Reconhecida rotineiramente por sua tradição “sociológica” de cinema, a filmografia nacional tem se aventurado cada vez mais pelo que se convenciona chamar na indústria de “cinema de gênero”, notadamente pela demanda existente nas plataformas de streaming por “conteúdo nacional” renovado dia a dia.
Enquanto o cinema brasileiro de comédia, terror e policial tem ocupado mais esse espaço, “Letícia” (dirigido por Cristiano Vieira, de “A Cisterna”) aventura-se por outro terreno: o do drama de mistério. Na trama, Sophia Abrahão (uma presença sempre luminosa na tela) interpreta Letícia, uma garota intrigante que atravessa o caminho do empresário Gustavo (Bernardo Felinto, mais reconhecido como comediante de teatro), um conquistador incorrigível que se torna obcecado pela natureza fugidia da personagem-título.
Ao longo de menos de uma hora e meia, o enredo tenta transitar entre o romance e o mistério, enquanto equilibra muito mal uma subtrama política que acaba sobrepujada pelo drama central e mal explicada até seu desfecho. O que poderia ser mais um filme comum de gênero (no qual tantas outras cinematografias fornecem produtos novos anualmente ao mercado exibidor e plataformas por assinatura), um passatempo relativamente descompromissado, perde-se numa teia mal-ajambrada de personagens secundários e situações estapafúrdias.
Para ficar em uma delas, ainda no início do filme: Gustavo está obstinadamente à procura de Letícia (da qual ainda não sabe muita coisa) e vê uma garota parecida com ela, de máscara (estamos em 2022), no meio da rua. Ele corre até ela (e até aí, tudo bem). Quando a aborda, a garota (que não é Letícia) simplesmente se volta para ele e, sem dizer palavra, retira a máscara (para mostrar a ele e ao público que não se trata da mulher que ele procurava). O roteiro propõe uma situação que poderia resultar numa cena de conflito (Gustavo poderia arrancar a máscara ele mesmo, perseguir a garota, persuadi-la a exibir o rosto, travar com ela um diálogo provocativo) mas a “resolve” de uma forma absurda, apenas para finalizar uma situação.
Este é apenas um exemplo onde o filme consegue sair pior que a encomenda e queimar o “arroz e feijão” que estava disposto a servir, desperdiçando Sophia (que se esforça o quanto pode mas não consegue salvar o filme sozinha) e a produção que não parece ser das menores (muitas locações diferentes, um elenco relativamente extenso, etc.), oscilando entre o risível (as cenas com a mãe de Gustavo não se saem muito melhores que aquela com a garota mascarada) e a pura banalidade (por que motivo Gustavo arruma um nova aventura amorosa quase no final do filme?).
O roteiro tem tantos problemas que uma trama que deveria ser relativamente simples torna-se confusa. No final, o segredo de polichinelo de Letícia não sustenta força alguma pois a história já se diluiu em passagens precariamente encenadas e conflitos secundários que não têm interesse suficiente para ajudar a sustentar o enredo como um todo (como a hostilidade inexplicável entre Gustavo e seu melhor amigo, dono de um bar, que nasce gratuitamente e morre de inanição dramática). É a última tentativa de tornar o filme “relevante”, quando teria bastado alguma coerência interna dentro do gênero – “façanha” modesta na qual um filme brasileiro semelhante, “Confia em Mim” (2014), dirigido por Michel Tikhomiroff, se sai melhor.
O “ponto positivo” de “Letícia” é lembrar a todos nós como é difícil servir um prato aparentemente simples: um filme despretensioso de gênero, desses que o streaming despeja quase que semanalmente às dezenas e que mantém o mercado cinematográfico aquecido (ainda que, muitas vezes, sem brilho ou novidade). Mera despretensão não garante filme algum e Sophia Abrahão sofre com esse duro aprendizado na tela.
Letícia (Letícia, Brasil – 2023)
Direção: Cristiano Vieira
Roteiro: Cristiano Vieira, César Cavalcante, Ana Portela
Elenco: Sophia Abrahão, Bernardo Felinto, Letícia Tomazella
Gênero: Drama, Romance, Mistério
Duração: 80 min