Crítica | Crônicas do Irã – Um retrato sarcástico e minimalista do brutal regime iraniano

“Crônicas do Irã” merece ser assistido não apenas por ser bom cinema (sua estrutura esquemática não compromete o resultado final até pelo fato de a metragem ser reduzida)
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Exibido com admiração em Cannes, “Crônicas do Irã” é mais uma peça de resistência daquela que é a cinematografia mais corajosamente política em atividade hoje. Praticamente todo filme realizado sob a violenta teocracia iraniana é uma aventura de risco (inclusive de cadeia ou coisa pior) para todos os envolvidos e, embora proporcionalmente tímido, o reconhecimento dentro da comunidade internacional proporciona aos filmes possibilidade de distribuição mais ampla.

Aqui temos um exemplar de cinema de baixo orçamento e concepção bastante simples – embora diametralmente oposta ao efeito de inconformismo que causa. Em pouco mais de uma hora, a audiência de “Crônicas do Irã” irá travar contato com uma dezena de situações dramatizadas que, por outro lado, representam fielmente o teatro do absurdo que tem sido viver sob o chicote sectário que governa o país há quase 50 anos e que usa a desprezível colaboração da burocracia para (tentar) estabelecer controle absoluto sobre a vida dos iranianos e (especialmente) iranianas de todas as idades (inclusive das crianças, conforme um dos segmentos do filme deixa claro).

No Irã de 2023 (e 2024, e sabe-se lá até quando), quase tudo é crime: tatuar-se, raspar o cabelo, ter um cachorro, deixar o véu cair de madrugada sozinha em casa (se alguém olhar pela janela e presenciar a cena, já viu…), registrar um nome estrangeiro para o filho, disputar uma vaga de emprego, etc. O que o filme nos lembra mais uma vez é que nenhuma ditadura seria funcional sem o suporte infeliz de um verdadeiro exército de guardinhas medíocres e capatazes de repartição pública, aos quais a dupla de diretores não confere a dignidade de ter um rosto. São criaturas das sombras, vozes da escuridão, exercitando um repertório infernal de torturas materiais e psicológicas a uma população que há muito descobriu ser a malícia discreta a única forma de sobreviver e cultivar um modo de vida próprio num país onde cada aspecto da atividade pública ou privada é objeto de litígios e discussões religiosas.

Como muitas vezes o que de mais “produtivo” uma ditadura consegue ocasionar é criar condições a outra ainda pior, convém lembrar que o Irã antes da revolução islâmica que levou ao poder a horda de radicais que oprime seu povo hoje era um país relativamente próspero e laicizado, porém governado por uma elite política corrupta, perdulária e que também mantinha sua própria polícia secreta para perseguir dissidentes. O documentário “Decadence and Downfall: The Shah of Iran’s Ultimate Party”, de 2016, faz um retrato revelador e patético do regime anterior, que parecia implorar sinistramente por ser derrubado – como de fato foi, dando lugar a um outro ainda mais violento e prejudicial às pessoas comuns.

“Crônicas do Irã” merece ser assistido não apenas por ser bom cinema (sua estrutura esquemática não compromete o resultado final até pelo fato de a metragem ser reduzida), mas também por nos lembrar – pela milionésima vez – que toda ditadura é aquilo que é (um forma de controle brutal e injusta do modo de ser, pensar e viver de pessoas em geral pacíficas e desarmadas) e deve ser sempre repudiada, seja de qual natureza for (religiosa, militar, proletária, tecnocrática, tecnológica, jurídica, etc.). A mesma mão pesada que eventualmente supõe fazer “justiça” contra nossos “inimigos”, hoje, é a que irá se voltar contra nós, amanhã.

Crônicas do Irã (Terrestrial Verses, Irã – 2023)
Direção: Ali Asgari, Alireza Khatami
Roteiro: Ali Asgari, Alireza Khatami
Elenco: Majid Salehi, Gohar Kheyrandish, Sadaf Asgari
Gênero: Drama, Comédia
Duração: 77 min

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Sobre o autor

Daniel Moreno

Cineasta, roteirista e colaborador esporádico de publicações na área, diretor do documentário “O Diário de Lidwina” (disponível no Amazon Prime e ClaroTV), entre outros.

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