Uma das maldições inquebrantáveis de Hollywood envolve a tremenda falta de sorte na adaptação de games para as telonas. As tentativas já foram inúmeras com orçamentos para lá de generosos como o caso de Assassin’s Creed e Warcraft, mas como muitos sabem alto valor de produção nem sempre reflete qualidade inerente.
Até mesmo quando tivemos a tentativa de criar um roteiro original em cima dos games para trazer algo novo, o resultado foi Pixels, uma das obras mais infelizes da carreira de Adam Sandler. Porém, agora, em uma segunda célebre tentativa de roteiro original, temos Free Guy: Assumindo o Controle.
Planejado para ser lançado há tempos, em 2020, Free Guy foi adiado três vezes até conseguir estrear nas telonas. E a espera valeu a pena, ainda mais se tratando de uma das primeiras produções já organizadas pela Disney quase que integralmente – o filme originalmente era da Fox.
O Show de Free Guy
O roteiro original de Zak Penn e Matt Lieberman parte de uma premissa simples, mas interessante: e se os NPCs de videogames tivessem, de fato, sentimentos, sonhos, vontades e desejos? Conhecemos Guy (Ryan Reynolds), um atendente de banco que vive sua rotina ordinária todos os dias: acordar, dar olá ao seu peixe dourado, vestir a mesma roupa de sempre, tomar seu café e ir trabalhar no banco que é roubado todos os dias em diferentes horários na cidade de Free City.
O que ele não faz ideia é que essa sua rotina é programada, pois ele é um NPC, um personagem não jogável, em um massivo game online chamado Free City – a inspiração do jogo vem diretamente de Grand Theft Auto Online. Logo, ele nunca estranha o caos, destruição, mortes e violência que acontecem todos os dias ao seu redor. Há apenas um sonho em sua vida: encontrar um grande amor.
Isso acontece casualmente, por um acaso do tempo, quando encontra uma mulher cantarolando uma de suas canções favoritas. Se apaixonando instantaneamente, ele foge de sua programação e passa a tentar encontrar a mulher novamente na cidade. O que ele não sabe é que ela é uma jogadora do game em sua própria missão para mudar uma injustiça na vida real.
É louvável o trabalho da dupla de roteiristas em tornar Free Guy um filme relativamente acima da média para contar uma boa história divertida, com doses adequadas de ação explosiva, romance e até mesmo uma intriga secundária que se conecta perfeitamente com o desenvolvimento de Guy.
O filme possui duas narrativas que correm em paralelo. Enquanto Guy passa por sua jornada pessoal para conquistar o coração de Molotovgirl (Jodie Comer) dentro do universo do jogo, rompendo completamente as limitações de sua programação, acompanhamos toda uma intriga envolvendo Millie, a jogadora que controla Molotovgirl dentro do game.
Através dela, o espectador entra em outro conflito que apresenta o antagonista da trama, Antoine (Taika Waititi), dono da desenvolvedora de Free City que tem um segredo sujo envolvendo Millie e seu antigo sócio Keys (Joe Keery). Juntos, os dois tentam provar uma trapaça de Antoine antes que o game original seja desativado para dar lugar à sequência.
Escrevendo, realmente parece que o filme possui coisas demais para serem trabalhadas em questão de apenas duas horas, mas o ritmo da escrita e o poder de síntese visual oferecido pelo diretor Shawn Levy colaboram muito para que tudo funcione sem exageros.
O roteiro é, em si, bastante didático por boa parte do tempo para situar o espectador nas regras do jogo com diálogos bastante simples, mas eficazes, afinal não dá para desperdiçar muito tempo no vai e vem entre as narrativas paralelas.
Fora isso, Free Guy possui a vantagem do público já ser bastante educado pelo conceito de filmes que realmente quebraram barreiras narrativas trazendo influências muito admiráveis de Matrix, O Show de Truman – Guy é praticamente uma mimese competente de Truman e Reynolds se inspira em Jim Carrey para entregar um boa atuação, e até mesmo Ela, de Spike Jonze, rendendo uma cena cômica impagável entre Millie e Keys.
É um roteiro muito bem estruturado que rende até mesmo alguns estudos de narrativas clássicas bem sucedidas, afinal o filme funciona perfeitamente. Destaque também para alguns personagens secundários que possuem pequenos arcos tão significativos dentro do filme: desde o amigo segurança de Guy, da barista de café ou da “gostosona”. Os defeitos são poucos e não incomodam, mas são bastante presentes.
O primeiro deles é o já citado didatismo que se torna muito presente no final do filme com exposição desnecessária – aliás, toda a apresentação de noticiários e streamers comentando sobre Free City em geral é desnecessária, mas novamente, se trata de uma influência de O Show de Truman em seu clímax.
O personagem de Taika Waititi não possui o mesmo refinamento dos outros com uma queda significativa da qualidade dos diálogos, o tornando um dos elos mais fracos da obra. Aliás, todo o núcleo narrativo envolvendo a Soonami, desenvolvedora do game, quebra um pouco o ritmo do filme.
Também nada contribui o visual genérico do escritório onde acontecem muitas das cenas do filme – isso, claro, é proposital para reforçar o quão nada inspirada e engessada é a desenvolvedora em uma metáfora visual, mas ainda assim, não agrada.
Por fim, é uma pena que os roteiristas não ousem um pouco mais com tanta liberdade de criação dentro de um cenário tão favorável como é Free Guy. No núcleo fantasioso da obra, realmente era possível criar coisas mais interessantes. Isso, curiosamente, surge no final do filme como uma forma de tornar a ação mais inventiva, mas acabam se assemelhando demais à 2012 de Roland Emmerich.
É uma pena também que executem tão bem a quebra das regras da rotina de Guy através de uma homenagem genial envolvendo Eles Vivem de John Carpenter com o uso dos óculos escuros – todos os jogadores usam óculos escuros e conseguem enxergar o HUB do jogo através deles. Enquanto esse conceito é tão bem aproveitado com Guy descobrindo um mundo completamente novo, o mesmo não pode ser dito na hora do confronto da realidade do personagem compreender que ele não existe na vida real.
O Clichê de Schroedinger
É justamente aqui que entramos no que pode ser tanto o maior trunfo quanto o maior defeito de Free Guy: o filme transborda clichês. Desde toda a fundamentação do protagonista, ao romance, à ação, ao conflito, no clímax, desfecho e resolução. Se o espectador se pegar pensando demais, vai notar que se trata de uma história que já viu milhares de vezes antes, mas com uma roupagem inventiva e bem interessante.
Logo, para mim, isso não foi um problema, mas de fato existem clichês à rodo. Acontece que eles são tão bem executados que encantam. Os romances, principalmente. Pela doçura e bastante inocência, rendendo uma conclusão de arco muito bonita para o personagem de Keys através de um diálogo brilhantemente escrito – mas, novamente, prejudicado pelo didatismo do filme.
Não seria justo terminar a crítica sem elogiar o trabalho de Shawn Levy na direção. Antes extremamente ocupado por Stranger Things, fazia tempo que o cineasta não voltava para as telonas – desde 2014 com Uma Noite no Museu 3. Ainda que Free Guy não seja um desbunde visual, é um filme executado com firmeza e chega até mesmo a fazer uma homenagem involuntária à Psicose nos minutos iniciais do filme na apresentação de Free City e de Guy em si.
Há muito da presença do estilo de Peter Weir (diretor de O Show de Truman) na encenação principal enquanto tudo explode ao fundo de cena no melhor estilo Michael Bay. Aliás, sempre há uma piada visual bem arrojada construída no fundo de cena tornando a encenação da obra mais inspirada nesses momentos.
Talvez o que falte um pouco mais é a ousadia em Levy na execução das cenas de ação, ainda que haja todo o departamento de segunda unidade para trabalhar nisso. Elas são divertidas, competentes e recebem influência direta de Matrix, mas nenhuma realmente vai ficar na sua memória dias depois de ter visto o filme.
Mas há alguns momentos que se sobressaem com muita eficácia. Um deles é uma sequência em montagem genial trazendo Guy em seus esforços para subir de nível dentro do jogo na qual Levy usa conceitos divertidos já vistos em No Limite do Amanhã.
Outro ótimo momento é um beijo que utiliza os recursos visuais mais clichês do mundo, mas que sempre me trazem um sorriso: a clássica rotação da câmera em 360º em câmera lenta enquanto algo explode brilhante ao fundo. Fora isso, Levy adiciona elementos visuais eficazes para fazer literalmente um mind blown na cabeça de Guy.
Por fim, a última é uma surpresa sensacional que não tenho o menor direito de estragar. É simplesmente hilária, inteligente e traz uma participação especial que ninguém, literalmente, espera. É realmente genial.
Também é importante frisar que Levy costuma acertar a mão com a trilha musical licenciada, porém, enquanto eficaz e dosada, a trilha original sofre do mesmo didatismo do roteiro tentando conduzir as emoções do espectador à mão firme sendo que já há uma encenação, atuação e textos bastante eficazes sem apelar ao sentimentalismo extrapolado das músicas instrumentais.
Assumindo o Cinema
Dado o cenário atual, diante de tanta coisa que aconteceu na vida de inúmeras pessoas, Free Guy estreia em um momento crucial. O filme é um feel good clássico que diverte, emociona e te deixa uma sensação boa ao sair do cinema.
Com uma boa história, trazendo um Ryan Reynolds bastante inspirado a ponto de fazer sua interpretação evoluir conforme Guy vai se tornando cada vez menos um NPC, não é exagero dizer que o filme é a desculpa perfeita para matar aquela saudade arrebatadora que tanta gente sente do cinema.
Para mim, ver e ouvir pessoas rindo, se divertindo e emocionando enquanto a luz de um projetor ilumina seus rostos ainda é uma das razões mais bonitas de se sentir grato por estar vivo.
Essa é a beleza arrebatadora do cinema que nunca, nada ou ninguém, vai destruir da nossa vida.
Free Guy: Assumindo o Controle (Free Guy – 2021)
Direção: Shawn Levy
Roteiro: Matt Lieberman, Zak Penn
Elenco: Ryan Reynolds, Jodie Comer, Taika Waititi, Joe Keery, Utkarsh Ambudkar, Lil Rel Howary
Gênero: Ação, Comédia, Ficção Científica
Duração: 115 minutos