapar, ele usa Rapidium, um mineral alienígena, para criar "Alters": versões alternativas de si mesmo, originadas de decisões cruciais que jamais tomou em sua vida. Cada Alter personifica um caminho não trilhado: o cientista ambicioso, o técnico confrontador, o botânico emotivo ou o minerador viciado em opioides.
Os Alters não são meros ajudantes; são **projeções de arrependimentos** de Jan. Suas existências forçam o protagonista a confrontar falhas passadas. Por exemplo, o Alter Técnico surgiu quando Jan optou por enfrentar seu pai abusivo, ao contrário do Jan original, que fugiu. Isso o tornou assertivo, mas também amargo. O Alter Botânico manteve seu casamento, ao contrário de Jan, que priorizou o trabalho. Sua presença evoca culpa e nostalgia, especialmente quando ele interage com a ex-esposa de Jan. Além disso, os Alters descobrem que suas memórias são simulações quânticas, não experiências reais. Isso gera questionamentos angustiantes: "Se minhas dores são fabricadas, sou menos humano?”.
Criar Alters é um ato de desespero, mas também de exploração. Jan os trata como ferramentas inicialmente, levantando questões sobre autonomia e consentimento.
O jogo toca também no paradoxo do livre arbítrio. Se nossas escolhas nos definem, os Alters, seres criados de decisões simuladas, têm alma? O jogo explora isso quando um Alter pergunta: "Quando voltarmos à Terra, qual de nós sobreviverá?". Jan não busca apenas sobreviver; quer redenção. Reencontrar sua ex-esposa através do Alter Botânico é uma chance simbólica de corrigir erros do passado.
O principal vilão do jogo é a Ally Corp, a corporação por trás da missão age como um vilão oculto. Suas mensagens corrompidas e ordens ambíguas sugerem que o acidente pode ter sido intencional para tornar o Jan a primeira experiência com Alters humanos. Além disso, conflitos internos surgem quando personalidades colidem. O Alter Cientista, pragmático e ambicioso, frequentemente sabota decisões emocionais de Jan, enquanto o Alter Guarda esconde inseguranças sob arrogância.
Quanto a performance, Alex Jordan dá voz a todos os Jans, variando sotaques e emoções. O Alter Técnico tem tom áspero; o Botânico, suavidade melancólica. O ator demonstra bastante habilidade ao deixar uma marca única em cada um dos Alters modificados.
Coletar Rapidium não é só mecânica de survival; é buscar "respostas" para perguntas existenciais. Com até 12 Alters possíveis (não todos em uma campanha), histórias podem parecer desconexas. Cenas filosóficas às vezes colidem com situações absurdas, como um Alter lendo *Moby Dick* durante uma crise.
Conclusão
Apesar de ser um ótimo jogo de exploração e sobrevivência, gerar energia, gerenciar alimentação, saúde mental dos Alters, e evitar o sol pode sobrecarregar jogadores casuais. Ciclos de mineração/construção podem tornar-se mecânicos se as narrativas emergentes não forem suficientemente dinâmicas.Transições entre visão 3D (exterior) e 2.5D (base) causam rigidez nas animações e navegação interna.
The Alters* é um jogo digno de admiração. Transformar perguntas como *"Quem eu seria se...?" em sistemas de jogo funcionais é seu trunfo maior. A gestão de Alters adiciona profundidade emocional rara em jogos de sobrevivência, enquanto a estrutura em atos mantém a progressão fresca. No entanto, a densidade de mecânicas pode alienar parte do público, e o sucesso dependerá do equilíbrio entre complexidade narrativa e fluidez jogável.
Assim, o jogo é recomendado para quem gosta de jogos de mineração e sobrevivência e para quem gosta de uma boa narrativa no gênero de ficção científica.
Agradecemos a 11bit Studios pela cópia gentilmente cedida para a realização desta análise.
Review | Doom: The Dark Ages reinventa a icônica fórmula da série
Doom é uma das franquias mais tradicionais dos videogames, sendo um dos primeiros do gênero FPS (tiro em primeira pessoa) já lançados. Arrisco dizer também que é uma série que raramente decepciona, com seus jogos sendo geralmente bem divertidos para quem curte o gênero.
Doom de 2016 reinventou a fórmula da franquia fazendo com que a ação fosse ainda mais frenética, praticamente sem pausas, Doom Eternal continuou esse legado em 2018 e agora a esperada sequência (que na verdade é uma prequel), Doom: The Dark Ages mostra a que veio.
https://www.youtube.com/watch?v=S7IEg0_qNXs&ab_channel=BethesdaSoftworks
Uma nova era
Doom sempre foi sobre se movimentar ao máximo evitando os ataques das hordas de demônios enquanto atira para diminuir o número de inimigos o quanto for possível, caso contrário, o jogador se verá cercado por eles rapidamente. Resumindo, Doom é sobre movimento ininterrupto e isso foi ressaltado ainda mais no Doom de 2016. O novo jogo da série Doom implementou mudanças que prometem ser tão significativas quanto aquelas do jogo de 2016.
Uma das primeiras coisas que o jogador deve perceber assim que começa a jogar é que o cenário está muito maior e as hordas de inimigos mais numerosas, e isso impacta em como será a utilização desse espaço durante o combate. O foco ainda fica no movimento e em ataques constantes, porém existem novas mecânicas que fazem ele ser ainda mais dinâmico. Agora o Doom Slayer possui em seu arsenal um escudo, o shield saw.
Com o escudo, possuímos algumas ações extras que fazem o combate nesse novo jogo ser mais tático. Você pode se defender de ataques e enquanto se defende, fazer um avanço em direção ao inimigo, pode arremessá-lo em alguns inimigos, quebrando seus escudos, armaduras ou os paralisando e ainda pode realizar um aparo (parry).
A mecânica de parry (com ataques marcados em vermelho e verde) exige precisão e paciência, afastando-se da velocidade alucinante de DOOM Eternal. Apesar de viciante, o sistema se apoia em padrões repetitivos: superaquecer escudos inimigos com armas de fogo e detoná-los com o Shield Saw torna-se cansativo após horas de jogo.
O arsenal mescla medievalismo e tecnologia com criatividade: a Skull Crusher (que dispara fragmentos ósseos) e a Reaver Chainshot (bola de ferro acorrentada) são estrelas, enquanto clássicos como a Super Shotgun ganham funções secundárias. As animações de execução, porém, decepcionam pela falta de variedade em comparação a títulos anteriores.
Os níveis do tipo sandbox (como The Siege) são um sopro de ar fresco, permitindo explorar masmorras, coletar upgrades e enfrentar chefes em ordem não-linear. O uso do Shield Saw para resolver quebra-cabeças (ativar máquinas ou alcançar áreas secretas) é inteligente, mas a progressão é prejudicada por fases aéreas com o Dragão Cibernético, cuja jogabilidade lembra títulos ultrapassados da era Xbox 360.
Pilotar o Atlan Mech (um mecha de 30 andares) contra titãs demoníacos é épico, com golpes sísmicos e destruição em massa. No entanto, a mecânica de esquiva em batalhas aéreas carece de feedback claro, tornando confrontos como o contra naves infernais as vezes mais frustrantes que desafiadores.
O sistema de upgrades (desbloqueados com ouro coletado) é intuitivo e recompensador, permitindo customizar armas para estilos variados. A inclusão de seis níveis de dificuldade (do casual Aspiring Slayer ao brutal Ultra Nightmare) democratiza o acesso sem sacrificar o desafio tradicional.
A engine idTech 8 entrega gráficos impecáveis: destruição ambiental em tempo real, iluminação com ray tracing e sangue pixelizado (homenageando os clássicos). Mesmo em cenas caóticas, o jogo mantém 60 FPS estáveis em consoles e uma ótima performance mesmo em PCs de configuração intermediária, um feito técnico digno de nota.
As Origens do caçador de Demônios
DOOM: The Dark Ages surge como uma ousada reimaginação das origens do icônico Doom Slayer, mergulhando em uma narrativa que combina fantasia sombria, guerra cósmica e temas de libertação. Ambientado em um universo "tecnomedieval" — uma fusão de arquitetura gótica, simbologia ancestral e tecnologia alienígena —, o jogo funciona como um prequel direto de DOOM (2016), explorando os eventos que transformaram um guerreiro mortal em uma lenda capaz de aterrorizar até mesmo o Inferno.
A trama começa com o protagonista aprisionado por uma seita de "deuses tecnomágicos", descritos como "católicos espaciais" que habitam uma estrutura metálica flutuante. Escravizado como uma "superarma viva", o Slayer é enviado a planetas infestados de demônios para conter invasões, enquanto seus mestres temem seu poder crescente. Conforme a história avança, o jogador testemunha não apenas sua luta contra as hordas infernais, mas também sua rebelião contra os próprios opressores, em uma jornada que oscila entre a obediência forçada e a fúria descontrolada.
Os temas centrais giram em torno de liberdade versus controle e a origem da ira implacável do protagonista. Através de flashbacks e cutscenes cinematográficas, descobrimos eventos traumáticos em seu passado, incluindo traições e massacres em Argent D'Nur, seu planeta natal, conectado à mitologia dos Night Sentinels, introduzida em DOOM Eternal. A violência excessiva, marca registrada da série, ganha aqui uma justificativa narrativa: cada golpe brutal é tanto uma vingança quanto uma afirmação de autonomia.
O universo da franquia é expandido com novas dimensões e facções. Além do Inferno tradicional, o Slayer enfrenta ameaças em reinos como o Cosmic Realm, uma dimensão lovecraftiana com geometrias impossíveis e criaturas psíquicas e cidades medievais sob cerco, onde líderes corruptos e demônios se aliam para manter seu domínio. A guerra sagrada adquire camadas políticas e morais, questionando quem é o verdadeiro vilão: as hordas demoníacas ou aqueles que manipulam o caos para poder.
Visualmente, a narrativa se apoia em um visual bem marcante, inspirado em blockbusters como Senhor dos Anéis e O Cavaleiro das Trevas. Castelos arruinados, catedrais profanadas e florestas amaldiçoadas não são meros cenários, mas ferramentas narrativas. Destruir barreiras com o escudo-serpente (Shield Saw) ou resolver quebra-cabeças em masmorras revela segredos da trama, integrando gameplay e storytelling de forma orgânica.
Entre os antagonistas, destacam-se demônios reimaginados (como um Cacodemon transformado em dragão alado) e chefes cósmicos como o Cosmic Baron, cujos tentáculos desafiam as leis da física. No entanto, os vilões mais intrigantes são os líderes da cabala que escravizam o Slayer — figuras moralmente ambíguas que refletem o preço do poder absoluto.
DOOM: The Dark Ages não se contenta em ser uma simples prévia das origens do herói. É uma epopeia sobre resistência e identidade, que humaniza (ainda que paradoxalmente) um personagem conhecido por sua violência desmedida. Ao equilibrar ação desenfreada com uma mitologia densa, o jogo promete saciar tanto fãs ávidos por lore quanto jogadores em busca de carnificina criativa. Resta saber se, ao final da jornada, o Slayer será lembrado como salvador, monstro ou algo além da compreensão mortal.
Conclusão
DOOM: The Dark Ages é uma aposta corajosa que nem sempre acerta o alvo. O combate estratégico e a exploração sandbox agregam profundidade, mas a dependência excessiva do Shield Saw e seções de veículos mal lapidadas podem quebrar o ritmo para alguns jogadores. Ainda assim, é uma experiência válida para quem busca algo novo na franquia ou mesmo para aqueles que buscam um bom jogo de tiro.
Agradecemos a Bethesda pela cópia generosamente cedida para a realização desta análise.
Review | Clair Obscur: Expedition 33 é mesmo o melhor game do ano (até agora)
Quando se trata de games e você testa muitos deles ao longo do tempo , infelizmente existe a impressão que muitos deles não saem muito do mais do mesmo, com visuais não muito inspirados, mecânicas de gameplay batidas e histórias não muito envolventes. Porém , de vez em quando, temos a sorte de ter um jogo que quebra completamente essa impressão, se destacando enormemente nesse imenso turbilhão de lançamentos. Este ano, para mim, o jogo que fez isso sem dúvidas é Clair Obscur: Expedition 33.
https://www.youtube.com/watch?v=wWGIakhqr5g&ab_channel=IGN
Retomando o mundo
Para começar, quero falar sobre a jogabilidade e vou me ater ao que encontramos no ato 1 do jogo. Ela é única não por ser original, mas por sua execução. No entanto, eu tenho que dar uma breve sinopse da história antes. Você controla um grupo de expedicionários da cidade de Lumiére que tenta retomar o mundo da artífice que todo ano reduz um pouco mais a expectativa de vida dos seres humanos. Ela grava em um monolito o número 33, significando que toda humanidade pode viver apenas até os 33 anos antes de desaparecer, tornando-se belas pétalas de flores.
Logo no início, ainda na cidade de Lumiére, temos um pequeno tutorial de como funciona a mecânica de combate. Quem jogou RPGs de turno antes, especialmente os japoneses (os Final Fantasy antigos, Dragon Quest, Persona, etc.) Vai reconhecer alguns dos fundamentos do jogo, em que você seleciona as ações para o personagem executar. Porém, existem elementos neste que deixam o combate muito mais dinâmico que nos RPGs comuns.
Aqui o personagem não toma dano passivamente como em outros RPGs, você pode esquivar ou aparar e é interessante como esses movimentos funcionam. Na esquiva, seu personagem fica ileso dos ataques e possui uma janela de tempo de reação maior do que o aparo. O aparo, quando executado corretamente desencadeia um contra ataque poderoso e é sempre muito satisfatório assistir a todas essas animações.
Sobre essa mecânica, eu percebi que além de ser um RPG de combate, temos também um jogo de ritmo aqui. Cada inimigo possui um moveset diferente para ser aprendido e a janela de reação do defletir é tão pequena que não é uma tarefa fácil de ser executada, então existe uma curva de aprendizado aqui que pode ser bem desafiadora. O jogo também não decepciona em questão de variedade de inimigos, possuindo diversos cenários e cada um com monstros diferentes (que aqui são chamados de nephrons, criações da Artífice).
Aliás, falando em curva de aprendizado, o jogo pode ser um pouco desafiador no início até mesmo para entender como customizar os personagens. Para aprimorá-los, existem pontos de atributos e uma árvore de habilidades como na maioria dos RPGs, mas aqui também existem Pictos e Luminas para equipar. Pictos pode ser comparável a acessórios em outros jogos que melhoram seu atributo, concedendo mais ataque, defesa, vitalidade ou sorte. Existem também as Luminas que também podem ser equipadas e concedem habilidades especiais, mas algumas tem um preço.
Normalmente para o personagem ganhar um ponto de habilidade (PA), um ataque deve ser feito, mas devido às Luminas ou Pictos que você equipa, isso pode mudar um pouco. Existe por exemplo uma Lumina chamada “masoquista” em que seu PA só aumenta se você tomar dano. Existe outra chamada “confiante” que aumenta sua força, porém você não pode mais curar o personagem, outra chamada “inversão” também aumenta seus atributos porém vai fazer com que a cura seja convertida em dano. Resumindo, Luminas e Pictos mudam a regra do jogo e é interessante fazer novas combinações e descobrir qual fica melhor em cada personagem.
Cada personagem no jogo é único em combate. Nós começamos a história com Gustave, que possui um braço mecânico. A cada golpe que ele acerta, uma carga é adicionada. Algumas habilidades se tornam mais poderosas dependendo do número de cargas que ele acumulou, lançando ataques devastadores.
Lune é do tipo mágico, a arma dela carrega manchas elementais a cada magia elemental que ela lança correspondente ao elemento da magia. Com essas manchas acumuladas, ela pode desferir magias com dano aumentado ou de cura aumentada.
Maelle é uma das personagens que acho mais interessantes no jogo. Ela é do tipo duelista e dependendo da habilidade ou conjunto de habilidades que ela conjura, a postura dela muda. Ao todo são 4 posturas, a neutra chamada “sem postura”, a defensiva que aumenta a defesa e diminui o ataque, a ofensiva que aumenta o ataque, porém diminui a defesa e a versátil que aumenta drasticamente o dano.
Scielle é do tipo clarividente, utiliza cartas e os ataques dela infligem predições. As predições são de dois tipos, lunares e solares. Quando as duas são executadas, a Scielle entra no modo de eclipse e seu dano é aumentado.
Estes são os personagens e mecânicas das quais me lembro encontradas no ato 1 do jogo. Mas posso adiantar que mesmo após 15 horas de gameplay, o jogador não vai se sentir entediado pois sempre há novas mecânicas sendo apresentadas. Como se não bastasse, a história também é bem interessante.
Mundo dividido
No mundo de Clair Obscur: Expedition 33, houve uma fratura no mundo e um pedaço da cidade de Lumiére ficou à deriva no mar, tornando-se uma ilha. Após essa fratura, uma gigante, a Artífice sempre grava um número no seu monólito que diminui a expectativa de vida dos seres humanos. No entanto, os humanos não desistiram e todo ano organizam uma expedição para ir ao continente, tentar derrotar a Artífice e devolver a ordem natural ao mundo.
A história lida com temas profundos como o luto e como aproveitar a vida ao máximo na sua brevidade, e os roteiristas e desenvolvedores aproveitam dele ao máximo. O luto está sempre presente nessa sociedade em que a expectativa de vida sempre está sendo decrescida e cada personagem lida em seu próprio modo com ela. No início do jogo, Gustave está apreensivo, pois é o último dia que ele verá sua namorada, Sophie, que está na idade de passar pelo “gommage”. Neste mundo, há um festival que celebra essa época tão sombria em que se perdem os entes queridos, mas também uma nova expedição é organizada, trazendo uma nova esperança a todos os habitantes. No visual de Lumiére estão claras referências à belle époque francesa.
O tema da brevidade da vida não é o único debatido no jogo. Existe também o da imortalidade. Quando os expedicionários chegam ao continente, eles se encontram com um homem que faz de tudo para que eles não concluam seu objetivo, seu nome é Renoir. Por algum motivo, existem algumas pessoas morando no continente que permanecem vivas e o objetivo de Renoir parece ser de manter sua imortalidade e ele fará qualquer coisa para conseguir. Mas a questão é: Qual o preço para manter isso? Realmente vale a pena?
Enquanto a história principal lida com esses temas, temos também as histórias de cada personagem sendo reveladas nos momentos em que vamos para os acampamentos. Lá é possível falar com cada um dos personagens e obter um pouco da história de cada um. Quando fazemos isso, além de aprendermos um pouco mais sobre eles, eles podem ganhar skins e habilidades novas. Nesse sentido a mecânica lembra um pouco os S. Links da série Persona.
A história de Clair Obscur no que concerne o ato 1 principalmente está envolta em mistério. Por que a Artífice faz o que faz? Qual é exatamente a motivação de Renoir e sua família e a conexão dele com a Artífice?. Além disso, Maelle vive tendo sonhos que envolvem a família de Renoir e eles parecem reconhecê-la, esse é mais outro mistério que ajuda a deixar o jogador sempre querendo progredir para saber mais.
O interessante da história é que ela não é tão previsível, acontecem certas coisas nela que são um tanto inesperadas e o lore do jogo é tão rico que enquanto estiver jogando, fiquei sempre querendo saber mais sobre. Tanto o gameplay quanto a história não entendiam. Algo que infelizmente estava achando em falta em vários jogos dos últimos anos. Clair Obscur é uma jóia entre eles.
O interessante é que não se trata de um AAA, os jogos de alto orçamento e nem de um indie e sim de um AA, um jogo de médio orçamento, onde a equipe de desenvolvedores tinham exatas 33 pessoas (o número é recorrente mesmo na produção dele). Porém os gráficos e as animações são impressionantes e ele passaria fácil por um AAA. É possível notar também a paixão e a dedicação que os desenvolvedores e roteiristas colocaram no jogo pelo capricho que ele tem e isso é bem gratificante.
Conclusão
Clair Obscur: Expedition 33 sem dúvida é um dos melhores RPGs dos últimos anos, em uma década em que muitos do gênero tem se destacado bastante, citando alguns exemplos, Baldur’s Gate 3 e Metaphor: ReFantazio. Creio que Clair Obscur vai entrar em listas de melhores RPGs por muito tempo a partir de agora e sem dúvidas em listas de melhores da década.
Sobre a performance no PC, é verdade que ele pode ser um pouco pesado de rodar para quem tem hardware mais antigo e em questão de bugs, notei alguns bem pequenos, como o personagem ficar preso por um tempo em algumas superfícies, mas isso não atrapalha tanto na experiência. A dificuldade de rodar o game em alguns hardwares e pequenos bugs podem ser considerados os poucos pontos negativos que encontrei, mas ainda assim é um grande jogo.
Agradecemos à desenvolvedora pela cópia gentilmente cedida para a realização desta análise.