Crítica | O Auto da Compadecida 2 é continuação divertida com influência da TV
Quem gostou do primeiro filme, dificilmente irá se incomodar com O Auto da Compadecida 2, que chega agora aos cinemas brasileiros. A fórmula de sucesso é mantida e, de certa forma, revigorada com uma direção de arte caprichada, boas canções e personagens novos que se somam àqueles já queridos do público. Quem, entretanto, incomoda-se com a lógica televisiva da encenação pode se aborrecer um pouco de estar diante de um programa que mais parece especial da Globo para o qual não precisaria pagar um (caro) ingresso de cinema.
Filme retoma o legado iniciado 24 anos atrás
Lançado em 2000, O Auto da Compadecida original era adaptação da obra homônima de Ariano Suassuna. Dirigido por Guel Arraes, o filme misturava comédia e crítica social ao retratar as aventuras de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello), dois nordestinos enfrentando situações cômicas e desafiadoras em uma pequena cidade do sertão brasileiro. A narrativa explorava temas como fé, desigualdade social e moralidade, envolvendo personagens como o bispo, o cangaceiro e a Compadecida do título (Fernanda Montenegro).
A produção foi originalmente concebida como uma minissérie para a TV Globo antes de ser editada e lançada nos cinemas. Este formato contribuiu para seu sucesso, alcançando um público diverso e se consolidando como uma das maiores bilheterias do cinema brasileiro na época. A obra destacava-se pela combinação de elementos do cordel com um humor acessível e universal, ao mesmo tempo em que preservava a crítica social, um traço marcante do texto original de Suassuna.
Além disso, o filme foi elogiado por sua direção criativa e pelas atuações. Matheus Nachtergaele e Selton Mello trouxeram vida aos personagens com carisma, tornando-os ícones da cultura pop nacional.
Continuação acentua sensação de que você já viu algo parecido - e não foi no cinema
Na nova trama, a dupla de simpáticos trapaceiros está às voltas com a complicada relação mídia, política e religiosidade popular: há uma eleição e, inadvertidamente, João Grilo acaba assumindo papel determinante. Enquanto isso, novos personagens como o empresário Arlindo (Eduardo Sterblitch) e Antonio do Amor (Luis Miranda) complicam o enredo com intervenções cômicas realmente divertidas.
A maior limitação da continuação é herdada do primeiro filme; a lógica do espetáculo é bastante “televisiva”. Os diálogos que não têm respiro e se concatenam uns aos outros, sem parar, os cenários teatrais, o tom geral da encenação - nada é muito cinematográfico, lembrando o universo do humor da TV brasileira, que muda de fantasia mas acaba se repetindo na caricatura, na exploração de “tipos”, no regionalismo quase cartunesco. O ritmo não dá um respiro, não há uma só pausa para construir tensão ou expectativa, numa sucessão algo circense em que cada cena tem de gerar uma atração no mesmo nível da anterior. Além disso, a opção pela edição de diálogos e a dublagem acentuam um certo artificialismo do espetáculo como um todo.
O ponto alto do filme está em seu elenco. Mello e Fabiula Nascimento se destacam, mas Natchtergaele (um ator de talento excepcional, capaz de modular seu desempenho dentro de uma mesma cena, variando do emocional ao cômico num piscar de olhos) é o verdadeiro astro do filme. Por sua vez, Miranda e Sterblitch (embora encarnem tipos e não propriamente “personagens”) contribuem para o tom cômico geral, e arrancam risadas autênticas da plateia.
Como um típico produto da indústria audiovisual brasileira (que tenta se firmar como espetáculo de tela grande mas traz uma dívida permanente com a TV e a lógica do espetáculo de estúdio e o teatro de revista), O Auto da Compadecida 2 é uma divertida comédia com ritmo e estética que remetem aos caprichados “especiais” da Globo, mas vale especialmente pela qualidade e carisma do elenco e uma criativa direção de arte.
https://www.youtube.com/watch?v=ke4x5ywVhiw
Crítica | O Senhor dos Anéis: A Guerra dos Rohirrim é ótima animação que presta tributo tímido ao universo de Tolkien
O Senhor dos Anéis: A Guerra dos Rohirrim abre com o célebre tema composto por Howard Shore para a trilogia cinematográfica. Embora o que se verá a seguir seja uma opulenta animação ao estilo oriental, com colorido exuberante e traço inconfundível, o resultado se comunica relativamente pouco com o universo de valores de Tolkien - notadamente, a origem e a essência do Mal e sua relação com a busca pelo poder. O que o desenho animado propõe, por outro lado, é uma abordagem mais corriqueira de temas como valores familiares e vingança, ou seja, aqui temos mais da animação japonesa clássica (que por sua vez remete ao universo dos samurais) do que da abordagem filosófica que tão bem caracteriza a literatura do britânico. Kenji Kamiyama, o responsável pela releitura, é um renomado diretor e roteirista japonês, famoso por seu trabalho em animes que combinam ficção científica e crítica social e especialmente pela bem-sucedida série Ghost in the Shell: Stand Alone Complex, misturando visual sofisticado e detalhista com crítica social.
Universo de Tolkien se firma no imaginário da cultura popular
J.R.R. Tolkien, autor de O Senhor dos Anéis, criou uma das obras literárias mais influentes do século XX. Seu trabalho foi adaptado para o cinema pela primeira vez de forma significativa na trilogia dirigida por Peter Jackson entre 2001 e 2003. Os filmes — A Sociedade do Anel, As Duas Torres e O Retorno do Rei — trouxeram à vida o complicado universo da Terra-média, com cenários deslumbrantes, efeitos visuais inovadores e performances memoráveis de um elenco capitaneado por Ian McKellen, Viggo Mortensen e Elijah Wood. Fiel ao texto original mas sem descuidar de uma linguagem cinematográfica atraente ao público contemporâneo, a trilogia arrecadou bilhões de dólares e venceu 17 Oscars, incluindo o prêmio de Melhor Filme para O Retorno do Rei.
O impacto cultural e comercial dos filmes de O Senhor dos Anéis foi imenso, revigorando o gênero de fantasia no cinema e influenciando produções que viriam. A trilogia também demonstrou a viabilidade de grandes produções filmadas fora de Hollywood, com a Nova Zelândia se tornando um dos principais destinos cinematográficos graças aos esforços de Jackson e sua equipe. Além disso, os filmes geraram uma base de fãs ainda mais ampla para os livros de Tolkien, consolidando seu legado como uma das maiores referências literárias e culturais.
A franquia O Senhor dos Anéis gerou diversos subprodutos que expandiram o universo criado por J.R.R. Tolkien para além dos livros e filmes originais. Entre eles estão os filmes da trilogia O Hobbit, também dirigidos por Peter Jackson, que adaptaram a obra homônima de Tolkien em três partes: Uma Jornada Inesperada, A Desolação de Smaug e A Batalha dos Cinco Exércitos. No campo televisivo, a série O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder, lançada pela Amazon Prime Video em 2022, explorou histórias da Segunda Era da Terra-média, com um alto orçamento que buscou trazer novos detalhes ao universo. Além disso, a franquia inclui vários games, além de jogos de tabuleiro, figuras de ação e outros produtos de colecionador. Esses subprodutos continuam a atrair fãs antigos e novos, mantendo a relevância da obra de Tolkien na cultura popular.
Animação renova franquia mas comunica pouco com o essencial de Tolkien
A história de O Senhor dos Anéis: A Guerra dos Rohirrim acontece 183 anos antes dos eventos narrados na trilogia O Senhor dos Anéis, explorando o período do reinado de Helm Hammerhand, um dos monarcas mais icônicos de Rohan. O enredo aborda os acontecimentos que resultaram na construção do Abismo de Helm, local emblemático tanto na geografia quanto na cronologia da Terra Média. A narrativa explora temas como vingança, honra e superação em tempos de conflito, introduzindo novos personagens, como Héra, filha de Helm, e o antagonista Wulf, líder dos Dunlendings.
Embora a animação contenha drama e ação suficientes para entreter e satisfazer os mais exigentes fãs do formato, os admiradores mais fieis de Tolkien podem sentir falta de uma ligação consistente com o drama abordado na trilogia principal. Enquanto esta apresenta um universo fantástico (compreendendo personagens, criaturas e situações de natureza sobrenatural), aqui o enredo se limita a dramas mais temporais, intrigas românticas e até mesmo políticas que ecoam pouco a abordagem filosófica de Tolkien e sua relação metafórica com acontecimentos do século em que o autor viveu. Nada, contudo, que comprometa o impacto de O Senhor dos Anéis: A Guerra dos Rohirrim como filme propriamente dito, cujas qualidades superam as objeções e fazem valer o ingresso com sobra.
https://www.youtube.com/watch?v=gCUg6Td5fgQ
Crítica | Sting: Aranha Assassina explora a fórmula de criatura contra seres humanos em espaço fechado
Diferente do que talvez leve a crer tanto o trailer, quanto o material de divulgação, Sting - Aranha Assassina não é exatamente um filme sobre “aranhas” - ao menos não no sentido que vimos, por exemplo, no clássico de 1990, Aracnofobia, em que todo o espetáculo é pensado para ativar a fobia do público em relação aos artrópodes assustadores.
“Isto não é uma aranha”, diz um dos personagens em determinado momento, e ele tem razão. A criatura Sting da produção australiana que é ambientada, entretanto, na cidade de Nova York, é muito mais um filme de terror de “monstro” - no caso, algum tipo de espécie alienígena que chega à Terra na aparente queda de material espacial e passa a se desenvolver sem parar enquanto é alimentada por uma garotinha talentosa mas rebelde.
Um filme sobre medo de aranhas em que as aranhas pouco aparecem - eis Sting
A trama é relativamente simples e lança mão de ao menos duas fórmulas ao mesmo tempo: o filme de espaço fechado e o filme de criatura, como se disse. Charlotte (Alyla Browne) é uma pré-adolescente que gosta de desenhar e criar personagens de histórias em quadrinhos, uma imaginação fértil que é aproveitada pelo padrasto, Ethan (Ryan Corr), que tenta suprir a ausência do pai biológico enquanto se equilibra na carreira de desenhista e de zelador do velho prédio onde a família (completada por duas idosas, a mãe de Charlotte e um bebê) vive.
Durante uma nevasca, Charlotte encontra uma pequena aranha que logo adota como bicho de estimação. Ao perceber que a aranha tem um apetite voraz, a garotinha não para de fornecer alimentos (insetos), o que leva a um crescimento inesperado e que terá as consequências previsíveis.
Até que a Sting do título se transforme naquilo que realmente é, o filme não esgota as possibilidades de explorar a aracnofobia que assola ao menos uma parte da audiência (como seria de se esperar em um filme sobre “aranhas assassinas”), preferindo concentrar sua atenção no suspense e nos dramas familiares. Ethan faz o que pode para conquistar a confiança da filha adotiva, mas tem dificuldades em equilibrar a própria carreira e as obrigações como zelador. Além disso, a avó de Charlotte sofre de demência, o que confere ao drama um alívio cômico e também complicações para a o desenrolar do enredo.
Criatura que aprisiona as vítimas lembra outros filmes de sucesso
Algumas soluções escolhidas pelo roteiro funcionam melhor que outras. A construção do suspense é bem trabalhada; a percepção de que se está preso no prédio, no entanto, funciona bem menos (é só um exagero de neve do lado de fora). A partir de determinado ponto, o “filme de aranhas” vira o que realmente é: um filme com criatura que deve mais à ideia original da franquia Aliens, por exemplo: os personagens estão subjugados por uma força natural maior que a deles e não conseguem sair do lugar onde estão. A criatura, por sua vez, aparece sem exageros (talvez na medida certa) e conta com bons efeitos práticos para suas aparições.
Não há nada de exatamente novo em Sting - Aranha Assassina mas, ao mesmo tempo, o filme se sai relativamente bem naquilo que pretende. É inteligente porque sabe que a história que tem em mãos não sustentaria um filme de duas horas, então ele finaliza no momento certo, sem sobras e sem redundâncias em seu clímax. A fotografia trabalha com lucidez a escuridão, o que também contribui para o suspense.
Sting - Aranha Assassina pode não satisfazer quem está procurando um “filme de aranhas” no sentido dos anos 1980 ou 1990, sendo mais um jogo de gato e rato entre humanos e um monstrengo que sobe pelas paredes. Mas diverte sem compromisso e pode render um ou outro susto numa noite chuvosa.
https://www.youtube.com/watch?v=B73g786Izg0
Crítica | Herege é jogo mental impossível de ser vencido
Lançado com o selo A24 de qualidade (Lady Bird: A Hora de Voar, Hereditário, Projeto Flórida, Joias Brutas e tantos outros sucessos de público e crítica) e partindo de uma premissa provocativa, Herege esbarra em suas próprias limitações ao propor um intrincado labirinto que mistura suspense, filosofia, cultura pop, sanguinolência e a habitual confusão física de terceiro ato que se repete no gênero com irritante constância, como se toda história tivesse que necessariamente botar os atores para correr (literalmente).
Na trama, as missionárias Barnes (Sophie Thatcher) e Paxton (Chloe East) chegam à casa do recluso e inicialmente simpático Mr Reed (Hugh Grant). Recebidas com hospitalidade, as duas garotas percebem aos poucos que não só estão trancafiadas, como também terão de participar de algum tipo de jogo macabro, cujas regras são definidas de maneira traiçoeira pelo anfitrião e envolvem reflexões que vão desde religião comparada até a indústria do entretenimento.
Embora valha a pena assistir Herege porque se trata, de fato, de uma premissa que chama atenção, o saldo final é algo confuso, e a simplicidade que tanto encanta no grande cinema passa longe aqui. A impressão é de que seus autores estavam tão interessados em dizer tanta coisa, e montar um quebra-cabeça tão multifacetado, que acabaram perdendo algumas peças e o final resultou numa imagem incompleta, imperfeita.
Roteiro começa com uma aposta alta que se revela um blefe
Se até a metade da projeção, o filme mantém o suspense e coloca suas fichas num jogo de cena elaborado, com diálogos intrigantes e um clima bem construído de tensão, ele se sente depois compelido a achar “respostas” para as perguntas propostas - e é aí que a fórmula começa a falhar. Tais respostas geram inevitavelmente novas perguntas, e o roteiro patina, tem que se autoexplicar e exigir dos personagens uma eloquência que pouco justifica quando estes estão debilitados física e mentalmente, num resultado algo artificial também.
De fato, é muito mais fácil e simples propor um enigma que abre o enredo do que efetivamente fechar esse enredo com conclusões razoáveis que sejam ao mesmo tempo conectadas ao universo de ideias que o filme propôs, como tenham verossimilhança mínima para manter o espectador crente no conflito na tela.
Herege, por sua vez, falha em ambos os desafios porque sobe tão alto que depois não consegue manter o conflito lá em cima (o que começa como um jogo mental de gato e rato inevitavelmente vira uma história mais vulgar de “aparições” e “passagens secretas”), além de precisar de muita “compreensão” do espectador para que este dê crédito ao reloginho suíço que precisa funcionar no roteiro para que todas as inúmeras peças encaixem-se cronometricamente no final.
Hugh Grant é um grande ator mas não precisava deste filme para provar isto
O ator inglês tem que carregar o tabuleiro desse jogo nas costas até o final, que no entanto depende de lances de extraordinária probabilidade para parecem críveis. Thatcher lembra a jovem Anya Taylor-Joy e, junto com East, levam adiante um belo confronto com o vilão, sendo possivelmente o ponto alto do filme.
O desfecho de Herege lembra o de um clássico terror do cinema francês, mas dizer aqui qual filme é certamente revelaria informações em demasia (é um filme de 2008…). Comparado, entretanto, com o outro título (aquele, sim, uma obra-prima, e ao mesmo tempo um conceito muito simples - embora engenhoso, exatamente o tipo de engenho de simplicidade que falta ao roteiro dos também diretores Scott Beck e Bryan Woods). Aliás, talvez seja esta a grande deficiência de Herege: pensado como um jogo, mas cujas regras são tão intrincadas e necessitam de tanta explicação, que é impossível vencer - ou ao menos sentir satisfação real quando ele termina.
https://www.youtube.com/watch?v=O9i2vmFhSSY
Crítica | Wicked é excelente produto de uma Hollywood em permanente renovação
A cada duas gerações pelo menos, uma pergunta assola os amantes do cinema: terá Hollywood a capacidade de se reinventar diante das crescentes mudanças não apenas tecnológicas e de mercado, como também de costumes e das preferências do público? Tem sido assim desde a regulação federal (que obrigou os grandes estúdios a se desfazerem de suas cadeias de exibição, nos anos 1940), passando pelo advento da televisão, do home-vídeo, da internet e - mais recentemente - dos novos formatos e da inteligência artificial. Isso sem contar uma infinidade de “microcrises”, revoluções contraculturais, greves e quedas de faturamento.
A cada nova reviravolta social, o temor de que o cinemão narrativo seja finalmente engolido por renovadas formas de expressão ou simplesmente atropelado, sem deixar de existir (como o rádio), porém ocupando um lugar muito mais particular e diminuindo sua capacidade de exercer influência cultural sobre a sociedade. A crise provocada pelo “isolamento social”, poucos anos atrás, foi o mais recente golpe, atingindo particularmente a exibição em salas de cinema e levantando a dúvida: terá sido este o definitivo?
O que essa discussão toda tem a ver com Wicked, o lançamento da Universal para o Natal de 2024, que por sua vez é baseado num show da Broadway, que por sua vez é baseado num romance de 1995, que por sua vez é baseado no original de L. Frank Braum e no clássico cinematográfico de 1939, O Mágico de Oz? Superficialmente, não muita coisa, mas tem sim se você realmente prestar atenção no filme e no contexto onde ele é apresentado.
Wicked é um bem acabado exemplo de como Hollywood, ou a grande indústria do cinema norte-americano, herdeira direta (embora eventualmente órfã, ou bastarda) dos estúdios da Era de Ouro, não cansa de se reinventar, assimilar as transformações e demandas de uma audiência que, ao mesmo tempo que parece em constante transformação, está também permanentemente disposta a abraçar o encanto da exibição coletiva e da tela grande na sala escura.
Filme de 2024 está distante do original de 1939 nos olhos, mas perto no coração
Existe quase um século de distância entre o filme dirigido por Victor Fleming e que apresentou o universo do embusteiro Oz ao grande público e a versão também musical, lançada agora em 2024. Tal distância não é apenas temporal, mas também representa uma lacuna significativa dentro da História do Cinema em termos de universo imaginário do público - que, hoje, tem demandas com as quais o espectador da década de 1930 sequer sonhava. Entre elas, notadamente, a relevância da “diversidade” em tela e a problemática da “aceitação”, dois temas recorrentes para a audiência contemporânea e que, não raro, acabam sofrendo de excessivo didatismo quando transpostas para os filmes, com resultados bastante irregulares.
Confirmando a hipótese de que a grande indústria consegue se adaptar à transformação do gosto popular, assimilando as preocupações e tensões sociais sem, entretanto, abrir mão de sua essência, Wicked aparece como um produto extremamente equilibrado entre espetáculo e mensagem - quase perfeito, para sermos mais precisos, se levarmos em conta que seu único real descuido é (mais uma vez, porque isso é tendência hoje na maior parte das cinematografias) alongar demais sua duração, quando ele parece ter atingido um ponto ideal, a história está (bem) contada, o clímax emocional foi alcançado, tudo isso uns 20 minutos antes de efetivamente terminar. Terminar? Bem, não exatamente, conforme o espectador verá…
Trama de Wicked consegue ser atual sem soar enfadonha ao mesmo tempo que preserva o encanto do universo original
Um dos maiores acertos de Wicked - o que também o distancia da moralidade algo enfadonha normalmente presente no gênero de fantasia - é subverter as noções de heroísmo e vilania, dotando os personagens principais de uma multidimensionalidade bastante incomum, especialmente num filme deste tamanho e que mira boa parte do público jovem. Ao contrário do que apregoam aqueles que enxergam na arte um mero instrumento de “educação para a vida”, é mais fácil tirar lições a respeito da realidade quando vemos nos personagens na tela qualidades humanas reconhecíveis, e não meras representações de modelos de comportamento a serem imitados.
Seria fácil - e provavelmente tentador - para o roteiro, por outro lado, ceder ao jogo fácil da esquematização politicamente correta, levando-se em conta que um dos temas que ele aborda é o da aceitação do que é diferente. O roteiro não se vende barato, e consegue passar sua mensagem sem que para isso tenha de recorrer à caricatura em excesso. Uma das maiores evidências disso é que os eventuais “vilões” permanecem latentes até o terceiro ato, e mesmo em seu desfecho a ambiguidade em relação a outros personagens se mantém (jogando as tensões para uma segunda parte futura).
O enredo segue os passos de Elphaba (Cynthia Erivo), uma garota de pele verde que acompanha acidentalmente a irmã com necessidade especial, Nessarose (Marissa Bode), à Universidade de Shiz, na Terra de Oz. Lá, ela logo desperta atenção da Madame Morrible (Michelle Yeoh) por seus talentos inexplorados, enquanto oscila entre a rivalidade e a amizade com a mimada Glinda (Ariana Grande).
Enquanto Glinda é obcecada em chamar atenção e se tornar popular, Elphaba enfrenta silenciosamente a zombaria dos outros alunos por causa de sua aparência, até que o desenrolar das atividades dá a ela um papel de destaque - o qual o filme explora de maneira esperta até levar ao desfecho que deixa a porta aberta para a continuação.
Se a ideia de uma estudante que foge do padrão na escola não tem nada de muito novo (bem como a de uma “universidade de magia”, que lembra automaticamente o universo Harry Potter), tanto enredo quanto a direção conseguem levar adiante os conflitos ocasionados pela trama ligeiramente banal com notável elegância. O momento da dança silenciosa, que finalmente une as duas rivais e acontece precisamente no meio da projeção, é puro cinema, uma cena belíssima que vale o ingresso e já tiraria Wicked do meio-termo da produção, elevando o filme a uma categoria acima.
Certamente Cynthia Erivo será mais lembrada pela sua atuação aqui - e ela está muito bem, de fato, embora sua personagem não seja exatamente simpática nem quando vítima dos abusos coletivos - mas seria injusto ignorar o brilho de Ariana Grande, que além de ser excelente cantora, demonstra talento natural para comédia, num pacote encantador.
Wicked surge como um encontro muito feliz entre forma e mensagem, apoiado numa direção segura e sutil (de Jon M. Chu, do também divertido Podres de Ricos), num enredo que consegue ser ácido (por exemplo, quando elabora o tema do autoritarismo na escola, remetendo a perseguições cometidas durante o século XX contra variados grupos sociais, aqui simbolizados pelos animais falantes) e, ao mesmo tempo, encantador. A parte musical tem o padrão de qualidade da Broadway e, embora - como se disse - o filme pudesse durar 20 minutos a menos, as canções não chegam a ser cansativas, contribuindo para a diversão.
Sim, Hollywood consegue se reinventar, responder a mudança constante das plateias e persistir entregando fantasia numa embalagem caprichada, atenta à vibração do público atual sem perder a essência do espetáculo que é sua marca registrada. O que mais podemos exigir, em 2024, além de uma continuação à altura de um clássico de 1939?
https://www.youtube.com/watch?v=6COmYeLsz4c
Crítica | Gladiador II é continuação que reafirma as qualidades do filme original
“Sinto ciúmes”, Russell Crowe admitiu em entrevista de 2023 sobre ter sido deixado de lado na produção da continuação Gladiador II, que chega agora aos cinemas de todo o mundo, mais de 20 anos depois de o original ter conquistado as plateias com uma narrativa elegante e vigorosa. E, embora a continuação seja fruto de evidente esforço e capricho por parte dos realizadores, o protagonista do primeiro Gladiador pode acompanhar o lançamento de casa com um sorriso cínico nos lábios: não só ele faz falta como o novo filme não se compara ao outro.
Uma continuação de um sucesso estrondoso como aqui e realizada após tanto tempo, abrindo mão de seu ator principal, é um desafio arriscado, que no entanto parece bem entregue às mãos de Ridley Scott, um desses “tycoons” da indústria, capaz de transitar por décadas, tendências e modas sempre se reinventando e pescando um ou outro sucesso em diferentes gêneros (ficção científica, drama, épico) como se o cinema fosse uma ciência plenamente dominada por si mesmo. Sua direção é um dos pontos acertados do novo filme: Scott consegue atingir um balanço quase perfeito entre ação física, ambientação e efeitos. Não faltam sequências espetaculares, mas ele entende que a suspensão de descrença exige alguma “fisicalidade”, além das mirabolâncias constantemente propostas pela pós-produção contemporânea. Mesmo os cenários e a generosa figuração não são camadas mortas na tela, e a poeira e o sangue (que felizmente não jorra em exagero) emergem da tela com veracidade e (alguma) verossimilhança (mas voltaremos a isso mais adiante). É preciso louvar ainda o fôlego do cineasta para dirigir um filme gigantesco como este com quase 90 anos de idade, o que só aumenta nossa admiração e comprova sua fidelidade ao ofício cinematográfico.
Roteiro tem que decidir entre dois caminhos e não opta totalmente por nenhum deles
Na trama, o “bárbaro” Lucius (Paul Mescal) é feito prisioneiro e convertido em gladiador, jogado de volta à Roma, enquanto uma intriga de poder e bastidores decorre ao seu redor e irá eventualmente envolvê-lo e colocá-lo no centro do drama. Ele deve fazer o jogo imposto por seu senhor, Macrinus (Denzel Washington), enquanto descobre qual sua relação passada com Lucilia (Connie Nielsen, discreta), que por sua vez é casada agora com Marcus Acacius (Pedro Pascal), uma general vitorioso que rejeita participar do teatro de demagogia política proposto por Geta (Joseph Quinn) e Caracalla (Fred Hechinger), a dupla de imperadores gêmeos e degenerados. Acacius é ainda o alvo da vingança de Lucius pela morte de sua amada Arishat (Yuval Gonen) durante o combate contra os invasores romanos.
Já assistimos diversas vezes a situações semelhantes e Hollywood tem títulos notáveis em seu passado transitando no mundo antigo (notadamente Roma, Egito e Grécia). Gladiador II não traz nenhuma grande novidade nesse sentido, mas a comparação mais direta é com o primeiro filme e aí que a continuação se vê em desvantagem. O roteiro começa numa velocidade muito alta, que ele mantém quase num ritmo único até a metade da projeção, quando aparentemente seus autores “lembram” que é preciso remeter mais diretamente ao legado do Gladiador original - afinal, a nova história só existe por causa do prestígio e do sucesso da anterior. A partir daí, a trama política, de bastidores, ganha corpo, ao mesmo tempo que o ritmo do filme sofre uma desaceleração violenta, para se alongar depois num terceiro ato pouco climático e até mesmo decepcionante.
Se o enredo se mantivesse concentrado na ação - que funciona tão bem, especialmente na espetacular abertura - até o final, o filme não teria o tom trágico e levemente etéreo que encanta no Gladiador original, mas seria um filme de ação de excepcional eficiência. Porém, quando ele muda um pouco de rumo (especialmente a partir do meio do segundo ato) para fazer jus ao legado, é quando a comparação com o original trai o novo filme, e suas fraquezas vêm à tona.
Tubarões são um problema menor diante da fraqueza dos personagens
Muita gente vai torcer o nariz diante de algumas licenças poéticas exageradas que o filme se concede: os macacos que parecem mutantes, os tubarões na arena (como chegaram até ali? e como serão retirados depois?), o “jornal” na “cafeteria”, mas tudo isso seria mais facilmente perdoado se os personagens principais tivessem o relevo ou mesmo o carisma perverso do Gladiador original - e eles não têm, nem de longe.
Paul Mescal esforça-se para parecer comovente o suficiente, mas há uma distância bastante significativa entre ele e o Russell Crowe do primeiro filme - que parece mais trágico e dotado de profundidade, enquanto Mescal entrega um herói genérico que é comum ao gênero e remete mais ao que Gerard Butler fez em 300.
Denzel Washington replica mais uma de suas atuações competentes, mas aqui totalmente deslocada, uma vez que ele parece estar numa delegacia norte-americana dos anos 1990 (e não na Roma antiga), repetindo trejeitos e entonação que nada combinam com a ambientação ou a época - o estranhamento é parecido com o provocado pela “cafeteria”.
E, finalmente, a dupla de vilões é fraquíssima, tanto em termos de atuação como profundidade do drama e das cenas, e qualquer comparação com o que Joaquin Phoenix fizera antes com seu inesquecível Commodus chega a ser constrangedora para a continuação.
Scott imprime qualidade, mas a grande arte de Gladiador dependeria de um roteiro mais bem resolvido
O primeiro Gladiador é um daqueles filmes que a indústria entrega eventualmente que transcende o sucesso comercial e produz referência para o imaginário popular porque o equilíbrio entre drama a imagens poderosas foi perfeitamente atingido. A direção tem papel fundamental na criação desse tipo de “mitologia” cinematográfica e popular, mas atingir esse nível de realização também depende, no final das contas, de um roteiro realmente bom de ponta a ponta, o que não se vê nesta continuação. A despeito de ser, sim, uma bela produção e um bom filme, é o Gladiador original que permanecerá no imaginário popular por mais algum tempo - até que o incansável Ridley Scott arrisque-se a mais uma proeza (quem sabe?) digna dos guerreiros a quem deu vida em ambos os filmes.
https://www.youtube.com/watch?v=Ts0N8swyWFI&t=1s
Crítica | Operação Natal é divertimento ideal para um programa familiar neste final de ano
Filmes com temática natalina costumam ser uma repetição de temas e situações com as quais o público está bastante familiarizado. Então, quando a temporada oferece seus títulos para esta época do ano, a pergunta é se é possível ainda apresentar alguma novidade que satisfaça a expectativa tradicional mas ao mesmo tempo chame atenção o suficiente para além da “sessão da tarde” reprisada corriqueiramente na TV aberta. E Operação Natal atinge esse objetivo com folga.
O filme dirigido por Jake Kasdan (de uma robusta listade comédias, como A Vida é Dura: A História de Dewey Cox, Professora sem Classe e Jumanji: Bem-Vindo à Selva) é a diversão familiar quase perfeita: engraçada, ligeira, com personagens carismáticos e um balanço sensível entre ação, piadas e emotividade.
Dwayne Johnson: maior cachê já pago e boatos sobre mau comportamento
De acordo com o reportado pelo site IMDB, o valor pago a The Rock seria possivelmente o maior de um ator em todos os tempos (50 milhões de dólares, superando Robert Downey Jr. e Will Smith) e, ainda assim, sua atitude durante as filmagens teriam atrasado o cronograma da produção, com constantes faltas e descompromisso em relação ao resto da equipe.
Se os problemas causados pelo astro atrasaram a produção e possivelmente aumentaram seus custos totais, essa falta de sintonia não é percebida na tela: embora discreto, Dwayne está bem na parceria insuspeita com Chris Evans - este sim um ator de carisma contagiante e que dificilmente erra o tom em sua atuação.
Roteiro bem amarrado segura produção com ação consistente em Operação Natal
O filme se sustenta facilmente no enredo, que é bem construído e parte de uma situação razoavelmente original: com o rapto do Papai Noel (J.K.Simmons), uma Força Tarefa comandada por Callum Drift (Dwayne Johnson) tem de recorrer aos serviços do hacker trapaceiro Jack O’Malley (Chris Evans) para encontrar seu paradeiro e eventualmente confrontar figuras mitológicas e a mini supervilã vivida por Kiernan Shipka (do seriado Mad Men e que sempre foi boa atriz desde pequena).
Tanto a apresentação dos personagens como as passagens de uma situação a outra são elaboradas com capricho, sem depender apenas da habitual edição atordoante que serve como disfarce para o trabalho fraco de escrita. Embora a ação e os efeitos visuais sejam bastante competentes, o filme não depende deles para se manter de pé, oferecendo conflitos e uma boa progressão da trama por quase duas horas.
Para não dizer que o filme é o entretenimento familiar perfeito, ele sofre do mal crônico da maioria dos filmes atuais: um desenvolvimento e um desfecho ligeiramente alongados, e que ganhariam em agilidade se abrissem mão de 10 minutos. Nada, entretanto, que comprometa um programa de qualidade para levar a garotada neste final de ano. Pode ver sem medo: o presente de Natal não terá devolução.
https://www.youtube.com/watch?v=U8XH3W0cMss
Crítica | Abdução em Manhattan expõe um caso duvidoso enquanto aposta no espetáculo
A nova minissérie documental da Netflix, Abdução em Manhattan, sofre do mesmo mal costumeiro que ataca a produção das grandes plataformas e que tem origem no conceito ao estilo History Channel: a abordagem de temas da realidade tem que ser tão ”fantástica”, "interessante" ou “misteriosa” que o espectador acaba com mais dúvidas do que antes de começar a assistir, de modo que a coisa toda realimenta a cultura de crendice e falsa ciência que se espalha pelas redes sociais.
Ainda assim, se o espectador assistir atentamente aos três episódios que compõem a atração, irá perceber (quase por conta própria, uma vez que a direção investe na fantasia acima da realidade) a fragilidade geral do caso, a pobreza de suas alegadas evidências e o espírito sectário que predomina no meio ufológico.
Linda Napolitano: a testemunha de sua própria abdução
Estamos em 1989, ou seja, o auge da cultura ufológica no século XX. Filmes sobre alienígenas e discos voadores são uma rotina e qualquer pessoa que acompanhe minimamente o noticiário e a produção de cinema está bastante familiarizada com os temas que povoam a mente dos aficionados.
É nesse contexto que Linda Napolitano, uma mulher na casa dos 40 anos, alega publicamente ter sido abduzida de seu apartamento em Nova York, num evento supostamente presenciado por duas dezenas de testemunhas durante um blecaute na Ilha de Manhattan.
Como acontece em praticamente todos os relatos de contato alienígena, as primeiras impressões são atordoantes e é nelas que se resume o noticiário: informações superficiais fornecidas por ufólogos diretamente envolvidos com as testemunhas e que filtram criteriosamente o tipo de revelação que acaba sendo disseminada. Sempre que, entretanto, as perguntas se aprofundam e as evidências são analisadas com minúcia, os casos revelam-se diferentes do que pareciam ser inicialmente, e quase todos caem também por terra nessa etapa.
Com o caso de Linda Napolitano, não é muito diferente: as principais evidências que sustentam sua história são precárias. Suas “testemunhas” são confusas ou simplesmente anônimas, não podendo ser checadas. Algumas provas foram deliberadamente forjadas, como a minissérie mostra em relação a uma carta com assinatura falsificada. E mesmo a radiografia apresentada por Linda é facilmente adulterável, conforme a cineasta Carol Rainey (autointitulada “cética” no documentário) demonstra.
E, como não poderia deixar de ser, não há nenhuma imagem que sustente as afirmações de Linda sobre o evento: ninguém filmou, gravou ou tirou foto. Tudo que se tem, em resumo, são testemunhos duvidosos ou apócrifos, algumas evidências fortíssimas de manipulação e uma radiografia que não prova nada.
Documentário se confunde entre realidade e fantasia - em prejuízo da primeira
Embora Abdução em Manhattan liste todas essas inconsistências, sua opção por tornar “espetacular” o relato - com elaboradas reconstituições, fotografia de filme noir, efeitos especiais de Hollywood e o tom “misterioso” de Alienígenas do Passado - acaba por resultar que o espectador desatento sairá ainda mais confuso do que entrou. E isso concorre para que a lenda não só persista, como até progrida depois do documentário. É mais fácil se lembrar da imagem produzida impactante de uma mulher levitando sobre a cidade que do momento em que a caligrafia de Linda aparece em duas cartas de supostos testemunhas diferentes.
O meio ufológico se vale da carência da plateia por mistério e pelo crescente ambiente de dúvida em relação à ciência estabelecida e às versões oficiais fornecidas por governos. Dúvidas são saudáveis e necessárias: ocorre, entretanto, que quando elas recaem sobre as versões apresentadas pelos próprios ufólogos, são repudiadas rapidamente e há uma recusa em analisar o que de fato foi apresentado como “evidências”. Algumas passagens da minissérie demonstram isso no comportamento pouco criterioso do ufólogo Budd Hopkins.
O espectador atento sabe que deve duvidar de tudo a princípio e construir sua impressão recolhendo evidências sólidas e deixando de lado ou em segundo plano aquelas que se fragilizam no processo. Mas a abordagem ufológica, que mistura fantasia e realidade e predomina em filmes e documentários de TV, prefere dobrar a aposta na incerteza - mesmo quando uma assinatura falsa, por exemplo, coloca a história toda abaixo, como neste caso.
O saldo de Abdução em Manhattan é tornar conhecida uma história impactante, mas provavelmente falsa (na íntegra ou em sua maior parte). É uma vitória amarga, de todo modo, porque a minissérie não se aprofunda na fragilidade das evidências defendidas por Linda e pelo ufólogo Budd Hopkins (de quem um sujeito cauteloso provavelmente jamais compraria um carro usado) e mantém no final a atmosfera “misteriosa”, o que acaba favorecendo o sectarismo ufológico (o qual o próprio Budd admite assemelhar-se a uma religião). Com menos efeitos e mais perguntas diretas (“Esta voz de uma suposta testemunha não é a sua própria voz, Linda Napolitano?”), a minissérie seria talvez menos “espetacular” mas certamente muito mais verdadeira - e, portanto, mais “documental”.
https://www.youtube.com/watch?v=StQdrDWeQLk
Crítica | Megalópolis é equívoco gigantesco de um mestre do cinema
A melhor cena do novo filme de Francis Ford Coppola - e talvez a única que realmente “funciona” - é totalmente deslocada do restante: é simples, calma, sem subterfúgios desnecessários, apenas drama, atores e câmera - é aquela em que um garoto pede autógrafo a Cesar Catilina (Adam Driver). Curiosamente, a cena poderia estar em algum Poderoso Chefão, ou seja, ela representa o melhor do diretor.
Conforme se sabe, Coppola é daqueles cineastas aventureiros, que filmaram com relativa constância e, portanto, suas carreiras estão sujeitas a altos e baixos que cineastas mais criteriosos - como Kubrick ou Leone, por exemplo - jamais experimentaram. Estes dois têm meia dúzia de filmes excepcionais, mas nenhum realmente ruim - ao contrário de um grande diretor como Coppola que, até por ter se arriscado mais, tem filmes muito abaixo da media em sua filmografia. E Megalópolis é certamente um deles.
Megalopolis é “puro risco”: um filme autofinanciado (o que num país de cinema totalmente estatizado como o nosso, onde até banqueiros utilizam verba pública para seus projetos, chega a soar como ofensa) em que o diretor e roteirista retoma temas que foram bastante rotineiros em sua carreira - notadamente, a figura do “visionário louco” confrontando o sistema, um espelho de si mesmo dentro da indústria - num conjunto muito irregular de situações, personagens e contextos, onde nada se conclui, nada se aprofunda, resultando num todo atordoante (no mau sentido do termo).
Diretor parece ter juntado todas as ideias ruins que teve ao longo da carreira e agrupado num mesmo roteiro
Megalópolis tem tantas “ideias”, abre tantas portas e parece querer fazer tantos “comentários” ao mesmo tempo - sobre poder, sociedade, dinheiro, corrupção na política, ciência e humanização, Musk e Trump, Roma e América, etc. - que em determinado momento torna-se totalmente desnecessário tentar compreender aonde o enredo está indo - o que sobra é tirar do desenho de produção algum estímulo, embora o "efeitismo" proposto pelo filme nesse sentido careça de “novidade”: como o audiovisual hoje é predominante, constante e “renovado” segundo a segundo, quase tudo que aparece em Megalópolis lembra incomodamente “outra coisa” parecida já vista em alguma publicidade de perfume, por exemplo, ou mesmo em outros filmes (e a lembrança mais forte parece ser O Grande Gatsby, de Baz Luhrmann, de quem Coppola herda também o ritmo frenético e a narrativa num fôlego único e que tenta não morrer até o último minuto). Em outra direção, Coppola emula a verborragia típica do cinema de Robert Altman e a fixação pelo discurso de Glauber Rocha, quando o cinema existe como um "detalhe" para a mensagem pretendida.
A trama acompanha a trajetória do Cesar, às voltas com a reconstrução de sua cidade destruída, as intrigas palacianas com rivais políticos e concorrentes que tentam provocar uma revolta popular inspirada por demagogia, enquanto o protagonista lida com o drama humano da perda da esposa e a invenção de um novo tipo de material que serve para a construção civil mas também para a regeneração de tecidos, quando o filme flerta com a ficção científica (como se o enredo não tivesse problemas suficientes para lidar até então).
Diferente da trilogia do chefão, onde predomina a economia narrativa, um tipo de “minimalismo” de linguagem que funciona tão bem para o material, aqui Coppola segue outro caminho, que muitas vezes remete ao seu Drácula de Bram Stoker, embora lá - diferente daqui - a aposta tenha sido em um visual “antiquado” utilizando técnicas esquecidas, primordiais, para os efeitos visuais. O resultado ali é arrebatador e único, diferente daqui, onde ele é uma mera repetição de tudo que tem sido feito de 20 anos para cá, ou seja, uma sucessão de “belas composições” digitais que acabam por reforçar a artificialidade do conjunto - nesse sentido, o encaixe com os diálogos declamados e a encenação teatral é preciso, nada soa orgânico.
Outra desvantagem em relação ao Drácula - mas também a Tucker - Um Homem e Seu Sonho - é que o roteiro aqui não sustenta o filme, o enredo simplesmente não é bom o suficiente: é episódico, não progride, é dispersivo e os personagens parecem “fingir” o tempo todo porque seus “dramas“ não têm consistência humana em momento algum - são “tipos” em representação a ideias que Coppola parece ter dos temas que lhe interessam. Se, mesmo sendo um “vampiro”, o conde de seu outro filme expressa comovente humanidade, o mesmo está longe de acontecer aqui - são conceitos tentando inutilmente ganhar forma de cenas, e o resultado tem momentos realmente trágicos como naquela dos andaimes, logo no início, em que tudo está deslocado e sem unidade, cambaleante como os próprios personagens.
O que sobra desta experiência atordoante, embora corajosa, é algum lampejo da direção de arte (há traços interessantes ali, mas Coppola está tão emocionado em dizer tanta coisa ao mesmo tempo que não tem como se concentrar em nada) e as atuações femininas, às quais o diretor dedica bastante atenção: Aubrey Plaza e Nathalie Emmanuel são atrizes muito interessantes e grande parte da graça que se mantém aqui é em função da presença de ambas na tela.
Adam Driver faz o que pode como Cesar, o grande Jon Voight é exposto a uma cena ridícula com arco e flecha no final e Shia LaBeouf parece estar tendo um surto dentro de um banheiro químico (com consequências previsíveis) em Megalópolis.
Coppola não deve nada à História do Cinema, tampouco a sua indústria. Responsável por obras-primas como os dois primeiros chefões, Apocalipse Now e A Conversação, seu nome já está inscrito para a posteridade como um realizador que, em determinado momento, esteve plenamente conectado e soube compreender como poucos o espírito da época e, mais tarde, continuou a ser um produtor de cinema valente e disposto a correr riscos, com menor acerto artístico mas um fôlego e um amor ao cinema que inspiram gerações de novos cineastas.
https://www.youtube.com/watch?v=pq6mvHZU0fc
Crítica | Sorria 2 é continuação que acentua mal-estar do original
Sorria, de 2022, chamou bastante atenção quando foi lançado não por ser exatamente um filme de terror "original" (ao menos não no conceito, embora possa ser na premissa), mas por conseguir retirar de seu material uma mistura bem equilibrada de sustos e violência.
Na continuação de 2024, Parker Finn (roteirista do primeiro) se arrisca na direção e tenta explorar matizes mais coloridas a respeito da história: tirando um preâmbulo que, embora impactante, é bastante deslocado do trama que virá a seguir, o filme foca especialmente na protagonista, a cantora pop Skye Riley (Naomi Scott), que passa a viver um pesadelo depois que é inserida na maldição corrente e misteriosa, que ela tentará desvendar ao mesmo tempo que confronta um passado de vício e degradação psicológica.
Sem novidades, mas a receita que funciona antes parece continuar funcionando
Por cerca de duas horas, o espectador que curte a ideia original - os sorrisos macabros são uma ideia simples, mas bem interessante, e o desafio para os atores é algo que se acompanha com interesse - irá vislumbrar a derrocada de Riley, até um desfecho apoteótico que abre portas para a continuação da franquia e mantém no ar as perguntas sobre a origem e natureza da maldição que persegue os personagens desde o primeiro filme.
O que melhor funciona em Sorria 2 são os sustos (que não são repetitivos e, quando acontecem, costumam realmente provocar efeito, além de serem visualmente bem construídos, não dependendo unicamente do efeito sonoro, como tem sido usual no gênero). Além deles, os momentos de violência gráfica são bastante impactantes e muito realistas, o que se é um deleite para os fãs de gore, pode incomodar quem não aprecia cenas sanguinolentas - e também ser visto como um truque baixo para chamar atenção da plateia.
A maior fraqueza do filme, por outro lado, é que o lado dramático da trama (as relações da cantora com a mãe, por exemplo, ou as lembranças de seu passado conturbado) não permitem que o filme mantenha o mesmo tom de mistério o tempo todo, funcionando como uma distração para o motivo real de Sorria 2 existir. Quem gosta de desenvolvimento de personagens ficará satisfeito, porque o roteiro se debruça nisso, mas se fosse mais "direto ao ponto" seria uma produção mais curta e, hoje em dia, poder de síntese é um desafio para grande parte dos diretores.
Sem apresentar grandes novidades mas, apostando numa direção caprichada e que sabe construir suspense e alternar momentos de pressa com a espera e o silêncio que aumentam a tensão da plateia, Sorria 2 é uma aposta segura para os fãs do gênero e, especialmente, para quem espera imagens traumáticas de violência e suplício físico. É possível sorrir, enfim, com o terrível destino de seus personagens.
https://www.youtube.com/watch?v=0HY6QFlBzUY