Crítica | O Império dos Sentidos
Tratar sexo no cinema desde sua concepção foi um enorme desafio. O primeiro beijo retratado na sétima arte é datado de 1895 com O Beijo protagonizado por May Irwin e John Rice. A comoção foi tanta que diversos jornais classificaram o curta como “repugnante, ofensivo, incômodo”. O sexo, de certa forma, até hoje permanece um assunto polêmico não escapando de ser classificado como tabu. Logo, no cinema, o caminho trilhado para tratar do erotismo e da sexualidade não foi simples. Mas assim como na história, gradualmente, o sexo passou a ser um assunto menos “assustador”.
Ao longo do século XX, tivemos obras que permitiram que o tema pudesse ser explorado no cinema abrindo caminho para o ápice do erotismo atingido por Império dos Sentidos. Já em 1929, com A Caixa de Pandora de Georg Pabst, o sexo atingiu novamente os cinemas. E assim foi com Marrocos, A um Passo da Eternidade, E Deus criou a Mulher, A Boneca de Carne, Os Amantes, O Silêncio, A Bela da Tarde e O Último Tango em Paris. Todas essas obras se destacaram em apresentar o sexo como motivador de suas narrativas, além de propor usos diferentes, todas muito corajosas para seu tempo.
Porém, assim que se pensa em sexo no cinema, o nome de O Império dos Sentidos vem à mente de muitos, mesmo que nunca tenham assistido ao filme. Dificilmente, você chegou até esse texto sem ter ao menos escutado falar sobre o filme de Oshima e suas diversas cenas de sexo explícito.
O filme aborda o acontecimento verídico que tornou o relacionamento amoroso de Kichizo Ishida e Sada Abe histórico. Em 1930, Sada trabalhava na hospedaria de Kichizo em busca de um trabalho digno e bom salário. Porém, Sada se apaixona pelo proprietário do hotel. Os dois acabam presos por uma forte paixão que revela desejos sexuais profundos. Conforme o namoro progride, ambos passam a trilhar caminhos cada vez mais perigosos dentro da exploração do sexo que flerta com a morte.
No caso de Império dos Sentidos, temos a sorte de ter a produção ligada da cabeça aos pés do idealizador. Nagisa Oshima dirige o filme e escreve o roteiro. Logo, as marcas do diretor estão presentes em todos os cantos do filme tornando a experiência de vê-lo, ainda mais deliciosa. Veja, Império é um filme que interage com você. Oshima tem um nível de cinismo e autoconsciência dentro de seu trabalho que chega a assustar. Propositalmente, é claro.
A proposta do filme é clara. Ele não perde tempo com floreios e muito dramalhão em cima da relação dos dois. Os personagens são iniciados dentro de um misto de sexo, sensualidade e violência que acompanha o filme inteiro. Logo, não há demora em apresentar a característica que torna essa obra tão polêmica e grandiosa na História: as inúmeras cenas de sexo explícito.
Oshima, no começo, trabalha o sexo a partir do voyeurismo de outras gueixas que espionam o casal ou até mesmo de Sada que vê pela primeira vez Kichi enquanto ele transa com sua esposa. Em todas as cenas que tangem o voyeur, a expressão surpresa aliada de desejo e repulsa é estampada nos rostos das personagens que espelham a exata reação do espectador. É incrível imaginar que desde 1976, Oshima consiga imprimir essas emoções em quem assiste o filme de modo infalível. O sexo, em primeiro momento, serve mesmo para nos chocar. Porém, nada é simples com Império dos Sentidos.
Existe a linha tênue que não permite classificar esse longa apenas como uma pornografia bem pensada. Primeiro, porque geralmente na pornografia a narrativa, quando existente, é o ponto de partida para a cena de sexo que é o cerne desse tipo de filmografia. Já no filme de Oshima, o sexo contribui única e exclusivamente para a narrativa, além de reforçar a mensagem do filme.
No roteiro, Oshima desenvolve os pontos importantes do roteiro com calma. Seu texto é inteligente. Ele infere o passado de Sada como prostituta através de seu relacionamento com algumas gueixas da hospedaria – tocando até mesmo na sugestão da homossexualidade. Depois, na sequência com o encontro com o mendigo – aliás, graças a Oshima, posso dizer que já vi um filme onde crianças jogam bolas de neve no pênis de um mendigo bêbado em 1930. Outras vezes, Kichizo ressalta que ela não é uma mulher “ordinária”. Para então assumir este lado da mulher durante os encontros que ela tem com o professor intelectual para sustentar os vícios do casal.
Enquanto trabalha com Sada apenas como voyeur, Oshida já apresenta a complexidade da personagem. Isso se dá pelas crises de ciúmes e possessão e pelos delírios assassinos que gradualmente ficam mais sombrios. Depois, quando, estranhamente, Oshida enfim começa o relacionamento amoroso dos dois protagonistas, o desenvolvimento é mais constante. Não acho orgânico dentro da narrativa essa “viagem” que os protagonistas fazem. Isso deixa todo o núcleo do casamento de Kichizo com a primeira esposa completamente deslocado e sem nexo, apesar de ser retomado em outro ponto chave do filme.
Apesar de boa parte do filme se passar confinada em quartinhos de hospedarias onde os protagonistas transam sem parar, Oshima não deixa que o longa vire uma besteirada repetitiva. A cada cena, Sada torna-se ainda mais insana e Kichizo, passa a se entregar completamente para a paixão. A ninfomania da personagem abre as portas para a infinidade de situações sexuais possíveis. Logo, os personagens interagem sempre com outros elementos a partir do sexo, sempre. O casal provoca orgias, ménages, experiências com comida, sexo com idosos para então chegar no ápice de flertar com asfixiofilia – asfixia erótica. Tudo isso afim para provar o amor que um tem pelo outro.
É genial como Oshima rapidamente tira a condição de Sada como voyeur para defini-la como exibicionista. Em diversas cenas, o casal transa com a presença de outros ao redor perdendo completamente o pudor, afinal, para eles, a condição sexual é tão intrínseca ao relacionamento que chega a ser natural. Tornando ainda a figura de Sada mais complexa, é curioso como ela se importa com a opinião dos outros inferindo, talvez, alguma passagem condenatória em seu passado por conta da prostituição enquanto Kichi não liga para as provocações. Oshima geralmente retrata as pessoas que estão ao redor do casal como recalcadas que logo ao menor convite para participar da paixão deles, prevaricam de seu preconceito e se lançam para o desejo.
Conforme os dois se aprisionam cada vez mais, fica claro que Sada gosta de ter poder sobre seu parceiro. A relação aparenta ficar destrutiva e fora de controle. Porém, ao mesmo tempo que Oshima traça o destino trágico dos personagens, ele começa também modela a beleza do amor dos dois. De todo o lirismo da confiança no parceiro, no amor puro cheio de malicia, na depressão de quando os dois não ficam juntos e na promessa de uma longa história de futuro amoroso quando os dois tem plena consciência que tudo aquilo levará à morte de um deles. Pode soar bizarríssimo ler isso, mas considero que Oshima tenha nos trazido uma das histórias mais bonitas de amor no cinema – por mais insana que ela pareça ser.
É um deleite assistir a Império dos Sentidos graças as composições belas de Oshima e da cinematografia estonteante. As emoções do casal sempre estão refletidas pela fotografia de Hideo Ito, tão delicada que se comporta como veludo por ser incrivelmente soft, difusa. O diretor sempre enquadra seguindo certa “tradição” do cinema japonês com enquadramentos que se assemelham com molduras, porém, nada tão elaborado quanto os trabalhos de Yasujiro Ozu. Também não deixa de ser irônico a plena maioria de planos estáticos em contraponto com o frenesi sexual do casal. Infelizmente, quando o diretor tenta mover a câmera, algumas coisas saem do controle evidenciando certa preguiça. Em três momentos do filme, durante uma panorâmica ou um travelling, o operador mexe a câmera com rispidez quebrando o movimento cinematográfico lento por natureza. Causa estranheza, é feio e é grave ter sido posto dentro do filme. A sorte é que Ôshima acerta tanto que esses erros técnicos são facilmente perdoados.
Também a audácia do homem em ser um dos primeiros da História do Cinema em apresentar em tela, dentro de um filme arthouse, um pênis ereto e cenas de felação explícita em contexto narrativo é algo a se parabenizar. Fora isso, ele deixa claro ao fugir do pudor oriental que é senso comum no Ocidente. Ôshima diz que a morte e o sexo são assuntos sempre relacionados na cultura japonesa.
O diretor expressa bem as emoções do casal com a fotografia e o design de produção do filme. Repare que na primeira cena que Sada e Kichi se separam, a iluminação imediatamente torna-se mais sombria em contraponto com os ambientes melhores iluminados de quando estão juntos.
Isso também se repete nas poucas cenas que se passam em externas. A fotografia é mais melancólica sempre acompanhada de forte chuva ou neve. As ruas são frias e desertas. Já na maioria das internas, com o casal confinado no quarto, a fotografia é aconchegante juntamente com o design de produção convidativo e organizado – porém, repare que conforme a relação dos dois abandona o campo saudável, o cenário passa a ficar caótico cheio de roupas e entulho espalhado.
Em outra cena, Ôshima coloca Kichizo a passear na rua. Durante a caminhada, o personagem encontra uma tropa do exército marchando para a direção oposta que ele percorre. O exército é a representação do início expansionista do Império Showa de Hirohito levando o ápice do nacionalismo com a Segunda Guerra Mundial. Como o personagem caminha na direção oposta, casa com a máxima do “faça amor, não faça guerra” muito presente nos anos 1970.
Outra simbologia visual, um pouco mais sutil, é a do escorpião tatuado no lóbulo da orelha de Sada. A personagem se comporta exatamente como o que representa a figura do aracnídeo. Ela é morte, sexo, dominação e luxúria. Ela nunca contraria a sua natureza. Também não há como negar a metáfora visual do robe antológica que Sada usa na última noite de núpcias dos dois: repleto do vermelho envolvente que pulsa sexo, sedução e violência. Ele erra na narração over bizarra ao fim do filme.
ambém não é justo não citar o trabalho difícil e intenso dos atores Tatsuya Fuji e Eiko Matsuda pelos papéis que marcaram suas vidas. Fuji consegue revelar traços deprimidos em Kichizo, além de lançar olhares plenos para Sada. Mesmo que Fuji seja excelente, Matsuda consegue brilhar ainda mais com Sada entre sua loucura e paixão. Pela compentencia de Eiko, ela não passa pare em deixar Sada uma personagem completamente caricatural e tosca. É um trabalho que ficou marcado na história.
O Império dos Sentidos é um dos filmes obrigatórios para se ver antes de morrer. É uma obra que necessita de um espectador completamente despido de preconceito para ser plenamente apreciada. Com poucos erros, Ôshima construiu um dos melhores filmes do cinema. Dentro de sua loucura a dois, temos uma fascinante história de amor.
Uma obra de arte atemporal. Assim como o sexo.
Crítica | O Regresso
Todo filme em si é uma experiência multissensorial, afinal vemos e ouvimos. Entretanto, existem outros que ultrapassam essa barreira primária dos sentidos. Obras que nos atingem de modo tão profundo que parecem tocar nosso espírito. Nos levam a reflexões intensas sobre o material apresentado pelo cineasta. Seja Solaris, Além da Linha Vermelha, 2001 ou Melancolia.
Em O Regresso, Alejandro González Iñarritu tenta alçar seu filme nesse status de experiência transcendental. Como em praticamente todas essas obras voltadas para esse nicho de reflexão, O Regresso é um filme que divide opiniões, em sua maioria, entre ame ou odeie graças à sua subjetividade. Por sorte, fiquei no meio termo desses opostos, mas também não tive a catarse tão almejada pelo cineasta.
Aqui, Iñarritu traz mais uma adaptação da história do lendário Hugh Glass. Por volta de 1820, Glass e seu filho mestiço, Hawk, trabalham para a Companhia de Peles Montanhas Rochosas. Durante uma expedição nos arredores do rio Missouri para coletar peles de animais selvagens, Hugh é atacado por uma ursa parda. No combate, ele é dilacerado vivo, mastigado, esmagado, quebrado, rasgado, verdadeiramente trucidado. Porém, por um milagre, Glass sobrevive.
Após ser tratado, o líder da expedição, capitão Henry, oferece cem dólares a cada homem que escolher ficar com Glass até sua morte para que o resto da equipe possa seguir viagem. Hawk, Jim Bridger e o problemático Fitzgerald se oferecem para ficar ao lado do homem. Porém, em poucos dias, todos o abandonam no ermo selvagem. Com seu ódio e fúria, Glass jura vingança dos homens que roubaram seus pertences e o deixaram para morrer.
Por incrível que pareça, não há muito o que comentar sobre o roteiro de Iñarritu e da improvável colaboração de Mark Smith. A história é realmente simples durante a jornada de Hugh Glass rumo à sua almejada vingança. O conflito principal se dá com o homem vs. a natureza. Na sobrevivência diante diversas adversidades. A selvageria. A perseverança.
O roteirista aposta muito no primeiro ato do filme antes de cair no grande marasmo após o abandono de Hugh Glass. Nessa primeira hora, Iñarritu se preocupa em estabelecer a ação fenomenal do filme, além de apresentar melhor os personagens e definir o papel de cada um na trama – algo que lentamente é desconstruído. Com praticamente todos os personagens, ele opta por não tomar reflexões demasiadamente profundas. A situação que cada um deles se encontra os torna complexos sem a necessidade de muitas linhas de diálogo – aliás, estes são mínimos. Me incomoda um pouco o fato de ele não tentar desenvolvê-los depois do primeiro ato. Logo, os personagens permanecem estacionados em somente um conflito. O líder da expedição, Henry, e Jim Bridger, são os que mais sofrem com a escolha do diretor. Já a relação entre Glass e Hawk também não se torna grandes coisas, apesar do diretor tentar, através de flashbacks, apresentar uma inversão de papeis entre pai e filho dentro do passado dos dois. Na prática, sem floreios, Hawk serve apenas como um intensificador de conflito – seja do preconceito ou com a obsessão pela vingança.
Através de alguns flashbacks¸ Iñarritu cria o passado “misterioso” do protagonista. Como a maioria deles se dão em sonhos ou delírios, nada é objetivo de fato. Neles, há a presença dos índios Pawnee – Hawk, seu filho, vem do namoro de Glass com uma índia. No filme, esse núcleo dos índios é ressaltado em uma subtrama. Os Arikaras servem também como um ponto de antagonismo entre os exploradores no começo do longa, mas como disse, Iñarritu não gosta de trabalhar com coisas demasiadamente simples. Ou seja, o que os Arikaras representam no longa é lentamente transformado.
Nessa subtrama, os índios partem em busca de Powaqa, a filha desaparecida de um ancião. Com isso, o diretor também explora o comércio de escambo dos índios com um grupo de franceses. Apesar de encaixar bem no contexto do filme e no desenrolar dos eventos, essas narrativas que concentram tais grupos tornam o filme arrastado e raramente trazem o impacto esperado. Ainda, com essa interação, o diretor sacrifica a lógica interna da jornada de busca dos Arikaras e também, infelizmente, perde a chance de construir um longa com um dos roteiros melhores amarrados que eu já tenha visto.
Sabendo que seu roteiro não é extraordinário – passa longe disso, Iñarritu aposta sua magia no campo visual e sonoro do filme.
Não tenham dúvidas, O Regresso é um dos filmes mais belos já feitos na história dessa arte. Fica ao lado de clássicos como Lawrence da Arábia, ...E o Vento Levou, 2001, Blade Runner, Amor Além da Vida, ou do contemporâneo, Árvore da Vida.
O diretor já começa com os pés na porta. Os trinta minutos iniciais são absolutamente excelentes. São cenas que provavelmente nós nunca tenhamos visto nessa escala de brilhantismo técnico seja na encenação, na fotografia e na própria direção. A razão disso é o emprego da técnica que Iñarritu vem desenvolvendo desde Birdman – de sua marca autoral.
A maioria das cenas são realizadas em planos longos sendo alguns deles planos-sequência apresentados com o auxílio de steadicam ou de gruas. Nas duas cenas mais complexas do longa – o ataque dos Arikaras e do urso – o trabalho de encenação é perfeito. Elas têm o tempo necessário e chocam como devem chocar. Iñarritu sustenta muito do filme na base da violência – um campo que raramente dá errado na arte. Por exemplo, na mais violenta delas, na sequencia onde Glass luta com a ursa, nós sentimos o peso do animal, a respiração vinda de seu hálito podre. Sentimos a carne sendo dilacerada, o quebrar dos ossos de Glass. É aterrorizante. Iñarritu sabe bem como incomodar sua plateia.
A proposta de Iñarritu e do diretor de fotografia, Emmanuel Lubezki – a caminho de seu terceiro Oscar consecutivo, é a mais clara possível: o realismo pelo realismo. Eis que assim surge uma das experiências mais audaciosas da cinematografia: gravar o longa inteiro apenas com luz natural. Então temos apenas o domínio do homem sobre a câmera e a técnica cinematográfica. Algumas das cenas do filme foram gravadas com a nova Arri 65 que oferece um estupendo sensor de 65mm. Ou seja, maior amplitude de imagem e melhor recepção de luz no sensor. Esse fator foi um dos mais importantes para tornar a fotografia de O Regresso em algo tão sublime.
Por ser um longa centrado no inverno, pode-se pensar que há uma mesmice visual vinda da monotonia do branco, mas na verdade ocorre o contrário. Sempre há bons contrastes que tornam a imagem rica mesmo que a foto opte por tons mais frios. O que de fato é belo é a incidência da luz natural nos atores, sempre delicada por conta do clima nublado que difunde a luz pelas florestas, montanhas e rios. Exatamente por esse motivo, raramente temos alguma cena noturna no longa. Quando ela existe, se dá em períodos muito particulares do dia seja no lusco-fusco ou na aurora acompanhadas de enormes fogueiras para iluminar o primeiro plano – nessas fogueiras, Lubezki teve que usar iluminação artificial, pois iluminar apenas com fogo é uma tarefa dificílima, acredite.
Fora a belíssima fotografia, Iñarritu aposta, e muito, no campo da simbologia visual. Algumas funcionam, outras não, mas existe uma que ele insiste no longa inteiro quase duvidando da inteligência do espectador. Por diversas vezes o diretor nos mostra as copas da floresta de pinheiros em contra plongée simbolizando que Glass é uma árvore de raízes fortes por suportar tanta dor física e psicológica. Ele até insere duas vezes uma narração over que entrega o sentido da simbologia. Admito que isso me incomodou bastante, pois além de não ser sutil, alonga ainda mais um filme que peca no ritmo em sua segunda metade.
Aliás, há muito dessa verve inspirada em Terrence Malick. Não só pelo enquadramento das copas ser exatamente igual ao apresentado em Árvore da Vida – também fotografado por Lubezki, mas por essas diversas tentativas de Iñarritu tentar dizer muito com as imagens oníricas dos flashbacks ou na contemplação intensa que segue no segundo ato do filme apresentadas por meio de uma infinidade de soberbos establishing shots.
No melhor do trabalho da direção muito competente de Iñarritu, vem uma reflexão sobre o papel da câmera no filme. Veja, geralmente no cinema, a câmera é o ponto de vista voyer do espectador, mas aqui, o diretor oferece algo genuinamente brilhante que foge disso. Ele pega o conceito de câmera invisível de Hollywood e o subverte. As pistas são apresentadas diversas vezes no longa. Repare como o aparato cinematográfico é explicitado por tantas vezes: seja num raccord visual absolutamente fantástico envolvendo o embaçar da objetiva para então se transformar em uma nuvem gigantesca que engole uma montanha, pelos intensos lens flares, na terra jogada ou nos respingos de água e sangue que se espatifam nas grandes angulares de Lubezki enquanto faz a câmera se mover com tanta graciosidade na ação apresentada em tela.
No caso desse filme, a câmera é uma presença física. Tão personagem como todos os outros ali. Nós, espectadores, acompanhamos fisicamente a jornada de Glass em sua odisseia. Logo, por esse motivo, a técnica dos longos planos torna-se mais eficiente por prezar o realismo. Toda essa questão da materialidade da câmera enquanto personagem é explicitada no último plano do filme.
O realismo do filme não se limita apenas ao som, a fotografia e as propostas bem trabalhadas da direção. O elenco de O Regresso explora algo que raramente acontece nas produções cinematográficas: a transcendência da atuação para a realidade. Como o filme foi rodado inteiramente em locações, os atores passaram todo o desconforto possível para encarnar esses personagens brutos que viviam na natureza selvagem.
Dentre o elenco inteiro, dois se destacam: Leonardo DiCaprio e Tom Hardy. DiCaprio torna Glass essa figura sofrida no longa inteiro. Nós sentimos o frio que ele realmente sentiu na filmagem, sentimos a fome quando ele come gravetos e cascas de árvore para manter-se vivo, tememos a hipotermia ou o congelamento de peças de roupa após uma fuga perigosa no rio Missouri, sentimos a dor lancinante durante o ataque do urso. Tudo isso para mostrar a competência que DiCaprio teve ao representar isso em tela.
Ironicamente, acostumado a tantos papéis verborrágicos, DiCaprio, devido as circunstancias do estado de seu personagem, é obrigado a centrar muito de sua atuação no físico e na potência de seu olhar, além de todas as outras polêmicas divulgadas incessantemente pela mídia como comer e vomitar pedaços crus de fígado de bisão. Boa parte do segundo ato, o personagem é obrigado a se arrastar por centenas de metros e se expressar com grunhidos – algo que sabemos que DiCaprio é mestre por conta da melhor cena de O Lobo de Wall Street.
Para enfatizar bem as expressões faciais de DiCaprio, Iñarritu e Lubezki bolaram o uso um tanto inusitado do tilt focus. Repare que em algumas cenas, como na do ataque da ursa, a câmera foca apenas no rosto do ator, em grande proximidade – para se ter ideia, durante algumas cenas, o operador de câmera aproximava a objetiva apenas a dez centímetros do rosto dele – e todo o cenário que há em volta torna-se confuso, convergindo o centro da ação somente para o rosto de Leonardo. Eis a função do tilt focus, centrar ainda mais a atenção do espectador no ator.
Por mais que seja um trabalho excelente visto as limitações do personagem e de seu solilóquio, acredito que DiCaprio levará o Oscar por conta do alto padrão que ele vem apresentando em diversos outros filmes. Será um prêmio de reconhecimento pelo conjunto da obra.
Já Tom Hardy merece tanto a estatueta quanto DiCaprio. Ele complementa o personagem de forma assustadora como se tivesse nascido para o papel. Fitzgerald não é o típico antagonista que é naturalmente malvado. Acredito que Fitzgerald seja um dos melhores personagens que vimos em um filme no ano passado. Pela atuação intensa de Hardy, vemos que ele não gosta de realizar suas ações antagônicas. Ele avisa muitas vezes antes de avançar para o ataque, além de se provar um homem justo durante o conflito que ele tem com Bridger. Fora isso, vemos que ele só age negativamente quando realmente se sente encurralado. Fora que é um personagem frustrado e recalcado com Glass por não assumir o protagonismo que almeja dentro do grupo. Nisso, Hardy traz novamente seus olhares tão psicóticos e alucinadamente profundos característicos de suas atuações. No fim, graças ao carisma de Hardy, carregado pelo competente sotaque texano, Fitzgerald torna-se um personagem muito mais complexo que Hugh Glass – inclusive graças a um ótimo monólogo sobre Deus.
Fora Hardy e DiCaprio, temos performances muito boas de Domhnall Gleeson e Will Poulter que encarnam os melancólicos Andrew Henry e Jim Bridger.
O Regresso é o retrato da selvageria por Alejandro Iñarritu que prova a cada obra ser um diretor extremamente eficiente. É um filme muito subjetivo que certamente dividirá opiniões. Agora, lhes peço duas coisas: vejam esse filme na maior tela possível para contemplar o trabalho divino da cinematografia de Lubezki e comprem a ideia da sobrevivência. Se não colaborarem com a suspensão da descrença sobre o fato de Glass sobreviver a tantos infortúnios quase a ponto de se tornar um Chuck Norris, esqueça, o filme certamente terá morrido para você. Além disso, há o “problema” da inconstância do ritmo da ação do longa que pode lhe cansar e da aparente simplicidade do roteiro. Lembre-se que é um trabalho subjetivo, um exercício de contemplação que tenta provocar uma experiência cinematográfica impactante em você. Não se trata de cinema de entretenimento simples, mas sim do cinema de arte a la Terrence Malick um pouco mais apegado à narrativa.
Com este filme, Iñarritu não trabalha com contrastes simplistas. Ninguém é bom ou ruim. Iluminado ou desgraçado. Trata-se apenas da selvageria indomável da natureza do ser. Sobre o lado selvagem irracional inerente à nossa existência.
O Regresso (The Revenant, EUA - 2015)
Direção: Alejandro González Iñarritu
Roteiro: Alejandro González Iñarritu e Matt Smith, baseado na obra de Michael Punke
Elenco: Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Will Poulter, Domnhall Gleeson, Forrest Goodluck, Lukas Haas, Grace Dove
Gênero: Drama
Duração: 156 min
https://www.youtube.com/watch?v=S4PpYv9n0ko
Crítica | Taxi Driver
1976 foi um dos anos mais ilustres da Nova Hollywood, movimento que fez os filmes mais corajosos e brilhantes durante os anos 1970. Entretanto, o bom momento não centrava apenas em Hollywood. O mundo estava empenhado em entregar ótimas obras. Para ver como esse ano foi tão sublime, estreias de longas imortais como Rocky, Rede de Intrigas, Todos os Homens do Presidente, Maratona da Morte, O Inquilino, O Império dos Sentidos, Feios, Sujos e Malvados, A Profecia e Carrie, A Estranha. Porém, acredito, que poucos desses excelentes filmes se aproximem do tamanho do fenômeno que se tornou Taxi Driver.
Nas noites frias e escuras de Nova Iorque, um taxista circula pelas entranhas da cidade. A melancolia o persegue acompanhada da repulsa que sente por todos à sua volta. Completamente sem perspectiva, Travis Bickle pretende assassinar um político a fim de mudar sua vida. Porém, um encontro inesperado com uma jovem prostituta muda seu destino amaldiçoado.
Para entender Taxi Driver como um todo, é preciso entender a vida pessoal naquele momento de Martin Scorsese e do roteirista Paul Schrader. Não é por mera conveniência narrativa que os dois criaram um dos melhores personagens de toda a cinematografia mundial. Há muito de Schrader e Scorsese – até mesmo de De Niro, no solitário Travis Bickle.
A relação de Taxi Driver com Scorsese é antiga. Ele implorava para dirigir o filme desde 1972 enquanto o roteiro estava nas mãos dos produtores que refletiam na melhor pessoa para dirigir tamanha obra densa que certamente seria um retumbante fracasso. Porém, a sina de Scorsese e forte. Com a recepção calorosa de Caminhos Perigosos e Alice Não Mora Mais Aqui, os produtores finalmente cederam pela pressão de Scorsese em dirigir o filme. Em 1974, enfim, um dos melhores filmes de todos os tempos, começava a ser produzido.
Durante a concepção do roteiro, Schrader pegou muito do seu íntimo e colocou no papel. Toda a melancolia, a fixação por armas, a tentativa de suicídio, a depressão, as noites passadas em claro por remédios, a alienação de Travis vem da vida conturbada de Schrader. Não é por menos que Scorsese tenha se identificado tanto com a desventura de Travis também. Em Los Angeles, Scorsese sentia-se sozinho, passava por um período muito complicado envolvido demais com cocaína e bebedeira. Estava se perdendo no típico descontrole pessoal, financeiro e psicológico que abocanhou muitos realizadores nessa época de ouro hollywoodiana – para se ter uma ideia, apenas De Palma, Spielberg e Lucas não caíram na armadilha das drogas e da fama nessa época. Esse período sombrio da vida de Scorsese só se encerraria após a conclusão de Touro Indomável quando quase morreu de overdose.
Nessa união tão intensa e apaixonada por se verem retratados na depressão de Travis, também entra De Niro. Mesmo com segredos melhores guardados, algo afetou De Niro. Ele cobrou um cachê ínfimo logo após ter recebido seu merecido Oscar em O Poderoso Chefão 2. Sua boa vontade com o projeto foi recompensada quando Scorsese tomou Touro Indomável para dirigir – era um roteiro que De Niro insistia com todas as suas forças para que o diretor pegasse para si desde 1974.
O roteiro de Schrader, talvez por ser tão pessoal, é algo impecável. Um dos acertos mais genuínos que podemos ter o privilégio de assistir. Entenda, eu não absolutamente nenhuma ressalva com Taxi Driver por mais chato e criterioso que eu seja. É uma das obras máximas da minha época favorita da História do Cinema. Não só a história que tem inspiração no assassinato dos Kennedy nos anos 1960, mas pela profundidade apresentada em Travis Bickle mesmo sendo um personagem contido sempre centrado em apenas um conflito: como ser relevante mesmo sendo um loser alienado? A magia de Taxi Driver vem muito do nosso não conhecimento sobre diversas coisas.
Nós nunca sabemos o passado de Travis, mesmo que praticamente o filme inteiro é contado através de seu ponto de vista, mas há a suspeita dele ser veterano da Guerra do Vietnã – principalmente por conta do moicano que ele adota no fim do longa. Pela própria natureza calada do protagonista, o pouco que sabemos vem através da narração over justificada pelo diário no qual ele aparentemente escreve em algumas passagens. Através dele e, também da direção impecável de Scorsese, descobrimos que o personagem é racista, tem ódio a prostitutas, além do desejo assassino em “limpar” as ruas de Nova Iorque. Enfim, a disseminação da mente doentia de Travis é realizada com competência. Exterminar a todos que ele julga inaptos a viver em sociedade.
Porém, com muita esperteza, Schrader não transforma Travis em um estúpido superficial que tem ódio do mundo. No cerne de dois conflitos, o protagonista passa a ter um vislumbre, um desejo de uma vida melhor. Ele sente vontade em mudar os rumos decadentes de seu cotidiano. Isso se dá quando ele se apaixona por uma gerente de campanha do político Palentine, Betsy. Para entender como o romance é completamente flácido desde o primeiro contato direto de Travis com Betsy, é preciso notar o grande trabalho de Scorsese na direção.
Repare que na cena que ocorre no encontro da cafeteria, Scorsese, quando toma o ponto de vista de Travis, sempre enquadra o campo que observa Betsy com o ombro de Travis emoldurando o enquadramento. Já quando tomamos o ponto de vista de Betsy para definir o contracampo da cena – este, observando Travis, ela nunca está incluída na moldura como referência. Isso indica como, na verdade, nunca os personagens possuem alguma ligação romântica sequer contradizendo completamente o discurso truncado de Travis em inferir uma conexão amorosa forte com a personagem. É uma ironia fantástica que já indica o quão cínico o filme se tornará em sua conclusão. O texto de Schrader, para definir o diálogo, é inteligente em sempre fazer Travis puxar vários assuntos, small talk, a fim de estabelecer a tentativa da conquista amorosa. Nesse primeiro instante, é muito lógico que aquele romance está fadado ao fracasso. Pior, a técnica de Scorsese é tão cruel com Travis que desiste do plano conjunto que unia os dois assim que o protagonista faz uma piada ruim para Betsy, mas o retoma para concluir a cena quando ela aceita sair para um segundo encontro onde novamente Schrader explicita uma característica definidora de Travis: a sua alienação.
Nesse interim entre um encontro e o outro, Schrader introduz pela primeira vez outra personagem fantástica inspirada em uma jovem prostituta que ele conheceu: Iris. A relação da menina com Travis foge completamente do convencional, pois sua presença no longa é intermitente: ela some e aparece justamente quando pensamos o que teria ocorrido com ela. Em todas as vezes que assisto Taxi Driver, isso acontece. Me pergunto onde está Iris para então ela surgir em suas primeiras cenas envolvidas em mistério. É uma cadência absolutamente perfeita como se fosse mágica. O roteirista sabe precisamente onde inserir os momentos corretos para retomar o arco de Iris. Como ficamos sempre centrados com Travis, os retornos com Iris são brevíssimos.
Nas sequencias destinas à apresentação do cotidiano e rotina de Travis, acertadamente Schrader não se preocupa em traçar histórias marcantes de passageiros, afinal essa nunca foi a proposta do filme. Na verdade, mais vemos Travis isolado em seu táxi durante as horas de trabalho. Porém, um encontro é vital para transformar o personagem de depressivo em psicopata.
Com o homem misterioso ansioso em matar sua mulher infiel – interpretado muitíssimo bem por Martin Scorsese por falta de opção, Schrader trabalha pela primeira vez com a descontinuação de um arco, além de reapresentar a subjetividade. No discurso do Homem, ele cita a Magnum 44. Para Travis, o modelo da arma permanece em sua mente, além de teor assassino da conversa. Não interessa ao protagonista se ele matou a mulher ou não. Só a violência permanece.
Algo que é recorrente no texto de Schrader é a solidão auto imposta do protagonista. Em diversos momentos-chave do longa, vemos ele flertando com a ideia de ter alguma companhia romântica – tudo muito sutilmente inserido em sequências noturnas que focam em slow motion, alguns casais e mulheres. Fora isso, há diversos encontros com outros taxistas que sempre tentam incluir Travis no papo. Nada é inferido no texto, mas pela câmera e da atuação monstruosa de De Niro, é possível detonar que o personagem acredita que não merece nenhum tipo de carinho. Ele se sente deslocado de todo o ambiente. É completamente sem perspectiva.
O segundo encontro de Travis com Betsy ao leva-la para ver um filme pornográfico explicita de vez sua alienação e isolamento imposto por si próprio. A partir daí, por conta desilusão amorosa, Schrader passa a investir no “plano” de Travis em assassinar Palantine. Nessa sequencias, vemos diversos rituais do protagonista. Seja nos treinamentos com as armas, na criação de engenhocas que revelam um talento esquecido do personagem e sessões de condicionamento físico – todas acompanhadas de narração over.
Nessas sequências há peças que tornam cinema em Cinema. Por exemplo, quando Travis aparentemente escreve uma carta para seus pais dizendo que está vivendo bem e vendo oportunidades boas para o futuro. Durante o discurso, somente imagens de Palantine aparecem em tela. A ideia fixa do assassinato persegue sua menta insana. As contradições marcam sempre esses discursos do diário apresentados nos rituais. Travis diz que precisa ficar saudável, mas se entope de remédios para ficar acordado, além de sua mente já estar comprometida. Ele flerta com sua autodestruição. No ápice de sua loucura, Travis conversa consigo mesmo no espelho.
Trata-se, claro, da cena antológica que Robert De Niro improvisou em um dos ensaios. You talkin to me? No texto de Schrader, estava escrito apenas “Travis se encara no espelho e conversa sozinho”. Os olhares psicóticos e de fascinação de De Niro em sua performance assombrosa, revelam a sua relação amorosa platônico com as armas de fogo.
A elaboração textual de Taxi Driver é tão intrínseca à direção que julgo impossível separá-las uma da outra. Scorsese faz o texto de Schrader crescer assustadoramente com seus lances muito espertos de mise en scene que toma emprestado referencias que cercam o cinema noir de 1945 a 1955 até a nouvelle vague de Jean Luc Godard – algo tão forte em Taxi Driver que é impossível não notar o emprego de um enquadramento godariano como no caso do zoom in no copo com o tablete efervescente sugerindo, visualmente, a completa alienação e isolamento do personagem com todos ao seu redor.
Mesmo sendo um filme de ficção, Scorsese e Schrader conseguem quebrar a barreira disso o tornando em um documento histórico. A fotografia rude de Michael Chapman revela as avenidas sombrias de Manhattan, da nojeira das ruas repletas de sujeira, além de evidenciar a abundância de pornografia e prostituição. Em seu tom mais artístico, captura com desfoques diversas fontes de luz através de um vidro embaçado conferindo tonalidades psicodélicas e misteriosas para a cidade.
Um retrato porco para um Nova Iorque suja. Essas cenas que exibem a cidade não são encenadas. Aquilo ali é a Nova Iorque dos anos 1970 pré-loteamento da Disney e das políticas de segurança de Giuliani que alteraram completamente o cenário da cidade e da Times Square. Apesar da violência não ser apresentada nas ruas, ela vem diretamente do protagonista já em tom premonitório que sugeria os mais elevados índices de violência urbana da história dos EUA em Nova Iorque no fim dos anos 1970 e a década inteira de 1980. Ou seja, além de ser uma obra cinematográfica extremamente relevante, Taxi Driver é um documento antropológico de visão niilista.
Essa vibe de Godard se faz presente também pela liberdade que os produtores deram a Scorsese em realizar a obra. Sim isso, a Manhattan de Scorsese não se tornaria na Paris de Acossado. Para ilustrar a solidão de Travis, raramente ele o enquadra com outros personagens. Sem fugir da regra, quando ele é obrigado a interagir com outros, Schrader enche a cena com diálogos incômodos e pouco naturais. A fim de deixar essas cenas mais desconfortáveis, Scorsese as sustenta com poucos planos, às vezes resolvendo a cena com um plano apenas valorizando o realismo – isso ocorre quando Travis atira em Sport pela primeira vez.
Outras vezes, Scorsese quebra padrões da linguagem. Ele costuma abandonar Travis do enquadramento para focar outras coisas. Isso ocorre duas vezes, uma no começo do filme, na garagem dos táxis e outra quando ele liga para Betsy ao tentar uma segunda chance. Nesse momento da ligação, o diretor faz um trevelling para a direita enquadrando um corredor que dá para a rua. A simbologia é forte. O teor da conversa é patético então o diretor já adianta para a plateia do fracasso do protagonista que só tem a rua como companheira noturna. Não é sutil e pode causar estranhamento, mas é preciso interpretar bem Taxi Driver para ter a catarse cinematográfica – algo que raramente ocorre, mas aconteceu comigo com este filme.
Diversas vezes, Scorsese representa visualmente a paranoia de Travis e, também, seu racismo. Geralmente utilizando slow motions, Scorsese faz a câmera encarar Travis ao circundar sua figura. No contracampo, a câmera mostra quem o personagem encara: geralmente negro e prostitutas – nesse caso, o racismo é sugerido pelos olhares de De Niro. Aliás, o olhar é algo apresentado diversas vezes por enquadramentos sutis que focam nos retrovisores do carro em closes.
Já com Iris, o personagem fica mais solto e menos incomodado. Gosto de como Schrader faz ele ajudar uma prostituta pré-adolescente quebrando o preconceito com as mulheres do ramo. Só contribui mais em fazer Travis esta contradição ambulante durante o longa inteiro. Em Iris, novamente os dois trabalham com a subjetividade, a cruel ironia, além das metáforas visuais. Assim como com todos os personagens, Schrader oferece um backstory restrito para Iris – sabemos que ela fugiu de casa por ser infeliz com a família. Nisso, entra Travis em sua tentativa dúbia para salvar a vida da menina.
No início da conversa no café – o diálogo mais natural do filme inteiro, Iris usa um óculos verde. Enquanto usa esses óculos, a personagem defende ferrenhamente seu estilo de vida e o cafetão, não acredita que ele seja um assassino e recorre à astrologia para embasar seus argumentos (escapismo pelo horóscopo). Com a insistência de Travis no assunto, ela passa a ver que seu estilo de vida não é saudável – isso se dá através da ótima atuação de Foster. Então, na conclusão da cena, passa a usar óculos azuis. Nisso, é possível interpretar que a personagem sofreu algum grau de transformação, afinal, seu “olhar” foi alterado.
Imediatamente, Scorsese insere uma cena que não estava originalmente no roteiro. A única que não temos o ponto de vista de Travis – mesmo que ele esteja de tocaia fora do prédio. Pela primeira vez, vemos uma cena por outro prisma. Nela, observamos a interação do cafetão Sport com Iris à sós. A maioria do diálogo é improvisado e comprova como o encontro com Travis afetou o âmago de Iris. Ela confessa que não gosta do que faz para Sport, não se sente confortável com isso, porém a cena revela certa ternura e carinho de Iris com o cafetão – espécie de síndrome de Estocolmo. É inferido que ela possa estar apaixonada por ele. Já com Sport, é muito subjetivo denotar se há carinho genuíno pela menina ou se trata apenas de manipulação barata, afinal a palavra de um pedófilo, cafetão e traficante não é nada confiável.
Aliás, a ironia se faz presente no cenário do quarto onde Iris realiza os programas. É extremamente confortável, a fotografia ilumina de modo romântico e aconchegante e é organizado. Um ambiente agradável para um lugar onde acontecem eventos desagradáveis.
Essa cena que acompanhamos a relação Iris/Sport é extremamente necessária para tornar a catarse do clímax ainda mais obscura, ambígua e cínica. Com o fracasso da tentativa de assassinato ao político e ainda impregnado pela sede em matar, Travis se dirige ao sangrento fim do filme. O clímax é apressado e chocante como um assassinato de rua. Travis chega e mata todos que estão no lugar, menos Iris. Aí que a mensagem do filme brilha intensamente. Schrader faz as mesmas balas que matariam o político atingirem a carne dos pedófilos vindos do submundo. Travis “limpa” as ruas de Nova Iorque como disse que faria, mas isso não partiu de seu herói interno. Ele simplesmente mata pelo prazer, na ânsia de matar alguém, mas mata “corretamente”. Já com Iris, Schrader oferece uma carta enviada por seus pais agradecendo o “resgate” do taxista, porém, como boa parte da intepretação de Taxi Driver é subjetiva, não há como afirmar plenamente se Iris está plenamente feliz ao retornar para sua família.
Ai vem a ironia. Travis sobrevive, não é preso ou condenado pela ação. O anti-herói é alçado como herói. O doente psicopata é glorificado pela mídia sensacionalista. Nas ultimas cenas, Schrader e Scorsese apresentam um Travis mais “tranquilo” e normal. Agora ele conversa com seus amigos. Porém, em seu último lance genial de direção, Scorsese insere um zunido bizarro enquanto o taxista dirige pelas ruas igualmente sujas e inseguras. Frisando o retorno do olhar paranoico, Scorsese deixa claro que o protagonista matará novamente. É absolutamente brilhante. Algo tão genial quanto a representação visual da propagação do som do tiro que explode a mão do porteiro do puteiro. Ou na dilatação do clímax em slow motion fazendo a câmera explorar todo o banho de sangue acompanhada pela fotografia sépia que simula um visual de tabloide. Essa atmosfera toda do final é hitchcockiana, não apenas por ser decupada em triple take, mas também pela hipnose e da sugestão da violência que fora explícita momentos antes. E, claro, também pela música do compositor favorito do mestre do suspense: Bernard Herrmann.
Terminar um texto tão minucioso sem comentar a música de Herrmann seria uma completa vergonha. Herrmann morreu momentos após terminar a trilha musical do filme. Nunca teve a oportunidade de ver seu trabalho representado na tela, mas terminou sua impecável carreira com mais um arranjo de mestre. A música contribui, e muito, para tornar Taxi Driver nesse suspense noir. O que mais marca, com absoluta certeza, é a doce melodia de seu jazz memorável. Uma melodia sexy, formosa, púrpura, sensual e segura – um reflexo do que a figura de Betsy representa na mente Trevor. Faz sua mente insana trabalhar com tons melódios românticos e charmosos. Porém, trata-se de uma história sobre a psicopatia, a violência e a loucura. Tão logo, Herrmann oferece diversos temas que exploram isso, inclusive interrompendo a melodia comportada de seu jazz inferindo a força da doença de Travis. Temas sombrios, constantes que parecem perdidos, mas seguem em tom decrescente rumo a um futuro incerto. A pontuação da violência e da loucura sempre é modelada pelo rufar dos tambores marchantes e do tom onírico, quase letárgico, das harpas.
Na história, Taxi Driver revelou-se um sucesso de crítica e de público, mas sofreu bastante no Oscar. Isso se provou completamente irrelevante. O filme uma obra de arte atemporal. Nos afeta da mesma forma com a genialidade do texto caprichado de Paul Schrader e da direção acertada de Scorsese.
Crítica | O Quarto de Jack
A alegoria da caverna descrita por Platão no livro A República é uma das melhores lições fornecidas pela filosofia grega. O mito tem uma mensagem tão impactante sobre a percepção humana com o “real” que rapidamente as artes, principalmente o cinema, absorveram a essência da filosofia a apresentando de outras formas. Belíssímas obras foram montadas com base na alegoria do Platão: O Show de Truman, Pacto Sinistro, A Ilha do Medo, Sinedóque, Nova Iorque, Ex Machina, Dente Canino e Matrix, considerado até então o melhor filme a explorar a filosofia platônica.
Trabalhando também com base em Platão, O Quarto de Jack traz a história de uma mãe e seu filho. Ao contrário do cotidiano normal que deveria contemplar toda vida humana, Jack e Joy vivem confinados em um quarto. Para Jack, o mundo é o quarto, pois ele nunca conheceu o mundo externo. Seu mundo se limita apenas a pia, ao armário, a cama, a geladeira, a televisão e a claraboia que ilumina o diminuto aposento. Quando o garoto finalmente alcança os cinco anos de idade, Joy decide que é hora de escapar do confinamento.
Em uma ocasião pouco comum no cinema, a adaptação de O Quarto de Jack teve a sorte de ser escrita pela mesma autora do material original. Logo, todo o texto consegue ser fiel ao livro – um pouco menos detalhado. A roteirista desenvolve o filme sempre a partir do ponto de vista único de Jack. Seu talento em explorar situações complexas, traumas e temas sombrios transmitidos com tanta leveza é algo absolutamente exemplar. Ao contrário de filmes como Indomável Sonhadora que romantizam a figura do protagonista além da conta, Emma Donoghue faz Jack, de fato, uma criança normal.
O filme é contextualizado diversas vezes através de uma narração over, porém, ela não situa ou beira o didatismo. O uso é diferenciado voltado apenas para mostrar algo similar a um fluxo de consciência do personagem. Não há dúvidas, Jack é um protagonista encantador. Ele soa como uma criança e não como um adulto infantilizado. Jack faz birra, chora, tem momentos de egoísmo, nega a verdade, ou seja, em essência, ele não é perfeito e maravilhoso. Para mim, isso engrandeceu o personagem, pois é fácil romancear demais com papéis infantis transformando esses protagonistas mirins em poços de sabedoria apaixonada e idealista se limitando em serem criaturas insuportáveis.
Todas as raras vezes que ela romanceia Jack, tem propósito. Mostram os sentimentos do garoto em relação ao confinamento que são, em suma, positivos. Jack ama o seu quarto. Porém o brilho narrativo se dá com a exploração muito refinada de seu relacionamento com a mãe. Através desse dinamismo, conhecemos a rotina dos dois, da preocupação dela em criar um ambiente mais favorável ao garoto diante de uma realidade difícil. Nesse trabalho de rotina, Donogue toma bastante tempo para apresentar o motivo do confinamento. O mistério ronda o início do filme e, obviamente, nos cativa. Isso inclui, até mesmo, algumas ações que os dois fazem em sua rotina que tem pouco sentido do momento, mas que, após a reflexão da revelação do aprisionamento, encaixam com perfeita naturalidade.
Não se engane pelo pôster, O Quarto de Jack trata sobre temas muito complicados e sombrios. Isso se torna claro no segundo ato do longa quando enfim a verdade vem à tona. Descobrimos que Joy fora sequestrada e vive nesse desconforto por anos. Como o filme trabalha somente em cima do ponto de vista de Jack, a roteirista define com sutileza os horrores que Joy é obrigada a viver pelos abusos de Old Nick, o sequestrador. Também, pela mesma razão, ela abre mão da lógica em favor do lirismo. Logo, apesar da representação de Nick ser deveras interessante e complexa, acaba mal aproveitada – isso inclui o desfecho totalmente ilógico do arco da escapatória de Jack do quarto assim como na conclusão preguiçosa do destino do personagem.
Quando enfim ela passa a trabalhar na construção da fuga, passa a apresentar mais esse sentido mais filosófico da alegoria da caverna através de diálogos bem firmados com Joy tentando explicar como é o mundo para Jack que insiste na alienação. Isso resulta em um bom drama. Depois da fuga do garoto, fica claro que a roteirista aborda o seu texto entre a primeira parte centrada no confinamento e na segunda parte que explora o desdobramento de sua fuga, além do primeiro contato de Jack com o mundo.
Nesse segundo momento, o roteiro perde um pouco de sua tremenda força. Donoghue passa a investir nos contrastes entre Jack, encantado com o mundo, e Joy, desiludida. Enquanto um segue para um caminho mais apaixonado, a outra trilha para cantos obscuros e melancólicos. Isso também envolve o teor da memória que ambos têm do quarto onde passaram tantos anos. A interação passa a ser mais plural também, afinal outros personagens entram na história. Sutil como sempre, Donoghue constrói um novo Jack com características muito interessantes também. Propositalmente, Joy perde o brilho de outrora.
A roteirista passa a criar diversos conflitos entre Joy e outros personagens, mas vai abandonando todos progressivamente com pouca ou nenhuma conclusão. O mais absurdo desses casos concentra-se no dilema que o pai de Joy enfrenta com Jack. É algo muito profundo e que certamente renderia um drama incomum e corajoso, porém, ela desiste do conflito fazendo o personagem desaparecer.
Até mesmo durante um momento trivial da narrativa – na verdade o último conflito real e reviravolta impactante do filme, ela retoma o lirismo prejudicando a narrativa tornando o texto muito preguiçoso. A desculpa do longa se passar pelo ponto de vista de Jack permite esse tipo de descuido, mas ainda assim, não deixa de ser algo lamentável, afinal trata-se de um longa muito especial.
Assim como o texto de Donoghue, a direção de Lenny Abrahamson – diretor de Frank, é feita com sutileza. Seu andamento para o filme é praticamente perfeito. O cineasta não toma os holofotes para si, mas sim para o que está gravando. Na primeira parte do filme, Abrahamson, com uma decupagem muito sábia, não torna os enquadramentos do Quarto claustrofóbicos. Ele opta sempre em mostrar partes do aposento, nunca o enquadrando por completo com um mastershot por exemplo. Isso tem um propósito – não é somente o texto que toma o ponto de vista de Jack para si, a cinematografia também faz.
Como naquele momento, tudo o que o menino conhece é o quarto, o cineasta e o design de produção tornam o ambiente em algo agradável no limite do possível. Aliás, ele também colabora inserindo com esperteza uma claraboia no aposento auxiliando diretamente a fotografia sempre dessaturada, azulada e fria de Danny Cohen.
A vertente visual de Abrahamson vem diretamente do cenário indie então é inevitável que sua decupagem e mise en scene sejam típicas do nicho. Logo, temos diversas cenas elaboradas com poucos planos, pois o cineasta prefere apostar na mobilidade irrestrita e instável da câmera. Às vezes, trabalha com uma variação um tanto preguiçosa dos clássicos jump cuts. O diretor sabe bem o que faz, estabelece a atmosfera, por vezes monótona, com maestria com diversas sequencias em montagem para exibir a rotina de mãe e filho dentro do quarto. Na segunda parte, ainda trabalha com o confinamento, só que este centrado na casa dos avós de jack. A sua câmera não se torna expansiva mesmo depois da libertação dos dois.
O que mais achei interessante no trabalho de Abrahamson é essa abordagem do ponto de vista do garoto. É algo muito bem construído. Raramente ele abandona a sutileza dessa assinatura, mas quando o faz, é algo que contribui para a narrativa a fim de ilustrar o sentimento do personagem. Nisso, ele constrói a cena que julgo ser uma das mais poderosas que eu já tenha visto em minha vida – algo no nível da antológica sequência quando Forrest corre pela primeira vez se liberando das parafernalhas que lhes garantiam a sustentação.
Trata-se, obviamente, quando Jack consegue fugir do quarto. Ali, o diretor mostra um mundo borrado e desfocado em pequenos vislumbres subjetivos. Jack não compreende nada daquilo a ponto de não enxergar. Ainda com base nisso, ele apresenta outra grande sacada: a dilatação temporal. As cenas que decorrem desse pequeno arco da libertação do menino são extremamente angustiantes, pois elas são lentas e torturantes – ainda que tenham sentido tao belo e próprio. É um trabalho muito perspicaz de direção. Se tirasse somente esse trecho do filme lhe transformando em curta, eu não hesitaria em confiar cinco estrelas.
Ao fim, no que tange à imagem, Abrahamson nos apresenta pela primeira vez o verdadeiro tamanho do quarto com um sutil mastershot. O diretor também merece seus louros pelo magnifico trabalho com o elenco. Se uma das coisas que aprendi de fato na faculdade foi evitar trabalhar com crianças pela dificuldade exemplar em orientá-las, além de toda a burocracia para fazer a magia acontecer. Porém, o cinema de Abrahamson tira o melhor possível de Jacob Trembley, o garotinho que interpreta o pequeno Jack.
Seu trabalho é ímpar a ponto de até eclipsar a performance melancólica e triste de Brie Larson. O moleque acerta em tudo. Pega para si a realidade do personagem de modo assustador. Com Trembley, é fácil acreditar que Jack realmente nunca tenha visto o mundo antes pelos olhares assustados e acuados do ator. Há pontuações muito nítida em sua performance. No começo, ele apresenta a figura encantadora do menino inabalável e apaixonado pela vida mesmo que esta seja um tanto deprimente. Ele ama o Quarto. Porém, assim que escapa e passa a se recuperar do trauma oriundo do choque de realidades, Trembley desenvolve a mistura perfeita entre medo, aversão e fascinação por tudo aquilo que o cerca. Na última peça do longa, há um regresso a sua versão encantadora do primeiro momento, mas com diferenças muito sutis. É e não é o mesmo personagem, pois certa maturidade foi adquirida até o momento.
Lhes confesso, o Oscar deu uma baita colher de chá para Leonardo Di Caprio e seu Hugh Glass, pois se Trembley fosse sido indicado ao prêmio de Melhor Ator, o sonho de Di Caprio seria adiado mais uma vez. Uma esnobada cruel da Academia. Porém, há o mérito de terem reconhecido a performance muito boa de Brie Larson que provavelmente ganhará sua primeira estatueta. É um trabalho merecido, mas é uma pena que o longa não explore diversas facetas de Joy. Larson trabalha com variações de olhares cansados e tristes, além de ser igualmente capaz de tornar a dor de sua personagem em algo tão palpável.
O Quarto de Jack foi o filme que, disparadamente, mais me agradou nessa corrida de Melhor Filme do Oscar de 2016. O trabalho de mestre está em absolutamente todas as áreas desse longa. A direção é impecável com sua sensibilidade em deixar tantos horrores nas entrelinhas de uma grandiosa história de amor. O roteiro apresenta pontos fantásticos com a alegoria da caverna, além de ser essa explosão intensa de emoções apresentadas em diversas cenas. Apenas peca em desistir de focar conflitos tão importantes oferecendo um desfecho satisfatório. Até mesmo a trilha musical Stephen Rennicks nos oferece temas absolutamente memoráveis chegando a elevar cenas para um estado de pura arte. Prepare-se para a experiência emocional que este filme é.
É um longa que acerta muito em nos deixar virar parte de tudo aquilo em vez de apostar no convencional centrando a experiência apenas na observação da desgraça alheia, afinal não seria nada condizente com a mensagem do filme: o amor incondicional, altruísta, pleno, imortal e infinito.
Crítica | Horas Decisivas
Uma das melhores ocasiões que um crítico pode experimentar durante as cabines dedicadas à imprensa é a surpresa. Isso raramente ocorre e precisa de uma junção de fatores quase cósmicos para dar certo. Eu preciso estar de bom humor (algo raro), sem sono (mais raro ainda), não devo ter absolutamente nenhuma expectativa positiva com o longa e, claro, o filme tem que se provar como, no mínimo, algo capaz de prender a minha atenção. No dia da sessão de Horas Decisivas, tudo isso aconteceu. Um milagre da Disney, de fato. Não tenho a menor vergonha de admitir, eu gostei muito da experiência proporcionada por este longa.
O roteiro é inspirado no livro homônimo de Casey Sherman e Michael J. Tougias sobre a história real do então considerado resgate mais heroico da guarda costeira americana. Um feito que, desde 1952 até hoje, permanece intocado. Trata-se da missão suicida de Bernie Webber, integrante da guarda costeira, em encarar a tempestade perfeita para salvar diversos marinheiros que ficaram presos após seu navio tanque ser partido ao meio pelo mar revolto. Isso tudo, claro, sob temperaturas congelantes do inverno implacável de Massachusetts.
Por algum milagre, o roteiro de Horas Decisivas não decepciona mesmo sendo escrito a seis mãos. Ele cumpre o que promete: é uma boa história de aventura, superação das adversidades e romance presentes nos filmes atemporais da Disney. Ele começa de modo pouco convencional tomando tempo considerável de tela para enfim jogar a ação da catástrofe que atinge o navio tanque e, consequentemente, no resgate.
O primeiro núcleo narrativo concentra-se numa história de amor deliciosa, fofa e ingênua entre Bernie e sua namorada Miriam. O trio de roteiristas desenvolve bem a aura inocente do romance dos dois – algo tão puro e piegas como as histórias antigas de princesas das animações do estúdio. Há até mesmo uma fuga de clichês, pois eles centram uma inversão de papeis no que tange a proatividade da dinâmica do casal. Geralmente é Miriam quem toma as decisões difíceis, é mais segura de si e um pouco mais extrovertida. Um role model de girl power sem quebrar a verossimilhança com as limitações impostas ao papel feminino na cultura de 1950.
O segundo núcleo destina-se à tripulação sobrevivente do rompimento do navio. Aqui eles concentram a ação já que se trata de um jogo de vida ou morte que pode terminar em questão de poucas horas. Horas Decisivas. Além do drama circunstancial que já torna os personagens em algo mais do que boçais em um navio, o trio investe em drama humano com base em alguns dos coadjuvantes. Ray Sybert, o chefe de máquinas que é promovido a capitão, é o melhor desenvolvido nesses momentos de tensão ao saborear a responsabilidade em manter o navio flutuando pelo maior tempo possível.
Como se trata de um filme de circunstancia como Godzilla, Independence Day, No Coração do Mar, etc. realmente os personagens saem prejudicados, pois na hora que a ação surge, eles ficam definidos apenas em seus papeis funcionais na narrativa entre heróis e pseudo antagonistas. Não posso desmerecer os esforços dos roteiristas em tentar utilizar bem ou aprofundar outros personagens. Com Bernie, há sempre a forte sugestão de um trauma do passado oriundo de uma tragédia que ele se sente responsável – é funcional, pois motiva o heroísmo de Bernie, porém a conclusão disso é fraca e o arco não deixa de ser uma bela “encheção” de linguiça.
O interessante mesmo se dá com as muitas tentativas de Miriam em tentar contatar Bernie quando ele parte para o resgate dos marinheiros nas piores condições possíveis. Apesar da obstinação de Miriam em quebrar tabus ser legítima e interessante, há muitas cenas dedicadas a esse arco que logo se torna repetitivo. Também é uma pena que eles não tentem dar mais interações a Bernie. O nosso protagonista calado praticamente só interage com sua namorada. Com os amigos, chefes e colegas de trabalho, se limita a diálogos rasos e rápidos. Até mesmo nas cenas dedicadas à redenção do personagem ao se lançar na busca, não há a catarse poderosa com a confrontação de um colega que joga olhares condenatórios ao herói durante a tempestade. Também há núcleos que forçam conflitos jocosos que só servem para enervar o espectador como Miriam vs Daniel Cluff e Sybert vs Wallace.
Entretanto, mesmo com esses deslizes tão característicos dos disaster movies, Horas Decisivas tem um roteiro bem redondinho que amarra as principais pontas soltas de modo satisfatório. Muito da nossa empatia com os personagens vem graças à competência do elenco. As performances de destaque centram as atuações contidas de Chris Pine que confere a faceta tão ingênua e calma de Bernie provando sua versatilidade como ator, de Casey Affleck com o determinado Ray Sybert e da belíssima Holliday Grainger que oferece tanta vida para as explosões controladas da forte Miriam. Os três seguram o filme com muita segurança. Aliás, eles tornam-se protagonistas de seus arcos por conta da natureza interpolada do longa.
Mesmo com um roteiro bom, seria fácil tornar Horas Decisivas em um decisivo desastre com a direção errada, mas por muito tino cinematográfico a Disney/Buena Vista retomou a parceria com o Craig Gillespie (?). Para quem desconhece, ele é o responsável pelo remake de A Hora do Espanto – um longa do qual eu gosto muito. O desconhecido diretor surgiu, assim como Colin Trevorrow e Gareth Edwards, do cenário indie com A Garota Ideal, outro bom filme.
Não é à toa que Gillespie virou a escolha segura para uma ascensão orçamentária com longas mais desafiadores tecnicamente a cada nova obra. Ele de fato é um diretor que joga conforme as regras – play by the book. Sua técnica é impecável com noções muito clássicas de enquadramentos, sequenciamento visual de cenas de ação e do bom uso da cinematografia soft de Javier Aguirresarobe.
O diretor torna o longa em uma experiência agradável com pontuações muito equilibradas da comédia, drama, da tensão e do perigo iminente à situação desesperadora do protagonista. O espetáculo visual, tão estimado pelo nosso cinema contemporâneo, se faz presente, mas não se trata de momentos gratuitos a la Transformers. Gillespie é esperto em preparar as cenas para culminar na ação explosiva – algo derivado da técnica de Tony Scott. Nisso, entra o ponto fora da curva de sua direção: o uso do som a favor da narrativa fugindo de seu uso primário.
O uso inteligente da mixagem de som aparece em três momentos-chave o que já pode inferir, até mesmo, em um embrião de marca autoral de Gillespie. A primeira se dá com o zunido provocado pela fissura recém soldada do casco do navio tanque indicando a iminência do desastre. Depois, por meio do barulho aterrorizante de um perigoso baixio que o Bernie tem que enfrentar para seguir mar adentro elevando a tensão da cena. Na última vez, há o barulho grave dos metais escancarados do navio que servem para iniciar a conclusão do longa.
Há até mesmo bons vislumbres de enquadramentos de metáforas visuais. Em certo momento, quando Sybert convoca uma reunião com os marinheiros, Gillespie apresenta o personagem, sentado, parcialmente eclipsado pelas pernas dos demais na sala. Esse plano remete diretamente a um anterior que apresenta a fissura ao público pela primeira vez. Nessa junção, o diretor emenda a tragédia com o nascimento de uma responsabilidade além do cargo original do personagem.
Horas Decisivas é um longa muito agradável. Passa rápido, é divertido, tem emoção e tensão nas doses certas, os deslizes do roteiro são típicos do gênero como a saturação de personagens, além do trabalho na margem de segurança, mas que entrega uma excelente história de heroísmo inspiradora. O elenco é competente, o design de produção entrega cenários realistas, os efeitos visuais são bons e há a presença da marcante e sensível trilha musical de Carter Burwell.
Ou seja, não há erro com Horas Decisivas. É um filme que não tem vergonha de ser o que é, dessa beleza simples, despretensiosa que reconhece suas diversas limitações para culminar em algo leve e agradável.
Horas Decisivas (The Finest Hours, EUA, 2016)
Direção: Craig Gillespie
Roteiro: Scott Silver, Paul Tamasy, Eric Johnson baseados no livro de Casey Sherman e Michael J. Tougias
Elenco: Chris Pine, Casey Affleck, Ben Foster, Eric Bana, Holliday Grainger, John Ortiz, Kyle Gallner, John Magaro, Graham McTavish, Beau Knapp, Josh Stewart
Duração: 117 minutos.
Crítica | 13 Horas: Os Soldados Secretos de Benghazi
Apesar de condenarmos clichês mal utilizados, nós, críticos de cinema, cometemos clichês. Isso varia desde picuinhas com roteiristas ou diretores. Mas a modalidade favorita de muita gente que analisa cinema é falar mal de Michael Bay, com ou sem razão. Para mim, Bay é um diretor que oscila muito em sua qualidade. Parece ser um cara que se empolga tanto com seus projetos que os acaba estragando. Dando um hiato de sua péssima cinessérie Transformers, Bay volta a trabalhar com uma história baseada em fatos reais. Seu último filme desse nicho foi o impagável Sem Dor, Sem Ganho comédia de humor negro que eu recomendo.
Em 13 Horas, Bay e o roteirista estreante Chuck Hogan trabalham em cima do livro de Mitchell Zuckoff sobre o ataque de terroristas contra uma espécie de embaixada americana provisória e ao complexo secreto da CIA em Benghazi, na instável Líbia pós-revolução. A narrativa centra justamente nas treze horas de ataques incessantes que seis soldados de operações especiais – SEALS e Rangers, tiveram que repelir enquanto aguardavam um socorro incerto.
Como em praticamente todos os roteiros dos filmes de Bay, o texto de 13 Horas é repleto de clichês. Porém, todos são funcionais e, segundo a produção do filme, necessários já que a principal proposta da longa é contar os fatos exatamente como eles ocorreram naquela noite fatídica de 11 de setembro de 2012.
Como todo bom filme de evento, circunstancia ou disaster movie, temos uma enxurrada de personagens. Hogan até consegue fazer um trabalho decente com os dois protagonistas Jack Silva e Tyrone Woods centrando dramas familiares relevantes que tiram os soldados da superficialidade ao denotar como nenhum deles realmente queria estar no então local mais perigoso da Terra.
O filme pode ser encarado como duas partes. Temos a longa introdução para inserir os estabelecimentos de narrativa definindo heróis, antagonistas e seus dramas, além da apresentação de coadjuvantes e sugerir o conflito principal. Nisso, 13 Horas é um diferencial dos longas de Bay, pois o diretor aposta muito nesse longo primeiro ato que mesmo ágil, foge dos tiroteios habituais de seus longas. Essa primeira parte, aliás, é o que ele tem de melhor. A decupagem é boa, o roteiro se comporta com postura clássica, as atuações são satisfatórias, a trilha musical funciona bem.
Então, quando finalmente as treze horas de terror começam, o longa, pouco a pouco, vai perdendo sua força, apesar de contar com uma história poderosa e incomum. Dessa vez, Bay não é o único culpado. Chuck Hogan falha miseravelmente em tornar o jogo de sobrevivência em algo menos enfadonho e repetitivo. Boa parte do longo clímax se centra no confinamento dos soldados no complexo secreto da CIA, repelindo os ataques dos terroristas que chegam em ondas – exatamente como um modo horda presente em tantos videogames, além da similaridade com o clímax do ótimo Corações de Ferro.
Nisso, há a preocupação em definir os atos de bravura, estratégias, preocupação com munição e principalmente, no lance mais esperto do filme, na constante confusão dos soldados em reconhecer qual força armada é aliada ou inimiga já que a comunicação entre os grupos é dificultada. Ou seja, há uma atmosfera de paranoia eficiente, mas que poderia ser melhor aproveitada com toda a certeza.
Por conta do modo narrativo dessa escolha de tower defense, o filme passa a ficar monótono com a repetitividade dos eventos, tudo torna-se muito previsível e formulaico, infelizmente. Nas intermitências dos ataques, Hogan também não construir elementos relevantes limitando-se em massacrar seu roteiro com um festival sem fim de frases de efeito. 13 Horas consegue ter mais one liners do que Transformers: Era da Extinção. E olha que superar o trabalho esdruxúlo de Erein Krueger é difícil. Pelo menos esses diálogos de frases de efeito não são tão calhordas quanto os apresentados no último filme dos robôs alienígenas.
Somente em um trecho, há um bom diálogo entre Silva e Tyrone que definem o sentimento antiguerra e antipatriótico, afinal, mesmo com ações consideradas patrióticas, os soldados questionam a todo momento a razão do governo americano não responder tantos e tantos pedidos de socorro. Aliás, esse fato é muito controverso até hoje na política americana e assombra a candidatura de alguns presidenciáveis tanto que houve um frisson fora do normal sobre a repercussão que esse filme poderia trazer para eles. Por medo de processos ou “decência”, nomes de políticos ou responsáveis de alto escalão nunca são citados – também não faria sentido dentro da narrativa, menos mal.
Estranhamente, mesmo centrado em apenas um espaço de tempo curto, Hogan consegue tornar o filme em uma experiência muito fragmentada no início do longa. Não chega a ser confuso, mas incomoda. Ele também aposta em conflitos histéricos e caricatos. Sempre há a demonização do supervisor geral Bob e da agente secreta Sona. Os personagens são muito limitados e, também, repetitivos. Quando vemos um dos protagonistas entrar em conflito com algum deles pela enésima vez, é difícil não soltar uma bufada de impaciência. A verve cômica de Hogan também fracassa. O roteirista tenta quebrar a tensão com diversas piadas mal inseridas que mais prejudicam a experiência do que colaboram na construção de cena.
Assim como o roteiro inconstante, temos uma direção igualmente problemática por parte de Michael Bay mesmo que ele nos engane no início do longa quando sugere que seguirá uma linha mais racional como a de Sem Dor, Sem Ganho. Até o terceiro ato, Bay consegue manter uma qualidade superior na sua técnica. Sim, finalmente você poderá notar que ele é sim um diretor razoável com momentos bons.
Primeiro, sua técnica de gravação é um desafio tremendo de infraestrutura e lógica de planificação. Ao contrário do uso de câmera convencional em longas metragens que contam apenas com um aparato, Bay trabalha, sem exceção, com três câmeras. Logo sempre há três pontos de vista para diversos momentos do longa o deixando com uma abundância visual. O problema sempre é o purismo de Bay na montagem que tenta incluir ao menos um segundo de todos os planos dentro do filme.
Isso resulta na típica montagem frenética de seus filmes conferindo a aparência de um trabalho apressado e indelicado. De fato, Bay é mais estética crua do que algo refinado a la Fincher. Seus planos, em geral, não são elaborados visualmente limitando-se na função primaria da cinematografia: a exibição pura e simples. Porém, em alguns momentos, há um escape desse vício maluco de Bay. Em 13 Horas há uma preocupação em captar um material de cotidiano relevante que mostra detalhes de Benghazi e sua população. Em establishing shots, há até uma acuidade estética delicada que presenteiam nossa visão.
Assim como a loucura da decupagem em triple take aliada ao frenesi das três câmeras, Bay também ama gravar com steadicams usando a técnica da shaky cam, a bendita câmera nervosa – enquadramentos muito instáveis para refletir o estado de espírito do personagem ou da situação perigosa da qual ele faz parte. Aqui, a técnica também se faz presente, porém melhor utilizada. Aliás, há uma sensível melhora na compreensão da ação que ocorre em tela – algo que muita gente reclamava na franquia Transformers.
Bay aprendeu a definir melhor os eixos da ação e também conta com o auxílio de imagens aéreas feitas por drones para estabilizar os lados dos tiroteios. A própria natureza do conflito já ajuda a focar melhor o material gravado. Porém, ainda há momentos nos quais Bay força muito nosso raciocínio nos deixando perdidos em algumas explosões. Seu melhor momento fica restrito nas ótimas perseguições de carros nas ruas estreitas de Benghazi.
Cessando os reconhecimentos onde Bay de fato acerta, hora da parte mais divertida do texto: apontar as trapalhadas típicas do diretor. Quando o terceiro ato enfim chega, nós já estamos cansados de tanta frase de efeito e explosões para todos os lados. Mesmo tentando variar a última onda de ataques e até mesmo a encurtando, Bay deixa tudo insosso. O final do filme é incrivelmente chato, pois a ação é repetitiva. Pior, o diretor repete um plano sequencia já utilizado em Pearl Harbor flertando com uma auto referência esdrúxula.
O pior erro de Bay reside em citar a ótima comédia Trovão Tropical. Toda a áurea ridícula do longa de guerra de Ben Stiller parece rondar o fim do clímax. A maquiagem certamente não ajuda em algumas mutilações, além da atuação do elenco pender muito para o caricato incluindo até mesmo o bom John Krasinski tornando toda aquela agonia da dor física e psicológica em algo tão histérico que chega a ser risível – claro, caso você lembre da performance afetada de Downey Jr. E Jack Black. Além disso há completa falta de sensibilidade do diretor em retratar um herói caído com o corpo intacto após um morteiro ter explodido a meio metro da cara do sujeito enquanto outros comparsas agonizam com suas mutilações e queimaduras. Isso prejudica muito o realismo que Bay tenta almejar.
Essa linha tosca de encenação e elenco já havia sido apresentada quando um personagem recebe uma notícia importante de sua mulher, porém nunca que eu imaginaria que Bay barbarizaria dessa forma justamente no momento mais importante do longa e da vida das pessoas retratadas.
Aliás, durante esse confinamento, sempre ele volta a ação no terreno batizado como Zumbilândia onde os terroristas chegam para metralhar os americanos. Nos diálogos, sempre um personagem diz que eles têm a vantagem já que possuem óculos de visão noturna. O problema é que o ótimo diretor de fotografia, Dion Beebe, enfia dois aparatos de iluminação gigantescos que iluminam o campo inteiro e além. Logo não faz o menor sentido o personagem se vangloriar daquilo já que é possível enxergar muito bem toda a linha de combate graças ao auxílio da cinematografia.
Apesar desse deslize chulo de Beebe, o cinematografista se apropria bem do estilo de iluminação e cor dos filmes de Michael Bay. Ainda temos forte presença de ruído alto, cores muito saturadas, iluminação dura e pontual, além dos muitos lens flares. No geral, é um trabalho visual satisfatório que tem mais a assinatura do diretor do filme do que propriamente do diretor de fotografia.
Além de errar, ocasionalmente, com a fotografia, o diretor também consegue tornar a satisfatória trilha musical de Lorne Balfe em algo incomodo e intrusivo. Os ritmos de temas mais acelerados dificilmente casam bem com as cenas, infelizmente. Entretanto, no lado positivo, sempre há a competência da mixagem e edição sonora dos filmes de Bay deixando as explosões e tiros mais vivos do que nunca. A experiência sonora neste longa é algo a ser destacado.
13 Horas é um filme que começa muito bem e gradativamente vai perdendo a sua qualidade até terminar mal. É uma pena, pois Michael Bay dava sinais no início que este trabalho seria mais autoconsciente e cuidadoso, afinal houve toda a dedicação da equipe e pesquisa em torná-lo algo crível, palpável e emocionante mesmo que nunca tente virar um estudo de geopolítica. Para os amantes de bons filmes de ação, este aqui é uma boa pedida, apesar de cansativo graças a longa duração que é mal equilibrada diante da repetição de situações ao longo da história. No fim, o que prevalece é a promessa de que o diretor esteja se tornando em alguém mais competente tanto na técnica quanto no conteúdo, pois a preocupação em deixar claro que a guerra é um conflito que não há vencedores é bem evidente. Eis que, enfim, Michael Bay esteja caminhando para uma fase mais interessante, adulta em sua carreira bem-sucedida – financeiramente.
13 Horas: Os Soldados Secretos de Benghazi (13 Hours, EUA – 2016)
Direção: Michael Bay
Roteiro: Chuck Hogan, Mitchell Zuckoff (livro)
Elenco: John Krasinski, James Badge Dale, Pablo Schreiber, David Denman, Dominic Fumusa, Max Martini, Alexia Barlier, David Costabile
Gênero: Ação, Drama, História
Duração: 144 min.
https://www.youtube.com/watch?v=aLKSUIXYE14&ab_channel=ParamountBrasil
Crítica | Orgulho e Preconceito e Zumbis
Um dos romances mais conceituados da História da Literatura já havia ganhado uma sensível adaptação cinematográfica com Orgulho e Preconceito de Joe Wright. Em 2009, o projeto variado de um “revisionismo histórico” dark e cômico de Seth Grahane Smith ganhava sua primeira obra concreta: Orgulho e Preconceito e Zumbis. O sucesso foi tremendo, mas, estranhamente, seu livro posterior, Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros, desse nicho foi adaptado primeiro para os cinemas.
Quem escreve a adaptação do livro para o roteiro é o próprio diretor do filme, Burr Steers. Logo fica muito mais fácil encontrar o principal culpado pelo tom muito inconstante, porém divertido, deste longa. A narrativa ainda se centra no drama vivido pela família Bennet entre diversos triângulos amorosos, desilusões, conquistas, bailes, intrigas, romance, sonhos, frustrações e, no caso, zumbis. Bom, alguns zumbis. O cerne do conflito se mantém entre a relação problemática e apaixonante entre Darcy e Elizabeth Bennet. Só há a adição em tornar praticamente todos os personagens que protagonizam o filme em guerreiros habilidosos de artes marciais e exímios atiradores.
Mesmo tendo uma premissa interessante, Steers se perde, tanto na direção quanto no roteiro, no tom que ele pretende seguir no filme inteiro. Ele não sabe se quer tornar o filme em uma experiência motivado pela comédia paródica quase spoof, pela ação/suspense das matanças diversas de zumbis, pelo drama das intrigas da sra. Bennet em tentar casar suas filhas a todo custo ou no romance de Darcy com Elizabeth. Logo, o que temos é um filme fragmentado com cenas que casam mal com as anteriores para fazer algum sentido dentro da história.
Muitas coisas ficam jogadas na história sem conclusão ou menos são trabalhadas com algum cuidado. Isso tange, sempre, conflitos muito importantes para a tensão que Steers tenta trabalhar. Nunca é explorado direito a dúvida se uma irmã Bennet foi mordida por um zumbi, ou por qual razão Lady Catherine concede o matrimônio de determinados personagens. Porém, o mais grave, é a introdução sempre porca dos zumbis que invadem algum baile, festa ou qualquer outro lugar onde os personagens estejam no momento. No fim, há uma justificativa muito torpe que pede muito da sua suspensão da descrença deixando essa falha ainda mais escancarada.
Por incrível que pareça, não há tantas cenas que envolvem zumbis como deveriam existir. Ainda se trata da mesma história de amor escrita por Jane Austen com participações especiais de mortos-vivos. Entretanto, mesmo que a história seja fraca e pouco desenvolvida, há uma exploração satisfatória dessa mitologia proposta para a Inglaterra Vitoriana. Todo o establishing desse universo é bem apresentado pelos créditos iniciais muito bem animados com encartes que remetem livros pop up também apresentando a verve cômica do longa.
Tudo que tange a essas novas características apresentadas para a história original é interessante e satisfatório, apenas. Nada surpreendente ou fantástico. Isso vai desde os novos papéis que os personagens assumem na história ou seu modus operandi. É legal notar que houve uma preocupação em preservar a essência de cada um deles. Porém, com tantos personagens preenchendo espaço, alguns deles rapidamente são esquecidos como as irmãs de Elizabeth, incluindo Jane. A personagem mais problemática ainda é Lady Catherine. O que realmente salva é a motivação e construção de George Wickham mesmo que o desfecho do arco seja previsível e clichê.
Na maioria do filme, Steers consegue entregar um bom ritmo, bons enquadramentos com inspiração em Downton Abbey, além de coordenar muito bem toda a parte técnica impecável do longa. Não se engane, Orgulho e Preconceito e Zumbis é um filme muito bem produzido. Isso vai desde a bela cinematografia sempre atmosférica e bucólica ao primoroso design de produção incluindo um figurino de época muito refinado. O filme brilha nessaa áreas tão importantes para construir um universo crível. E como Steers costuma enquadrar com competência, tudo se torna mais agradável.
Até mesmo o trabalho com o elenco surpreende. Lily James, Sam Riley, Jack Huston e Matt Smith – trabalhando muito bem a comédia com Parson Collins, são os que se destacam dentro de uma variedade competente de atores que dominam o sotaque rebuscado do inglês já um pouco arcaico. Lily puxa em alguns momentos os olhares vidrados de Keira Knightley, mas sempre consegue construir facetas novas para fortalecer a personagem aproveitando agora que ela é uma mestra da pancadaria.
Steers falha – e falha miseravelmente, quando resolve enfiar seu dedo com nenhuma sutileza na direção. Ele tem certos vícios visuais que quebram a elegância do filme, o jogando diretamente no brega. Isso acontece em todas as vezes que usa o ponto de vista de um zumbi para mostrar o ataque em direção à vítima – sempre com um travelling in. É algo inspirado em Romero, mas não casa, é repetitivo e tosco. Fora a mania de usar blacks após essas passagens para frisar o acontecimento. Novamente, brega.
Além dessas barbeiragens, há o uso completamente equivocado e disfuncional de montagens paralelas que estragam o clima mais sóbrio da técnica. As montagens não funcionam e lançam o filme em um grau de amadorismo assustador. Infelizmente isso acontece mais de uma vez. Também há problemas para resolver o clímax do filme que é muito apressado. Ele erra não somente no que tange o visual, mas também no sonoro. É uma vergonha o modo atropelado e intrusivo que o diretor utiliza a boa trilha do erudito Fernando Velázquez. Não só o uso é, por vezes, falho, mas como a mixagem faz um estrago deixando a música extremamente alta – todavia, isso pode ter sido apenas um deslize de calibragem da sala onde assisti ao filme.
Orgulho e Preconceito e Zumbis ainda se sustenta mais pela ótima história de Jane Austen. A ação de Steers não é ruim ou mal filmada, mas é sem graça. Os problemas já listados, além da indecisão sobre qual tom seguir aliado ao uso bizarro da inconstante violência gráfica, prejudicam a experiência do filme como um todo. Porém, não há como ignorar as proezas técnicas e do bom trabalho do elenco. A história segue a mesma qualidade das cenas de ação. Há sim algum divertimento, boas cenas e diálogos bem feitos, porém, o diferencial que faz jus a existência deste longa é tão vazio e fraco que nos revela como a narrativa original é forte para sustentar até mesmo uma história como essa.
Se quiser ver um filme de ação razoável este aqui é algo a se considerar com expectativa baixa. Acredito que a diversão chegará aliada a rapidez do longa tornando ele uma experiência satisfatória de entretenimento. Mas caso seja fã do clássico e de sua autora, certamente é melhor se contentar com o filme original.
Crítica | Skyline - A Invasão
Ao menos uma vez por ano somos presenteados por Hollywood com um filme sobre alienígenas, o tema mais explorado do mundo. Nós, terráqueos gostamos disso e gastamos nosso dinheiro no ingresso do cinema ou no camelô da esquina. Nestes filmes, já sabemos a história, o que vai acontecer, quem vai morrer, quem vai se safar, quem é o herói e mesmo assim eu insisti em ver este que acabou se provando um dos piores filmes que já vi na vida.
Jarrod chegou com sua namorada a L.A. para comemorar o aniversário de seu amigo Terry. Depois da festa, enquanto todos dormem, luzes de Natal caem do céu. O problema é que estas luzes tão bonitas são naves intergalácticas e elas vieram com um objetivo perverso: abduzir todo ser humano da face da terra para objetivos nefastos. Cabe agora a Jarrod e seus amigos malhados a sobreviverem o terror que assola a história da humanidade.
O roteiro inconsistente se apresenta de forma deplorável: exatamente como o início de um capítulo de um seriado C.S.I. Após esta magnífica apresentação, somos jogados para 15 ou 17 horas antes do ocorrido onde se apresenta os personagens insossos e desinteressantes que teremos que acompanhar durante os arrastados 96 minutos do filme. Em especial, temos três personagens que sobressaem os níveis racionais da chatice – o zelador pirado e o casal histérico que nossos heróis encontram durante uma tentativa de fuga.
A história é completamente monótona. Os primeiros trinta minutos onde somos obrigados a assistir alguns dramas humanos são os mais chatos do filme, podendo até classificar como insuportáveis graças às atuações pobres.
Após alguns conflitos superficiais, os alienígenas chegam e começam a tocar o terror em L.A. e, mesmo assim, não conseguem elevar a qualidade do filme. O roteiro optou em deixá-los em segundo plano e a sobrevivência do grupo no apartamento em primeiro, onde vemos o desenvolvimento patético dos personagens que se limitam a diálogos toscos, sem tomar atitudes para uma futura fuga.
O maior problema do roteiro foi utilizar os alienígenas poucas vezes e, quando eles marcam presença, insistem em não morrer apesar de terem seus cérebros arrancados por um machado, serem explodidos por uma suposta bomba atômica (essa parte em especial merece uma observação: repare que quando o ataque começa temos trocentas naves mãe na imagem, mas quando acontece a lutinha a la Star Wars só aparece uma nave na tela. O que será que aconteceram com as outras? Devem ter desistido de entrar em cena de tão ruim que o filme é.
Fora isso tudo, ele ainda consegue ser clichê ao extremo: temos beijos apaixonados no fim do mundo, abraços de melar a alma de tão açucarados, tentáculos alienígenas “câmeras” / sequestradores (já vi isso em Guerra dos Mundos, isso na filmagem de 1953), um mexicano explosivo, alienígenas macacos escaladores de arranha-céus e a solução tosca para explicar a aparente razão dos bichos quererem acabar com a terra: cérebros humanos – além de alienígenas, são zumbis também…
Não obstante em ser ridículo, ele insinua que se você receber doses diárias de radiação interplanetária seu cérebro ficará vermelho (por alguma razão os cérebros humanos são azuis nesta obra de arte) e poderá acabar com um alienígena a base da porrada e até controlar um corpo extraterrestre. Este roteiro inaugurou um tipo novo de script: o autodestrutivo. O final do filme destrói todo o trabalho de Jarrod e seus humanos em se manterem vivos por “incríveis” 24 horas porquê de uma forma ou de outra, todos acabam morrendo ou virando cérebro de alien. Além disso, ele também mostra que o país mais paranoico com guerras no mundo (mais conhecido como EUA) demora dois dias para defender seu pedaço de terra contra uma invasão extraterrena. Até o exército do Paraguai não seria tão lerdo em defender a pátria quanto os americanos neste caso.
Para piorar o filme, temos atuações de chorar de desespero. Todos os atores saíram de seriados que não chegam à segunda temporada nos EUA. Temos Eric Balfour como protagonista e Donald Faison como coadjuvante, nisso estão resumidos os atores do filme. Faison diz frases sem sentido na maioria do filme (ele diz que precisa ir ao cofre quando não há nenhum cofre no filme) e faz caras de medo. Balfour é o herói que tenta proteger o mundo e faz cara de mau quando olha para luzinha bonita dos ETs. Eu sei que seus personagens tinham a missão de retratar pessoas normais, porém não têm características marcantes e não conseguem, ao menos, atingir a mesmice. São simplesmente inexpressivos.
A fotografia tem seus méritos nos planos entre os prédios espelhados de Los Angeles e em algumas sequências no terraço do prédio porque no geral ela consegue ser péssima onde existe até uma tomada que a imagem fica completamente granulada por falta de luz. Diversas vezes a câmera treme (propositalmente ou não) demais e não filma com estabilidade o que se passa diante dela, ficando até difícil assistir ao filme.
Os efeitos visuais são bonitos e bem trabalhados, principalmente os das naves, das luzinhas brilhantes e dos alienígenas petroleiros (soltam uma graxa tosca). Uma parte, no entanto, me deixou espantado: quando as naves sugam os humanos esvoaçantes (muito mal-acabados) em lotes, aparece uma fumacinha no chão e se olhar com cuidado, você reparará que essas fumaças são bem porcas e aparecem em pop-ins (surgem do nada) para quem fez os efeitos visuais deAvatar um erro deste passar despercebido é inaceitável.
O som é algo relevante em um filme de guerra intergaláctica, mas parece que eles resolveram fazer uma sonoplastia de quintal. Os barulhos que os ETs e as naves fazem são repetidos diversas vezes e parecem ser embalados de Transformers algumas horas. Fora isso o volume do som do filme é baixo, a música é baixa, os efeitos sonoros são baixos, os gritos não saem como deveriam ter saído, até mesmo os diálogos ficam incompreensíveis (mesmo com as legendas que somem diversas vezes na projeção e aparecem em horas onde não existem falas). Não sei se isso foi algum problema no som da sala em que assisti ao filme, mas diversas vezes me perguntei se era uma sala equipada com um Dolby Surround ou com um sistema de áudio MONO de TV a pilha.
sara quem começou com o pé esquerdo na direção cinematográfica como os irmãos Strause começaram (eles dirigiram o inesquecível Alien VS. Predador 2), era difícil acreditar que entregariam algo que prestasse. Já ficou evidente que não concluíram com sucesso a sua função e acredito que este possa ser o seu último projeto. Eles não enquadram os personagens de uma forma boa para a câmera e não deixaram as atuações aceitáveis. Além disso, também inventaram de inserir alguns slow-motions. Estes efeitos foram mais um tiro no pé para o desenvolvimento do filme. São pessimamente realizados e ativados em horas inapropriadas como a cena que o zelador ou quando Terry quebra uma porta de vidro ou na corrida do grupo contra um monstrengo. Só há uma parte que efeito é bem realizado no fim do filme.
Skyline é a prova viva que um filme não consegue ser bom apesar de ter efeitos visuais de primeira. Pior que no logo depois de um tempo, estreou outra bomba sobre invasões alienígenas:Invasão do Mundo: A Batalha de Los Angeles. Que ano, senhoras e senhores!
Eu sinceramente recomendo caso queira rir à beça ou ficar furioso sem motivo algum, mas se estiver a fim de ver um bom filme, passe longe. Se ficar curioso, assista ao trailer que ele resume bem a história, afinal se alguma coisa foi feita direita neste filme além dos efeitos visuais foi a propaganda.
Crítica | X-Men: Apocalipse
Com Spoilers
A Fox e sua Caixa de Pandora
O gênero de super-heróis no cinema deve muito a Bryan Singer, um dos maiores responsáveis pela retomada ao lado de Sam Raimi. É simples se recordarmos um pouco da História escrita desde os anos 1970 quando Richard Donner e Christopher Reeve mostraram que o homem podia sim voar. Entretanto, após dois grandes filmes, o gênero viu o quão ruim poderiam ser seus filmes. Ainda que houvesse algum sopro de esperança com os Batman de Tim Burton, os super-heróis foram linchados por verdadeiras bombas com os dois últimos filmes nos quais Reeve encarnou Superman, além da chegada da nêmese do gênero – a infame fase de Joel Schumacher na direção dos últimos Batman dos anos 1990.
Em 1998, apesar de irregular, a chegada de Blade aos cinemas ofereceu nova chance para realizarem um trabalho ótimo com super-heróis na sétima arte. Isso aconteceu dois anos depois, em 2000 com o primeiro filme dos X-Men comandado por um suspeito Bryan Singer. O sucesso foi estrondoso para um blockbuster considerado barato – 70 milhões de dólares. De um modo ou de outro, Singer e seus ex-humanos deram segurança para outros estúdios investirem em adaptações próprias revirando o baú dos direitos autorais de uma infinidade de heróis que a Marvel havia vendido nos anos 1990 para não ir à bancarrota.
Ao mesmo tempo que recebemos obras excelentes como Homem-Aranha, Homem-Aranha 2, 300, Batman Begins, O Cavaleiro das Trevas, Watchmen, Homem de Ferro e Hellboy 2, muitas obras abomináveis conheceram a luz do dia também. A grande ironia se dá justamente com a Fox, o estúdio que apostou em Singer duas vezes culminando no ápice da franquia com o praticamente impecável X2, também foi o responsável por trazer os filmes mais vergonhosos da década passada. A lista é longa: X-Men: O Confronto Final, Wolverine Origens, Elektra, Demolidor, A Liga Extraordinária e os dois Quartetos Fantásticos. Uma bizarra própria caixa de Pandora onde foi a Esperança quem escapou primeiro.
Custou quase uma década inteira de trapalhadas constantes do estúdio com seus mutantes para enfim chamarem Bryan Singer de volta a casa. Nascido do marketing reverso, X-Men: Primeira Classe conseguiu surpreender a todos que já estavam para lá de descrentes com os rumos podres que a franquia estava tomando. A solução definitiva veio com Dias de Um Futuro Esquecido, um filme reboot que teve sucesso em juntar as duas linhas temporais para apagar quase tudo o que havia sido feito até então. O diretor conseguiu o impossível em solucionar tantos problemas, ainda que criando mais alguns para si, convenientemente esquecidos neste X-Men: Apocalipse.
Pela segunda vez nesse primeiro semestre de 2016, temos mais um longa do gênero que foi muito mal recebido pela crítica internacional e que dividirá o público com toda a certeza. Seguindo a tradição formada, fui cometido de tremenda simpatia por Apocalipse, mas admito que a interpretação que trata esse filme com desdém também tem sua parcela de razão.
A grosso modo, há um repeteco de dramas e situações já vistas nos outros sete filmes X-Men. Isso pode irritar quem tem uma memória invejável, porém, ao mesmo tempo, é uma aventura que fundamenta definitivamente a história de origem da equipe mutante enquanto trabalha com a possibilidade do universo paralelo originado graças aos eventos de DOFP. Muito do drama típico dos X-Men é deixado de lado dando vez para mais humor. Os eventos apocalípticos também têm um peso muito menor. Ao fim do filme, parece que vivem em uma utopia com poucos homens e mutantes maus. Essa mudança de ares agradará alguns e certamente deixará outros bastante decepcionados.
O Maniqueísmo de um Falso Deus
Após Mística salvar o presidente dos EUA das mãos de Magneto, virou um símbolo de resistência, coragem e heroísmo para diversos jovens mutantes ao redor do mundo. Porém, muito tempo no passado, especificamente no quarto milênio antes de Cristo, outro mutante era um símbolo, mas sim de opressão e poder ilimitado. Após ser traído por seus seguidores durante a transferência de consciência “definitiva”, o deus mutante adormece até 1983 sendo liberto por Moira McTaggert durante uma descoberta acidental – uma baita conveniência por sinal.
Com o choque de realidade onde En Saba Nur não é o comandante supremo adorado por todos, logo descobre que o mundo cheio de sistemas e armas atômicas deve ser “purificado”. Para realizar isso, conta com quatro seguidores: Tempestade, Psylocke, Anjo e um Magneto repleto de ódio após ter perdido sua família mais uma vez pelas mãos dos homens. Para salvar o mundo da destruição completa, Xavier se verá obrigado a organizar novamente os X-Men, além de lidar com a dificuldade de coordenar seus novo alunos para a luta: Jean Grey, Scott Summers e Kurt Wagner. Fora isso, também terá de recuperar a confiança há muito tempo perdida de Mística, descrente de toda a causa pacifista que Xavier prega.
Ironicamente, apesar de ser considerado um disaster movie pelo próprio Bryan Singer, o roteiro de Simon Kinberg não falha em detonar certo escopo menor e mais intimista do que o visto em Dias de Um Futuro Esquecido. Isso se dá por conta da representação da ameaça de Apocalipse, um vilão eloquente e orgulhoso que nunca se revela ao mundo, algo bastante bizarro se levarmos em conta o passado no Egito antigo quando era considerado uma divindade. Um vilão megalomaníaco que sempre prefere agir pelas sombras.
Aliás, o maior problema desse ótimo longa reside quase que inteiramente no núcleo dos antagonistas. É louvável que o roteiro não tenha escolhido o caminho fácil de fazer com que Apocalipse tenha a habilidade de controlar seus seguidores através de um poder mental ou lavagem cerebral. O seu maior poder, na teoria, é a persuasão, ou seja, ao contrário de um deus bondoso, se porta mais como um demônio sedutor distribuidor de falsas riquezas – algo excelente, mais uma vez. Porém, com essa ideia tão boa, é impressionante a falta de habilidade de Kinberg em colocar isso na prática através de diálogos, drama e motivações competentes. Tudo é medíocre quando senão porco, no caso de Tempestade.
Quando Apocalipse se põe a falar pela terceira vez, é impossível não sentir que há algo de errado ali. O vilão é um disco arranhado, vociferando sempre a ameaçadora frase “Everything they’ve built will fall! And from the ashes of their world we’ll built a better one! ”. Claro, é uma frase de efeito excelente que revela alguma motivação turva para este confuso personagem, porém repeti-la tantas e tantas vezes ou lançando outras contendo a mesma mensagem é limitar um vilão que poderia ter sido um dos melhores que o gênero já viu nas telonas.
A representação simbológica mais que clara para Apocalipse funciona, mas a interação dele com seu grupo de seguidores ou até mesmo o embate ideológico sempre tão presente na franquia X-Men, acaba raquítico em Apocalipse. Sua guerra contra os sistemas políticos dos anos 1980 é rápida e polida demais. Essa fraqueza de diálogos razoáveis permeia o filme inteiro nessa nova proposta mais light e aventuresca.
Apostando muito nesse cerne de síntese da destruição, Apocalipse é prejudicado por falta de clareza em seus objetivos. Seu plano maléfico muda de rumos inexplicavelmente no começo do terceiro ato, afinal qual a razão de não explodir o mundo inteiro com as bombas atômicas que ele lança para o espaço para logo depois mandar Magneto desestabilizar o planeta e seus polos magnéticos que também culminaria em uma destruição em massa?
Mesmo se mantendo e agindo nas sombras, o personagem só ganha ares ameaçadores por conta da atuação cheia de presença de Oscar Isaac. Apesar de não criar muito, o ator acerta em manter o personagem sereno na maioria do filme. Um ser racional, pouco emotivo e cheio de pragmatismos. Nos primeiros atos, o vilão não fica ponderando, ruminando besteiras ou filosofias. Ele simplesmente age. Porém isso começa a mudar quando o roteirista apresenta o “dom” da persuasão para convencer os outros antagonistas a virarem seus seguidores.
Em grande maioria, são momentos falhos sendo o de Tempestade o pior, pois Kinberg aposta em algum desenvolvimento com a personagem. É interessante o longa traduzir ela como uma sobrevivente desde cedo, vivendo com nenhuma regalia, roubando para comer, além de deixar claro que ela possui algum senso de justiça inspirado diretamente nas ações de Mística no filme anterior. Colocado isto, é absurdo Kinberg e Singer passarem um pano nesse estabelecimento moral para a personagem apoiar um mutante bizarro nada simpático que tomará ações genocidas no decorrer da história. Pior ainda é a catarse de Tempestade vir somente após Apocalipse sufocar Mística, sua ídolo. Fora ter chamado de “inútil” seu outro seguidor já morto, Arcanjo. Matar milhões de inocentes aparentemente não basta para acordar a heroína à realidade. Se era para ter essa transformação ou desenvolvimento de personagem, era melhor não ter nenhum. Colocassem ela como mera coadjuvante como fora em todos os filmes anteriores.
Mesmo errando muito com Tempestade, Kinberg não vacila tanto por não inventar alguma evolução para Anjo ou Psylocke. As motivações dos dois são muito rasteiras, seduzidos apenas pela promessa e entrega de mais poder dado por Apocalipse – essa habilidade de intensificar as mutações dos personagens é interessante. Ambos entram e saem calados de cena dando margem para criação zero na atuação de Ben Hardy e Olivia Munn que se limitam a fazer poses bonitas e poderosas.
No que há de realmente bom em Apocalipse é a sina amaldiçoada do deus. A ironia fina de sempre cair, fracassar, ao ser traído por seus seguidores. Na primeira vez pelos inferiores humanos e na segunda, por seus súditos mais fiéis. Um arco irônico bem alocado. Além disso há alguma margem de exploração logo arrefecida com Magneto que possui o arco mais interessante do filme.
Magneto e a Memória
Após tantas obras, é difícil criar algum ineditismo para o sofrido personagem, porém os roteiristas têm sucesso em Apocalipse. Apesar de ser um núcleo previsível, telegrafado, é interessante ver a nova identidade de Magneto convivendo em paz com sua família nas entranhas da Polônia levando o modo de vida menos destrutivo que Xavier pregava desde Primeira Classe. Obviamente, a família dele morre, acidentalmente, despertando o latente rancor e ódio que ele sente pelos homens. Ao questionar Deus sobre sua verdadeira natureza, eis que surge Apocalipse com a resposta. É um jogo tão bem feito quanto o da traição que a divindade sofre. Simples e bem pensado. Aliás, é ótimo notar que o vilão não ativa fisicamente o verdadeiro potencial de Magneto, mas apenas direciona sua concentração. Eis que temos a versão mais forte, perigosa e ameaçadora do mutante até agora.
Além disso a simbologia da destruição de Auschwitz é intensa. Ao destruir o maior memorial do sofrimento judeu na História, Magneto põe em prática a velha máxima: “o povo que não conhece sua história, está condenado a repeti-la”. Isso é a essência da concepção do personagem desde os quadrinhos que foi tão maravilhosamente adaptada e desenvolvida ao longo de seis filmes. Um rapaz que sofreu com os horrores da intolerância e genocídio para se transformar exatamente no que mais repudiava – apesar do vilão oscilar no seu nível de carnificina, o discurso permanece.
Nisso há a origem dos pontos positivos do roteiro. Essa nova trilogia que virá, pelo jeito, caminhará por rumos muito diferentes do que vimos na primeira. Tudo graças aos eventos de DOFP. Agora nessa realidade paralela, os mutantes não sofrem tanto com o preconceito, apesar de ainda existir, velado. Os vilões passam a trabalhar para o bem. E o drama trágico se esvai quase que completamente. Certamente é uma faca de dois gumes, pois direciona a franquia para terrenos amistosos e mais seguros.
Kinberg trabalha com menos personagens com a intenção desenvolvê-los de ponta a ponta com qualidade narrativa. Nisso temos: Mística, Xavier, Magneto, Jean Grey e Scott. Logo fica mais simples de analisar o texto. Personagens secundários são tratados como tais. Às vezes como conveniências de história com Moira McTaggert ou como instrumentos de soluções rápidas através de Noturno, Fera e Mercúrio – também alívios cômicos.
Para conseguir estabelecer isso com firmeza, o roteirista investe muito tempo de desenvolvimento até mais da metade do longa – a história somente acelera após a majestosa corrida de Mercúrio na Mansão X. Logo, as cenas de ação acabam seletas destinadas mais para a metade do segundo e terceiro atos. Por se tratar de um grupo multi protagonista, Kinberg consegue equilibrar bem o tempo de tela de cada um para criar suas interessantes histórias individuais.
Com Mística, vemos ela trabalhar para salvar mutantes que vivem em condições sub-humanas enquanto reluta em aceitar que tenha virado um símbolo de esperança e inspiração para seus semelhantes. Já que nunca matou Trask, é coerente que ela sofra a catarse final e finalmente abrace sua identidade benevolente, porém, também conseguindo mudar a opinião de Xavier a respeito da ressurreição do projeto X-Men. Realiza seu sonho de preparar mutantes para a luta com a aprovação do Professor X.
O de Xavier é relacionado diretamente com o de Magneto, pois se trata enfim da conclusão do desdobramento visto desde Primeira Classe. Amigos de ideologias distintas que voltam a se respeitar e conviver após a redenção catártica de Magneto que rende um momento que é brega e bonito ao mesmo tempo. Além disso, há alguma evolução no núcleo romântico com Moira, além de vermos seu grande companheirismo e compreensão com seus alunos.
A diferença central de Xavier de James McAvoy para o de Patrick Stewart se faz clara nesse filme, após ele entender a necessidade de preparar os mutantes para a luta, já que Apocalipse traz uma batalha onde pouquíssimos estão preparados para agir sob pressão, além de não saberem lidar com a responsabilidade vinda com seus poderes. Nisso, a catarse de Xavier se dá em compreender o discurso de Magneto replicado por Mística, de não controlar os poderes, de usá-los para o combate. Ao meio do filme, há até um espelhamento com Apocalipse no sentido dele procurar o melhor para os mutantes e em acreditar nos seus poderes.
A síntese disso tudo se dá em dois momentos. Pela primeira vez vemos um Professor X declamando em alto e bom som para Jean Grey liberar a plenitude de seu poder perigoso da Fênix. Antes disso, também ordena a destruição completa de Cerebro para Destrutor quando o aparelho fica comprometido por Apocalipse.
Por isso há esse misto de repetição no conflito de Jean por mais que sua conclusão seja diferente da vista em X2 e X3. Os pesadelos premonitórios, o medo crescente de seu poder sombrio incontrolável, os diálogos com Xavier estão presentes aqui mais uma vez. Porém ver a personagem ser tratada com preconceito pelos próprios colegas de escola, além de germinarem a amizade com Scott é algo deveras bem pensado. Ambos são unidos por não terem controle total de seus poderes. Também é através do núcleo jovem constituído por eles, Noturno e Jubileu – personagem alegórica, temos os momentos tão clássicos e descontraídos da franquia, além de explorarem o lado adolescente de cada um deles. Também com Jean, em um momento bem inserido na narrativa, há uma conexão bela com Wolverine.
Sophie Turner consegue criar facetas diferentes para sua Jean puxando, por vezes, algumas características de Sansa. A jovem Jean é cheia de inseguranças, guarda algumas mágoas e tem medo de ferir quem ama. Também enriquecendo o personagem, há a interpretação vigorosa de Tye Sheridan nos mostrando um Scott rebelde e impaciente. A transformação dele se dá por conta da morte de Destrutor, seu irmão, que também fortalece os laços de amizade com Jean em seu momento de luto. Há fagulhas do surgimento do espírito de liderança e alguma aversão à Wolverine.
Na conclusão, onde vemos Magneto usar seu poder finalmente para construir, há a repetição diálogo entre ele e Xavier que já foi apresentado ao final de X-Men de 2000. Entretanto, é legal notar no contraste entre as duas situações onde o diálogo é inserido. Aqui, não há prisões de plásticos, os dois não são rivais já na terceira idade, o ódio está adormecido. Ainda que contenha a mesma ideia, há de se levar em conta a situação totalmente oposta à apresenta no primeiro filme.
Todos as narrativas que permeiam estes personagens são boas o suficiente para não deixarem o filme arrastado já que despertam o interesse do espectador, aliviando a necessidade de muitas cenas de ação. Kinberg dosa bem o humor do filme nunca quebrando a tensão ou um momento dramático, porém abusa muito de diversos momentos de exposição desnecessários. Por exemplo, quando Magneto começa a destruir o planeta, um especialista do governo explica o que ocorre e diz que morrerão bilhões. Imediatamente aparece outro personagem que declama o óbvio: “Ele está falando do mundo inteiro! ”. Outras personagens que abusam da exposição são Jean e Moira. Também há o problema crônico do gênero em relação à previsibilidade. O filme não conta com reviravoltas surpreendentes, porém todas têm certa lógica.
Kinberg também ignora completamente a que fecha o filme anterior ao sugerir que o resgate de Wolverine foi feito por Mística disfarçada de Stryker, algo totalmente desnecessário. Então se alguém esperava uma resposta para isso, certamente ficou com as mãos abanando. Fora isso, o drama mal-acabado de Mercúrio é algo irritante, pois nota-se que isso foi arquitetado apenas para guardar uma revelação que amolecerá o coração de Magneto em algum próximo filme. Serve como motivação sim, mas de conclusão rasteira. Apesar disto, nota-se que há alguma coragem em limar alguns mutantes durante a aventura: Destrutor e Arcanjo. Mesmo sendo personagens descartáveis, os momentos são relevantes para surtirem reações e desenvolvimento de outros mutantes.
16 Anos de Bryan Singer
Na direção, temos o retorno do eloquente Bryan Singer que prova, mais uma vez, como tem tesão em dirigir os filmes do grupo superpoderoso. Já é clara a pegada distinta dos filmes MCU logo nos primeiros minutos de projeção. É impossível não vibrar com a cena inicial que apresenta Apocalipse no Egito antigo se preparando para um ritual de transferência de consciência para um mutante que tem habilidades regenerativas conferindo a imortalidade desejada pelo vilão.
A ação é visceral, o golpe que logo seria apresentado é enquadrado por planos sutis dentro da montagem orgânica. E, enfim, vemos violência gráfica intensa. São soldados e mutantes prensados por rochas gigantescas, sendo derretidos, desintegrados, incinerados e até mesmo quebrados inteiramente até virarem uma bola de carne e ossos. Confesso que o choque inicial foi tão intenso quanto a morte dos heróis para os Sentinelas em DOFP. Então, logo após essa sequência intensa, somos presenteados com a melhor vinheta animada que apresenta o nome do longa.
Singer traz um panorama da História da humanidade desde o Egito antigo para traduzir o tempo que Apocalipse fica adormecido. Passamos pelo império Romano, a Paixão de Cristo, o Renascimento, a invenção da economia moderna, o republicanismo, a exploração das ferrovias, as Guerras Mundiais e o aprimoramento da aviação, a ascensão e queda do Nazismo e a permanência do Comunismo para enfim chegar na Paz Atômica. Tudo isso acompanhado do tema clássico e viciante que foi apresentado em X2 como tema musical do grupo mutante. É uma das marcas autorais de Bryan Singer para a franquia. Inegável dizer que não funciona.
No geral, Singer continua tratando a forma cinematográfica com afinco artístico notável. Peço perdão aos fãs do MCU, mas Singer leva o visual de seu filme muito a sério – algo mantido de Dias de um Futuro Esquecido com o retorno do diretor de fotografia Newton Thomas Sigel. Esqueça a concepção artística chapada e estéril que conferimos em Deadpool ou Guerra Civil e até mesmo os tons dessaturados e monocromáticos de BvS. O que impera em Apocalipse é a cor saturada, as altas luzes e a personalidade fotográfica algo que glorifico de pé, pois tendo estudado o campo da cinematografia com afinco, é muito decepcionante ver tantos filmes do gênero tratando esse setor da arte cinematográfica de modo nada inspirado.
Logo, de longe, temos um dos filmes de heróis mais carregados de simbologias vindas pelas cores neste ano. Os momentos não são seletos, mas me limitarei a três. O primeiro deles se dá durante o sonho premonitório de Jean que é relacionado com o despertar de Apocalipse. Tanto Jean quanto Xavier são iluminados por uma forte luz azul, indicando já que o vilão teria ampla dominação dentre os mutantes, incluindo em sua própria casa. Algo que se prova acertado já que a Mansão X é destruída em decorrência da invasão da trupe maléfica no Cerebro.
Depois, quando Magneto pretende fugir da Polônia com sua mulher e Nina, sua filha, temos novamente o uso inteligente do contraste amarelo com o azul – o fotógrafo aposta muito nesses tons já muito consagrados para tornar as metáforas visuais eficientes. O quarto onde Erik junta as coisas na mala recebe luz amarelada indicando um falso sentimento de segurança enquanto Fassbender leva uma suntuosa luz principal azulada com sombras muito bem modeladas. Aqui, já indica os rumos sombrios que atingirão o personagem em poucos momentos quando o policial mata sua família – pontos pela condução sensacional de Bryan Singer na decupagem dessa cena, colocando com sutileza através de um slow motion para denotar o descuido e distração do homem que dispara a flecha. A mesma luz azul que permeia o rosto de Fassbender também é compartilhada no quarto deserto de Nina. Na floresta, os tons coloridos morrem para darem lugar ao cinza granulado opaco.
Por fim e, talvez, o mais significativo se dê com o primeiro contato de Xavier com Magneto através do Cerebro. Novamente o núcleo antagonista está no mesmo armazém de Arcanjo. O fotografo, brilhantemente, usa exatamente a mesma configuração do jogo de luz. Diversos pontos azulados azimutais que preenchem o espaço inteiro, menos em um ponto, usando a contraluz bem forte, amarelada de um Fresnel praticamente colocado no chão. Quando Xavier chama Magneto, ele vira para a luz amarelada que ilumina seu rosto indicando a fagulha de esperança que o professor representa, tentando salvar seu amigo da escuridão azulada que preenche Apocalipse e seus cavaleiros. Ao fim da dialogo, Magneto dá as costas para a luz amarela, Xavier, e passa a receber a luz azul lúgubre como key light. Ali, toda a esperança de persuadir o velho amigo a mudar de lado morre com a escolha pessimista de Magneto.
Como havia dito, não é somente através do contraste amarelo-azul que o Singer e o cinematografista conseguem elaborar fortíssimas metáforas visuais. O uso demarcado da contraluz “divina” é presente em diversas cenas com Apocalipse entre outros tantos recursos.
Já sobre decupagem geral, não há o que reclamar. Singer movimenta a câmera com elegância, cheios de enquadramentos sempre bem compostos elaborando até mesmo alguns planos holandeses que funcionam perfeitamente para apresentar Jean Grey no clímax psicológico entre Xavier e Apocalipse. O eixo da câmera se estabiliza assim que a telepata entra em cena, já indicando os maus lençóis que o vilão estaria em poucos instantes. Aliás esse clímax que se passa na Mansão X imaginária é uma das poucas ideias verdadeiramente originais neste Apocalipse. Um confronto emblemático que se explica por si só. Ai de quem for procurar briga na escola de Professor Xavier. Dito e feito.
Aliás, é isso que separa Singer dos pequenos para os grandes diretores audiovisuais. Sabendo da megalomania que seu filme traz intrinsicamente, ele sabe criar momentos verdadeiramente épicos. A já comentada introdução e vinheta são colheres de chá perto do que ele faz novamente com Mercúrio em uma cena típica do “maior e melhor”. A sequência do sequestro de Xavier que culmina na explosão da escola é interrompida no melhor timing possível para vermos outra vez o velocista fazer graças e salvar o dia com sua supervelocidade. Singer explora mais situações cômicas, movimentos de câmera mais interessantes, elabora planos-sequência complexos, além de escolher outra canção que encaixa como uma luva para colorir a ação: a clássica oitentista do Eurythmics, Sweet Dreams.
A sequência é tão fantástica que certamente te deixará num extase que dificilmente ocorre com frequência no cinema. Mesmo sendo uma repetição de algo que já havia nos deixado boquiabertos em Dias de um Futuro Esquecido com a junção tão perfeita de técnicas cinematográficas e efeitos práticos e digitais, é impossível permanecer indiferente. Só de comentar aqui já me deixa com vontade conferir novamente o trabalho realizado com maestria. Não só a coreografia é animal, mas também por ser muito divertida. De longe, está na minha rigorosa seleção de melhores cenas do ano.
O Melodrama Mutante
O mais surpreendente é que Singer entrega não somente essa sequência fenomenal, mas sim duas! Antes dela, o diretor se coloca à prova ao usar o maravilhoso segundo movimento da Sétima Sinfonia de Beethoven. Apesar da composição ser tão magnifica a ponto de elevar uma cena onde poderia exibir um indivíduo passando manteiga no pão, fazer com que ela funcione de modo verdadeiramente correto é uma tarefa que exige um esforço intelectual notável.
A sinfonia é encaixada quando Oscar Isaac e seu Apocalipse tem o momento mais alto no longa, ao declamar seu monólogo tenebroso enquanto invade o Cerebro, possui Xavier e assim comandando diversos soldados que lançam todos os mísseis do arsenal atômico das nações, literalmente, para o espaço. A junção de planos que acompanha toda essa ação é elegante, talvez o momento mais inspirado para essa técnica no filme mesclando o terror de Xavier, a pompa de Apocalipse, o medo dos humanos comuns, a incredulidade dos comandantes de altos escalões, da possessão dos jovens soldados, dos mísseis sendo disparados, além de mostrar algum escopo de destruição. Por mais que seja um uso espetacular, ainda não consegue superar o clímax sensacional de O Discurso do Rei onde Tom Hooper também conta com o auxílio poderoso de Beethoven.
Entretanto, assim que a música cessa, John Ottman e Michael Hill passam a cometer alguns erros grotescos. Repare que em algum momento, James McAvoy solta um tremendo grito que leva um corte seco no áudio quando vem um novo plano. Ou seja, sufocam uma ação do ator por descuido. É algo feio quando notado e que pode tirar um espectador mais atento do filme. Também há falta de atenção ao alocar tão estranhamente a noite eterna que acompanha o núcleo Mística-Noturno na Berlim Oriental enquanto com outros personagens, alguns dias chegam a passar. Os erros de corte não ficam restritos aí. No clímax reaparecem algumas vezes deixando a ação pouco inteligível ou fantasiosa demais em certas ocasiões.
Singer também derrapa um pouco ao não saber fazer o grupo lutar integralmente juntos apostando mais em ações que acompanham embates um-contra-um. Um deles é particularmente fraco com Psylocke vs. Fera. O restante é adequado, mas nada tão inventivo como a boa exibição dos poderes de Mercúrio na luta. A qualidade da computação gráfica oscila muito também no clímax. Enquanto efeitos de partículas e colisão permanecem bons, a modelagem dos corpos digitais, principalmente de Psylocke, saltam aos olhos de tamanha bizarrice. É algo tão tosco que até mesmo o modelo de Olivia Munn fica completamente desproporcional durante a queda de uma aeronave.
Outras duas áreas técnicas que são opostas na qualidade são o ótimo design de produção contra a maquiagem irregular. Grant Major se desvencilha da adaptação fiel de cenários que visam retratar os anos 1980. É uma mistura adequada do fantástico com o histórico, auxiliado muito pelo figurino criativo que segue a mesma linha que inclusive consegue apresentar os looks clássicos de muitos dos heróis e vilões. Um ponto bem elaborado é reconstrução da base Stryker no lago Alkali que consegue remeter bem à versão apresentada em X2. Aliás, uma pena terem desperdiçado a oportunidade de inserir fidedignamente o clássico capacete desenhado por Barry Windsor-Smith no arco clássico de Arma X na representação mais animalesca e selvagem de Wolverine que pudemos conferir até agora.
Já sobre a maquiagem, enquanto acertam no tom com Fera e Noturno, o design de Apocalipse pode não satisfazer muita gente. Por conta do passado faraônico, o personagem mantém os mesmos trajes até a conclusão do longa. Talvez tenha ficado tudo pesado demais e pouco adequado, mas faz certo sentido para elaborar o choque temporal que deveria ter ocorrido no texto do filme em seu arco dramático. Aliás, também é um deslize do departamento não se preocupar em começar a envelhecer os personagens principais como Xavier e Fera. Já se passaram vinte anos na diegese proposta desses filmes e muitos mutantes continuam com o mesmo semblante jovial.
Por falar em drama, Singer abusa e muito do melodrama nessa obra. A linguagem visual, os picos dramáticos e os atores shakespearianos não poderiam colaborar mais. Ele sabe valorizar bem os elementos mais densos que o roteiro traz em sua história. No momento mais trágico na cena destinada à morte dos familiares de Magneto, Singer valoriza a atuação monumental de Michael Fassbender através de planos muito aproximados da face do ator que exprime sua tristeza com fúria.
Talvez o momento mais brilhante, tanto de Fassbender quanto de Singer, se dê justamente quando Magneto destrói Auschwitz levando seus poderes a novos patamares. Em mais um monólogo repetitivo de Apocalipse, Magneto passa a explorar a total extensão de sua mutação – genial o lance do departamento de computação gráfica em traduzir os movimentos dos metais movidos por Magneto como a representação gráfica cientifica do eletromagnetismo. Nesse momento de total concentração, a sutileza de Singer dá as caras novamente.
Enquanto o vilão move montanhas de metais, flashs de memórias terríveis e alegres interpolam com a ação remetendo a lição que Xavier ensina para Magneto em Primeira Classe quando ele tenta movimentar a gigantesca antena – o exato limiar entre a serenidade e a raiva. É algo sutil que apenas alguns espectadores vão captar. Não é Apocalipse quem desperta o poder máximo de Erik, mas sim seu amigo Charles Xavier – algo que condiz com a escolha benevolente de Magneto ao salvar sua família X-Men da morte certa. Aliás, Singer une Apocalipse com Primeira Classe diversas vezes através de flashbacks. Aqui fica claro que a trilogia de estabelecimento do grupo acabou, assim como a maior parte de seus dramas.
Também no melodrama, o diretor valoriza bastante da atuação de James McAvoy. Outro elemento que elabora o uso desse dispositivo se dá nas duas partes do clímax. Primeiro, Singer confere senso de urgência e perigo quando os jovens mutantes começam a lutar contra o tempo para salvar Xavier de ser possuído pela consciência de Apocalipse para sempre. Resolvido isto, há o embate psicológico entre os dois. No drama centrado no diálogo, Singer já elabora toda a pieguice inerente à essa técnica como o surgimento de Jean no último minuto, o discurso sobre a família e aos gritos eufóricos de Xavier para Jean “Unleash your powerrr!!! Let go, Jean! Let Go!!!”. Evidente, é brega, mas há quem goste de um bom dramalhão que salta para o momento épico e escancarado da desintegração de Apocalipse ao receber as ondas radiantes da Fênix.
Sendo completamente honesto, eu simplesmente adorei X-Men: Apocalipse. Tinha os elementos que eu queria tanto em um filme de herói: um vilão que quer dominar o mundo, transformações de jornada para os heróis, exploração dessa nova realidade paralela contrastada com o universo da primeira trilogia, humor e drama adequados coexistindo em equilíbrio, ação competente, sequências verdadeiramente memoráveis e cinematografia inspirada. Tudo isso é presente aqui, porém passada a euforia inicial causada pelo efeito Mercúrio aliada a boa reflexão, os tropeços do filme ficam mais evidentes fugindo inclusive do campo do conteúdo para atingir a forma da obra.
As repetições de situações ou conflitos já vistos em outros filmes podem cansar, apesar de darem certa unidade muito característica para essa trilogia. O núcleo antagonista é o que mais sofre de defeitos limitadores e incoerentes do roteiro, a pressa em não desenvolver melhor outros núcleos também é notória, além do abandono completo de características que seriam muitíssimos interessantes como a seita que glorifica En Sabah Nur já no segundo milênio.
Definitivamente um filme muito satisfatório e divertido que me deixou curiosíssimo para conferir as próximas obras que Singer planeja junto com a Fox. Se eles se tocarem que as novas aventuras que surgirem nos próximos anos não precisam, necessariamente, sempre superar as antigas em questão do escopo e escala de tragédia, teremos filmes que poderão trazer nova vida ao gênero um tanto já desgastado.
X-Men: Apocalipse (X-Men: Apocalypse, EUA – 2016)
Direção: Bryan Singer
Roteiro: Simon Kinberg
Elenco: James McAvoy, Michael Fassbender, Jennifer Lawrence, Nicholas Hoult, Oscar Isaac, Evan Peters, Olivia Munn, Sophie Turner, Tye Sheridan, Alexandra Shipp, Kodi Smit-McPhee, Rose Byrne, Lucas Till, Ben Hardy, Josh Helman, Landa Condor, Hugh Jackman
Duração: 143 min.
Crítica | Os Oito Odiados
Os anos 1990 foram tão importantes quanto a retoma hollywoodiana dos fabulosos anos 1970. Os blockbusters originários da santíssima Trindade Tubarão, O Exorcista e Star Wars estavam consolidados. O cinema ia tomando uma escala global nunca vista antes. A criatividade ainda era muito viva com autores clássicos que sobreviveram o caos do descontrole pessoal como Spielberg, Malick, Scorsese e, por que não, George Lucas.
Porém, novos talentos tomaram espaço de modo expressivo revivendo a coragem outrora vista no novo cinema: Paul Thomas Anderson, Jonathan Demme, Wes Anderson, David Fincher, Christopher Nolan, Michael Mann, Frank Darabont, Gus Van Sant, Luc Besson, Bryan Singer, os Irmãos Coen, as Wachowski, James Cameron e, principalmente, Quentin Tarantino. Dentre todos eles, o filme que encabeça diversas listas como o melhor da década é Pulp Fiction, obra máxima de Quentin Tarantino.
De certa forma, Tarantino foi quem encabeçou o movimento indie marginal que estava para estourar com Cães de Aluguel. Mas nada seria de Quetin sem três outros protagonistas que souberam reconhecer o valor daquele filme: o sucesso no Festival de Sundance e o interesse dos maiores caça prêmios da indústria, apesar das características ditatoriais dos dois: Harvey e Bob Weinstein. Com a Miramax, Tarantino foi longe, fez um estrondoso sucesso, cresceu como cineasta de modo muito expressivo. Ultrapassou barreiras ao fazer filmes universais com linguagem própria, além de chamar atenção pela violência expressiva.
A verdade é que Tarantino nasceu autor. Goste ou não. E agora, mantendo a duradoura parceria com os irmãos Weinstein, Quentin chega a seu oitavo filme – nono, na verdade. Para os mais ansiosos, sim, Tarantino realizou outro excelente filme que todos os fãs gostarão, além de que será indicado merecidamente para diversos Oscar. Porém existem alguns problemas que logo mais abordarei na continuidade do texto.
A história acompanha a jornada do Major Marquis Warren até a cidade de Red Rock para coletar a recompensa por três procurados que carrega consigo. Completamente à deriva em meio a uma nevasca perigosa, Warren consegue parar uma diligência que caminhava pela estrada. Nisso, o protagonista encontra John Ruth, outro caçador de recompensas que está transportando Daisy Domergue – uma perigosa integrante de uma das gangues mais violentas do Wyoming. Chegando em um acordo, o grupo parte para o destino em comum. No meio do caminho, encontram um antigo fora-da-lei que se diz xerife de Red Rock. Optando por não duvidar do homem, John e Marquis concordam em dar carona para Chris Mannix até a cidade. Entretanto, com a forte nevasca, eles se vêm obrigados a tomar abrigo na hospedaria Armarinhos da Minnie.
Lá eles encontram um grupo de gente estranha e mau encarada, porém como não há outra alternativa além de esperar o fim da nevasca, todos aguardam na hospedaria. Dentro desse confinamento forçado, o grupo de oito pessoas odiadas terá que tolerar a existência um do outro até o tempo melhorar. Pena que a paciência é curta e as provocações, muitas.
Assim como em Cães de Aluguel, Tarantino trabalha novamente com narrativas que se concentram em pouquíssimos cenários explicitando o cunho teatral. Não se engane, Os Oito Odiados se trata de um teatro filmado, muito bem filmado, aliás. Porém, como em todos os filmes do tipo, ele tem alguns problemas.
Tarantino, diferentemente de muitos outros diretores contemporâneos, tem forte presença autoral no texto de seus filmes. Pegando os roteiros de todos os seus trabalhos, é possível perceber semelhanças nítidas entre si. Não se trata da história de cada filme que sempre são originais, mas de algumas características que quem acompanha de perto já conhece. Diálogos poderosos, personagens bem desenvolvidos, flerte com a violência gráfica, trabalho majestral com atores, nenhum receio em matar seus personagens por mais que ele seja querido e vital para a obra – vide Django Livre, trilha musical marcante, recursos visuais um tanto estilizados, tensão crescente, etc.
Seguindo a tradição de diversos filmes anteriores, o diretor divide seu filme em capítulos. No caso, seis. O filme tem ótimo início. Tarantino segura um plano forte por três minutos inteiros que exibe apenas um crucifixo e a diligência seguindo seu caminho – enquanto focava em Cristo, o plano me lembrou da histórica sequência das múmias em Nosferatu de Herzog. Tão pouco começamos a entender que o filme se trata em trabalhar com espaços confinados e o sentimento de claustrofobia do espectador. Sabendo que todo mundo pode morrer a qualquer momento só contribui para nos deixar ansiosos enquanto os personagens se digladiam com diálogos provocantes.
Entre os capítulos, o filme tem ritmo razoável. O maior problema de Os Oito Odiados é o terceiro capítulo. Ali, ficamos em um marasmo narrativo inacreditável por quase quarenta e cinco minutos dos sessenta dedicados a ele. O motivo é simples: a natureza repetitiva para apresentar alguns personagens, os diálogos que perdem o brilhantismo de outrora e, aparentemente, tornam-se circunstanciais e banais como uma conversa comum – só que muito bem escrita, obviamente, e principalmente pela falta de confrontações realmente significantes. Tudo isso é compensado pelo clímax brilhante do capítulo que ocorre quando um dos personagens se põe a tocar Noite Feliz no piano enquanto outros dois apresentam o melhor de um texto que só Tarantino sabe fazer.
Admito que nesse capítulo em particular é um tanto difícil escapar da sonolência. Na contagem oficial de personagens que são devidamente trabalhados temos nove se incluirmos o cocheiro da diligência, O.B. Porém, infelizmente, parte deles são desenvolvidos apropriadamente enquanto outros pecam na apresentação. Os mais prejudicados disso são Joe Gage – interpretado pelo sempre igual Michael Madsen, e Bob, o mexicano suspeito. Oswaldo também passa a ser esquecido durante o filme. Aliás, personagem esse pensado com absoluta certeza para Christoph Waltz – o engraçadinho com língua afiada que sabe se defender. Com a ausência de Waltz, Tim Roth é escalado para cumprir o papel. O ator é excepcional. Ele incorpora o trabalho de personagem que Waltz havia feito nos filmes anteriores e apresenta aqui uma verdadeira cópia de qualidade na dicção e nos gestos cínicos enquanto tenta criar algo seu.
Como a história se passa pós-Guerra Civil, Tarantino volta a abordar a questão racial que assola a América até hoje. No caso, vemos os desdobramentos da Guerra e o fim da escravidão que levam a outros diálogos – estes cheios de ódio, ressentimento, rancor e ofensas raciais dos dois lados. O embate se dá sempre entre o personagem do excepcional Samuel L. Jackson contra outro personagem do elenco sendo o conflito mais significativo e interessante de ver com o general Sandy Smithers – como eu queria ver Bruce Dern indicado ao Oscar pelo papel. O teor do texto é mais pesado que nos outros filmes e aborda, menos intensamente, a vingança. Claramente os personagens se detestam e todos são desprezíveis.
Por esse motivo em particular e pela qualidade um pouco aquém em construção de personagem e de diálogos triviais, me senti muito desconectado do drama deles. Admito que é algo meu, mas sinceramente, eu não conseguia me importar com o destino de nenhum deles. Ou seja, faltou muito do elo espectador-personagem que valorizamos tanto o que afeta diretamente a tensão e crescente paranoia que o diretor tenta construir nesses capítulos. Geralmente o elo é construído através do heroísmo do carisma ou com um anti-herói carismático. Como aqui não há, propositalmente, uma linha moral nítida para nos guiarmos, nos contentamos com as brilhantes atuações da maioria do elenco e com o texto caprichado.
Fora o marasmo do terceiro capítulo, Tarantino também mete os pés pelas mãos com o quinto capítulo ao adicionar um flashback completamente desnecessário e redundante já que a própria revelação do texto deixa tudo muito claro quebrando a lógica de inserir esse segmento que também não é lá muito interessante e quebra o já frágil ritmo ao fazer o longa retornar a um penoso marasmo criativo.
Entretanto, Tarantino acerta tanto quanto erra. Primeiro por sua fantástica personagem Daisy Domergue. A polêmica já se inicia por ela apanhar fervorosamente durante o filme inteiro. Ela passa pelo inferno, sofre abusos psicológicos e físicos a todo momento, além de ter um final que louva, glorifica a violência. Certamente há a controvérsia gerada na figura dela – muita gente vai questionar a violência. Porém, como eu detesto impor regra na arte alheia deixo isso para os politicamente corretos ou puritanos que certamente tomaram as ofensas desse filme para si.
A meu ver, a personagem somente sofre tanto por ela ser um perigo a segurança do grupo inteiro, além de, claro, todos serem tão detestáveis quanto ela. Tarantino cria uma atmosfera verdadeiramente tenebrosa para Daisy e isso nos afeta diretamente. Como ela fica algemada a todo tempo com outros personagens se certificando disso constantemente, temos a impressão que o Inferno será aberto caso ela se liberte e acabe por matar todo o elenco. Muito disso vem da perfeita atuação de Jennifer Jason Leigh – se ganhar o Oscar, terá sido muito merecido. Apesar de sua personagem apanhar e sentir muita dor, Jennifer sempre resolve com um sorriso provocador, um olhar assassino, por uma risada maníaca ou algo que evidencia a loucura da mulher. O mais interessante de sua atuação foi que ela me lembrou muito da performance de Ally Sheedy em O Clube dos Cinco com a igualmente estranha Allison. Só que óbvio atestar que Leigh apresenta um trabalho muito mais visceral já que se trata de um filme adulto com extrema violência.
Com o trabalho de câmera restrito a espaços confinados, muitos diretores encontram dificuldade para diversificar a decupagem. Pela competência de Tarantino Os Oito Odiados é um filme muito rico visualmente mesmo com a restrição provocada pela teatralidade do longa. O diretor apresenta sempre sequencias muito bem elaboradas visualmente e muito ricas na composição. Fora que Quentin não se limita a ficar com câmera parada. Temos aqui o melhor trabalho de movimentação de câmera do ano vide a limitação que ele teve, mas não somente pelo motivo dos movimentos serem clássicos, lentos, atmosféricos, bem pensados e singelos, e sim pela trabalha absolutamente impressionante de mise em scene. Em muitos planos observamos não apenas um personagem em primeiro plano realizando alguma ação, mas sim outros atores fazendo algo completamente diferente na profundidade de campo. É um trabalho de encenação extremamente orgânico tendo característica vinda diretamente do teatro para o cinema já que nos filmes é mais frequente o diretor sempre se preocupar com a ação de primeiro plano, deixando o uso da profundidade de campo em escanteio.
Quem também adorava trabalhar com ação e longas profundidades de campo era Orson Welles. Aliás, em um dos movimentos de câmera, Tarantino parece fazer algo similar com o plano histórico de Cidadão Kane na cena em que vemos Kane brincar ao fundo na neve enquanto acompanhamos seus pais assinando os documentos permitindo a adoção do menino. No caso de Os Oito Odiados¸ não há a mesma importância narrativa. Quentin elabora apenas um enfeite belo que mostra O.B. e Bob retornando para a cabana através de uma janela para depois realizar um travelling para acompanhar a leitura silenciosa de Joe. Depois, com uma passagem de foco, observamos John e Daisy tomando conhaque em terceiro plano. É algo visualmente estonteante.
Voltando a comparar com Cães de Aluguel, este é um dos filmes com menos firulas visuais ou com imagens estilizadas. O trabalho do diretor é mais fixo à realidade somente se permitindo ao excesso com o tradicional banho de sangue. A mudança de ares é muito bem-vinda principalmente por este ser o antepenúltimo filme de sua carreira. Tons mais sérios para um cineasta mais maduro. Porém, mesmo com todo o esforço brilhante da decupagem e encenação, Tarantino não consegue livrar o filme de seu ritmo demasiadamente lento. Claro que os fãs não se importarão com isso, mas para o espectador comum, pode ter certeza que isso pesará muito. Além disso, uma das marcas autorais mais recorrentes de Quentin, se faz presente: a farsa. Dessa vez não só nos personagens como também em algumas características na narrativa. Como sempre, o diretor sabe resolver bem a resolução das farsas que ele apresenta. Tudo satisfatório, porém, apenas uma surpreende de fato.
Por ser um filme mais sério, Tarantino arrisca pouco na criatividade. Alguns momentos se sobressaem com uma montagem paralela na melhor cena do filme, com alguns slowmotions e com os modos de matar os personagens ao buscar um ótimo viés de humor negro que ele vem trabalhando ao longo da carreira – aliás, este é um dos filmes que ele melhor trabalha a comédia. O melhor momento, entretanto, se concentra na apresentação do capítulo quatro quando ele quebra as regras diegéticas que havia estabelecido até então ao inserir, momentaneamente, um narrador a la Dogville puxando influencias de Lars Von Trier e Martin Scorsese. Já para as sequências de tiroteio, a influência de Sam Peckinpah na ação e na montagem é expressiva.
Além destes realizadores, Tarantino confirmou na coletiva que sua principal inspiração para Os Oito Odiados foi Enigma de Outro Mundo, clássico da ficção científica de John Carpenter. Em sua maioria, a inspiração é bem aplicada inclusive com a ideia interessante de trabalhar com um faroeste cercado por um ambiente montanhoso, cheio de pinheiros e com muita neve ao contrário do senso comum do conceito de deserto que pensamos assim que lembramos de westerns. O confinamento forçado e o perigo que toma toda a atmosfera são impressões que Tarantino consegue nos apresentar, porém acho que ele falha ao conseguir imprimir a tensão e paranoia do longa de Carpenter – talvez, com outra visita ao filme, minha opinião mude.
Uma das peças mais propagandeadas desse longa foi o fato da sua cinematografia ser incomum. Tarantino e Robert Richardson, seu diretor de fotografia, escolheram o praticamente extinto formato Super Panavision 70 que foi popular nos anos 1960. Ao contrário do comprimento normal do filme fotográfico de 35mm, o Super Panavision 70 trabalha com 65mm no negativo. Dois filmes muito famosos foram filmados no formato: Lawrence da Arábia e My Fair Lady.
Com Os Oito Odiados tive meu primeiro contato com esse tipo de película. Como nós não temos projetores de 70mm no Brasil, o formato de exibição será praticamente um ultra wide screen com as tradicionais barras negras horizontais ocupando um espaço maior do que o habitual na tela. Caso você veja o filme em uma sala Cinemascope, as barras serão ligeiramente menores – o Cinemark não possui salas nesse formato então prepare-se para ver a letterboxd ocupar consideravelmente a tela.
Isso acontece para ajustar a imagem no anteparo já que ela, na prática, captura muito mais elementos visual na horizontal. E meus amigos, acreditem, foi uma das experiências mais impressionantes que já tive na vida – mesmo sem conferir nos 70mm propriamente ditos. Tarantino sabe bem como usar o formato para apresentar o espetáculo visual nas belíssimas externas que marcam o início do filme. É difícil até de descrever. O formato consegue capturar uma montanha inteira e seus arredores em um enquadramento. Sim, digno de tirar seu fôlego.
Porém, relembrando o caráter teatral do filme que praticamente não sai do cenário, fica o questionamento: para que usar um formato que visa engrandecer imagens externas em um filme que se passa majoritariamente em imagens internas? Para mim não fez o menor sentido o que deu a impressão de um desperdício de formato. Seria muito mais interessante se ele tivesse usado o Super 70 em Django Livre do que nesse filme. Uma escolha dúbia.
Entretanto, o formato também auxilia muito no trabalho da iluminação barroca de Robert Richardson. Por ser um negativo imenso e, consequentemente, muito sensível a luz, as imagens são extremamente nítidas com absolutamente nenhum grão característico do 35mm. Richardson atinge um resultado em filme que eu só julgava crer ser possível com o digital acompanhado de cinematografistas competentes como Deakins e Cronenweth. Mesmo julgando ser um desperdício de um ótimo formato, as imagens para closes e planos próximos são tão impactantes e parecem valorizar tanto a expressão do ator que acabam nos afetando profundamente. Novamente, é maravilhoso. Vocês precisam ver o filme no cinema, mesmo que ele seja lento e meio entediante. Apenas para vivenciar essa experiência cinematográfica tão diferente, rara e bela. De vez em quando, Tarantino apresenta uns establishing shots externos que engrandecem o filme.
Além do formato jurássico, Tarantino também reviveu outra peça de museu lendária: Ennio Morricone. O compositor favorito do western spaguetti retorna para emplacar outro tema absolutamente maravilhoso. Com a melodia de seus violinos, flautas, trombones, bateria e gritos sufocados de um coral masculino, consegue criar o tema musical que cria, cresce sem parar ao elevar a tensão musical funcionando como um presságio do grande terror que será apresentado ao longo da história. É bem verdade que a melodia se assemelha bastante com os temas que ele criou em Os Intocáveis, clássico de Brian de Palma. Mas, ainda assim, consegue ser extremamente funcional e impactante. O tema simplesmente não sai da cabeça após o termino da sessão. Mais um trabalho fenomenal dessa lenda viva. Além de Morricone, o diretor também insere as sempre ótimas canções licenciadas que tornam seus filmes ainda mais memoráveis.
Além da música, temos o ótimo trabalho de mixagem sonora. O modo com que Tarantino pensou no som desse filme visa o hiper-realismo. Tudo serve para agregar a encenação. Nas cenas que ficamos dentro da diligencia, escutamos os trotes dos cavalos, as rodas amassando a neve e O.B. chicoteando e gritando com os animais, além dos diversos ruídos que a carruagem faz enquanto se balança desengonçadamente. Na cabana, os passos profundos que revelam o piso oco e velho que sempre range conforme a movimentação dos personagens, o assovio tenebroso e incessante do vento que tenta invadir e congelar a todos que estão dentro do refúgio, além das conversas paralelas vindas em murmúrios tímidos do outro lado da sala, assim como a explosão grave dos tiros e do desmantelar de um crânio. São sons todos muito bem cuidados pela criação da edição de som e inseridos no filme pela mixagem. É um trabalho absolutamente exemplar que deverá ser lembrado nas principais premiações do ano que vem.
Mesmo que Os Oito Odiados falhe justamente pelo motivo da narrativa dos filmes do diretor ser tão característica e própria a ponto de ficar manjada e previsível, além do ritmo dos acontecimentos ser arrastado e tedioso, Tarantino consegue trazer uma boa história com bons diálogos, bons personagens e excelentes atores. Os momentos de brilhantismo cinematográfico ainda existem. Estão presentes apenas em menor escala. Lembre-se que se trata sim de um teatro filmado – isso com certeza influenciará na sua escolha de ver ou não o filme.
Com sua oitava realização, Tarantino se aproxima do adeus ao cinema tão prometido por ele. Depois de uma obra com formato tão corajoso, além do texto polêmico e provocativo, fica a questão sobre o penúltimo projeto de Quentin. Eu, sinceramente, espero que ele renove sua fórmula de contar ótimas histórias, pois muitas coisas que ele apresenta aqui já indicam o iminente desgaste.
Os Oito Odiados (The Hateful Eight, EUA - 2015)
Direção: Quentin Tarantino
Roteiro: Quentin Tarantino
Elenco: Samuel L. Jackson, Kurt Russell, Jennifer Jason Leigh, Walton Goggins, Bruce Dern, Michael Madsen, Tim Roth, Demián Bichir, James Parks, Zoë Bell, Channing Tatum
Gênero: Suspense, Western
Duração: 187 min