Crítica | Duna (1984)

O tempo não amadureceu Duna, nem nada há de amadurecê-lo. O próprio Lynch assume que não saiu

Quando Frank Herbert publicou o primeiro volume das Crônicas de Duna, em 1965, não poderia esperar que uma mente como a de Alejandro Jodorowsky pudesse transmutar sua obra numa incursão de megalomania cinematográfica. A discussão ecológica, econômica e política que iria para as telonas acabou num livro gigantesco, com todo o storyboard desenhado pelo quadrinista Moebius. O projeto é muito ambicioso até para os padrões de hoje, além de ser similar ao universo que Herbert criou na década de 60, pois, ao mesmo tempo que é tão ligado ao seu tempo e à futurologia das ficções científicas, está à frente do que era produzido na época. Herbert não via problemas em pular uma introdução, nem de colocar diálogos iniciais já carregados de vocábulos e conceitos específicos da sua criação. O catatau vem, diga-se, acompanhado de vários apêndices explicativos. O projeto do escritor casa com o tempo da literatura. Terminamos o livro e o mundo permanece real (pela magnitude da história) e metafórico (pela sua intemporalidade).

O problema de transpor uma obra com tantas explicações, que abusa dos parágrafos expositivos para se firmar gradativamente, é que o tempo do Cinema é outro. Ainda mais, do cinema americano. Quando David Lynch foi escalado para fazer a adaptação de Duna, a escolha foi feliz. A história de Duna não é uma ação típica. Há algo de novelesco, em que a intriga principal é menos importante do que as subtramas palacianas. É um praticamente um enredo onde o narrador faz as revelações previamente, e a tensão se reconstrói a partir dessas descobertas. A tecnologia se encontra com a magia, num mundo imaginado 8 mil anos no futuro, e os computadores foram abolidos e substituídos por seres orgânicos com capacidades além da imaginação. Ou seja, há espaço para os mistérios lynchianos se desenvolverem, mas não há tempo.

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A história de Duna ocorre num universo em que a sociedade é organizada em clãs. Os Atreides, símbolo de seres civilizados, são a família do protagonista Paul (Kyle MacLachlan), que está em conflito com os Harkonnen, bárbaros gananciosos. Eles disputam o controle do planeta Arrakis (o Duna do título), um imenso planeta desértico onde é produzida a especiaria melange, que está mais para uma droga. O seu consumo possibilita aos humanos atingir uma consciência de outro nível e, entre outras coisas, viver centenas de anos ou tornar-se o computador-guia de uma espaçonave. Enfim, “aquele que controlar o tempero, controla o universo”, brada o Barão Harkonnen (Kenneth McMillan). Em Arrakis vive o povo primitivo Fremen, com o qual Paul vai se refugiar após uma série de intrigas e assassinatos na Casa dos Atreides. Em contato com essa comunidade, encontra seu destino messiânico, para o qual o foco do filme é direcionado em seu último terço.

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O que há de gostoso na aridez do livro, o filme transforma em uma duna intransponível, feia, imóvel, desinteressante. O roteiro não sabe para onde ir, fica perdido em meio à abundância de temas abordados pelo romance e fica patente sua incapacidade de aprofundá-los ou até mesmo de introduzi-los. São muitos personagens e muitas tramas que não conseguem se dissolver no longa. A abordagem “no meio das coisas” funciona de maneira diferente para a Literatura e o Cinema. Afinal, um leitor é o dono do seu tempo. No cinema, o espectador só pode sair da sala e desligar-se do filme. O que não deve tardar, porque, além de visualmente não ter nenhum charme fora dos figurinos, os efeitos especiais já eram toscos para a época e a fotografia só embrutece o filme. Há um impacto de grandiosidade – a aparição dos vermes gigantes, o esconderijo subterrâneo dos Fremen –, mas tudo parece se esvair com um sopro.

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O tempo não amadureceu Duna, nem nada há de amadurecê-lo. O próprio Lynch assume que não saiu como planejado. Apesar de tudo, numa visão geral, o filme não é um filho ilegítimo. A mística da mitologia criada por Herbert combina com a visão de mundo do diretor. Um pouco mais literal do que a pedida, mas ainda assim, há algo de belo na frase “uma ficção científica dirigida por David Lynch”. Talvez trombe nos ecos do pretensioso “grande cinema”. É uma estrada perdida, sem entrada e sem saída, no mapa rodoviário mental do diretor – o que, só por existir, não deixa de ser interessante.

Duna (EUA, 1984)

Direção: David Lynch
Roteiro: David Lynch
Elenco: Kyle Maclachlan, Sting, Sean Young, Virginia Madsen, Everett McGill, Jack Nance, Charlotte Stewart, Freddie Jones, José Ferrer, Brad Dourif, Max Von Sydow, Dean Stockwell, Patrick Stewart
Gênero: Ficção Científica
Duração: 137 min

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