Desde O Bom Dinossauro, em 2015, que não tínhamos uma história original da Pixar. Como rapidamente o longa original de Peter Song foi enterrado pela crítica e pelo público, as apostas estavam muito altas para que Viva: A Vida é Uma Festa trouxesse de volta o espírito maravilhoso do estúdio que tínhamos visto em Divertida Mente, que já é considerado um dos melhores feitos da Pixar depois de sua compra integral pela Disney.
Uma particularidade da Pixar é sempre lidar com temas difíceis e torná-los universais em uma grande obra de entretenimento para todas as idades. Pela segunda vez, a Pixar decide abordar a morte. A primeira se trata obviamente do maravilhoso Up: Altas Aventuras. Com Viva, a abordagem é muito mais distinta, mas que preserva a doçura do estúdio, mesmo que haja muitos segmentos cheios de dedos da Disney.
O Brilho Quase Original
Viva certamente é um ótimo filme, mas é notório que seu argumento seja calcado no eterno conflito clichê de resolução previsível: protagonista deseja uma coisa, mas é impedido pela ordem rígida familiar. Nós já vimos isso diversas vezes em animações Disney e até mesmo nas da Pixar como Valente e Ratatouille.
No roteiro de Adrian Molina e Matthew Andrich, inspirado no argumento de Lee Unkrich, também diretor do filme, acompanhamos a vida de Miguel, um jovem mexicano que se prepara para as festividades do Dia de Los Muertos, data especial que os vivos lembram e oferecem presentes aos entes queridos que já se foram. Porém, antes da tradição familiar, Miguel deseja ser um verdadeiro músico, assim como seu ídolo Ernesto de la Cruz.
Abandonando a família, que odeia música, no fatídico dia, Miguel vê a oportunidade de brilhar e se revelar para o mundo em um festival de música no centro de sua cidadezinha. Porém, para isso, acaba roubando o lendário violão de Ernesto e, então, acaba amaldiçoado e jogado no colorido Mundo dos Mortos. Perdido em um lugar onde não pertence, Miguel precisa achar um jeito de voltar à vida antes que amanheça e acabe preso com os mortos.
Realmente a sinopse parece mórbida e densa, mas Viva é um filme muito leve e divertido. Como disse, há uma boa mistura entre os estilos da Disney e da Pixar que acabam se equilibrando com alguma boa vontade do espectador em aguentar alguns dos problemas da história do filme.
A começar, Viva é um dos filmes com mais exposição da Pixar até hoje. Para explicar a mitologia do filme, as tradições da cultura mexicana e até mesmo da história da família de Miguel, os roteiristas usam e abusam do recurso narrativo claramente preguiçoso já que os personagens interrompem a história para explicar o filme – mesmo que isso seja inserido de modo orgânico, é cansativo.
A premissa do conflito principal entre Miguel e sua família, que o impede de realizar o sonho, é bastante poderosa e pode conversar bem com boa parcela do público. O tema, mesmo sendo denso, é resolvido sem muitos entraves e dramalhões, apesar dos roteiristas claramente flertarem com as histórias das telenovelas mexicanas nada estranhas ao público brasileiro.
Aliás, praticamente toda a narrativa do longa pode se comportar como uma bela novela mexicana, cheia de reviravoltas (muito previsíveis), papéis invertidos, subversão de expectativas e diálogos cheios de sentimentos contrastantes entre os personagens.
É irônico afirmar que boa parte dos personagens vivos do filme sejam o elo menos carismático do longa. Quem brilha aqui são os familiares mortos de Miguel e o seu guia atrapalhado Héctor, que também guarda uma trágica história em busca de redenção.
O humor do longa claramente é muito mais aproximado do infantil do que outros filmes da Pixar até então. É aqui que o lado Disney entra apostando em piadas de slapstick que brincam com a fisicalidade do esqueleto de Héctor, além da expansão corporal “emborrachada” do vira-lata Dante que acompanha Miguel em sua jornada sobrenatural.
Como boa parte do tempo de filme é concentrada em piadas e no desenvolvimento da amizade de Héctor com Miguel, muito da complexidade dos personagens vem por momentos-chave que exacerbam o poderio visual do filme em uma linguagem bastante simples e eficiente. A aposta na síntese se dá também por conta das canções originais, sempre ótimas, que ocupam boa parte da projeção.
Héctor e Miguel são as principais estrelas do filme e compartilham também da mesma técnica de desenvolvimento de personagem. Ambos começam superficiais, seguindo apenas um objetivo recompensador que pintam um retrato egoísta e imaturo dos dois. Porém, as coisas vão se tornando muito mais complexas conforme Miguel aprende o valor das tradições, da memória, da idolatria e de seus próprios sonhos. Já Héctor aprende enfim o valor da família e do perdão. São temas complexos em um filme de drama difícil, mas sempre bem resolvidos em sua conclusão emocionante.
O maior problema de Viva é mesmo a questão da previsibilidade. Mesmo que o cenário só seja compartilhado com Festa no Céu, outra boa animação, Viva se prende a clichês narrativos desnecessários chegando ao ponto de até mesmo mimetizar fielmente uma solução narrativa já vista em Monstros S.A.. O uso é igual e chama a atenção da Pixar basicamente se autoplagiar.
Outro problema é a tradução nacional do título do longa. Quem não assistir a versão legendada, perderá um detalhe muito bonito e vital para a compreensão do longa como um todo. Isso envolve a bisavó de Miguel, Coco, que aqui foi batizada como Tia Inês. Não é por mero acaso que essa personagem tem o mesmo nome do título do filme.
Uma Festa Mexicana
Lee Unkrich e Adrian Molina se certificam de trazer o retrato mais respeitoso possível ao abordar uma cultura estrangeira. Todo o visual do filme, seja o do mundo real ou dos mortos, é extremamente caprichado e chama a atenção. É fácil ficar impressionado pela riqueza de detalhes nos objetos ornamentados, do figurino sempre adequado, da fabulosa iluminação multicolorida, dos efeitos de física e até mesmo os da translucidez dos fantasmas.
Todos os esqueletos e caveiras possuem características distintas, com cabelo e maquiagem típicos da cultura mexicana. Aliás, até mesmo o espanhol tem um grande espaço em expressões coloquiais em alguns diálogos mais acalorados. Os diretores conseguem capturar bem toda a expressividade latina tanto no uso do corpo quanto da face.
A movimentação de Héctor, levemente estranha, é outro espetáculo por parte dos animadores sempre preocupados em conferir uma personalidade única para o personagem ao valorizar essas brincadeiras com os ossos de seu esqueleto.
Entretanto, enquanto o design de produção brilha com construções diversas para a Cidade dos Mortos, além de criar uma completa burocracia particular daquela realidade e apostar sempre na beleza vibrante de suas cores, os diretores parecem encontrar dificuldade para tornar a movimentação de câmera um pouco mais criativa.
Ela praticamente é escrava da encenação, mimetizando os personagens sempre que possível e quase nunca se afastando demais para revelar um pouco mais daquele mundo mágico. É irônico que um filme tão cheio de personalidade esteja restrito ao uso mais banal da câmera como linguagem. Não é um defeito terrível, mas dentro da animação e na Pixar, onde é possível realizar as proezas mais criativas em um espaço tridimensional, certamente é decepcionante ver a simplicidade do recurso em Viva.
O que os diretores acertam em cheio é, como já comentado, no carisma de sua história. Quando finalmente chega a hora decisiva da emoção e alma do filme, os dois conseguem causar o efeito desejado no espectador. E isso por um motivo muito simples: no uso da excelente trilha musical de Michael Giacchino.
Desde Up que Giacchino não compunha uma trilha tão eficiente e audaz como escutamos em Viva. Principalmente no que tange as canções originais como Remember Me, uma das mais poderosas que vai se transformando e ganhando significados únicos a cada nova evolução de uso que os roteiristas apresentam. Colocar a música no topo da importância da mensagem do Viva é o maior acerto dos realizadores do longa: reconhecer que a alma do filme busca unir música, família e carinho.
Lembre-se de Mim
Viva: A Vida é uma Festa é um ótimo sinal de equilíbrio entre Pixar e Disney, conseguindo aliar a poder das histórias originais da produtora com as requisições de humor infantil do estúdio. Mesmo que sua história seja uma das mais simples, com uma jornada bastante direta e repleta de reviravoltas óbvias, os personagens cheios de personalidade, o visual estupendo e cheio de vida acompanhadas pela fabulosa música de Giacchino, dão a Viva um lugar alto entre as melhores criações do estúdio até agora.
É lindo ver que sempre em horas decisivas, a Pixar consegue nos conquistar de modo tão eficiente quanto o fez em 1995 com Toy Story. Entre homenagens emocionantes aos que já foram e abraços ternos aos que estão conosco, Viva pode ficar sempre tranquilo, pois é impossível não lembrar de um filme tão carinhoso e encantador como esse.
Viva: A Vida é uma Festa (Coco, EUA, 2017)
Direção: Lee Unkrich, Adrian Molina
Roteiro: Lee Unkrich, Adrian Molina, Jason Katz, Matthew Aldrich
Elenco: Anthony Gonzales, Gael García Bernal, Benjamin Bratt, Alanna Ubach, Renee Victor, Jaime Camil, Alfonso Arau
Gênero: Aventura, Animação Infantil
Duração: 110 min
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Achei uma grande pena o título ter sido alterado para o lançamento no Brasil. Se o motivo foi o que o Buzzfeed relatou (que o título ficaria parecido com “cocô”, mesmo que os personagens pronunciem “côco”), a distribuidora brasileira resolveu tratar as plateias brasileiras como crianças bobas que não conseguem se divertir com nada mais que humor de banheiro. Além disso, desvalorizou uma expressão da cultura mexicana (a escolha do apelido “Coco” para a menina Socorro), que foi tão respeitosa e carinhosamente usada pela Pixar, sem contar que esvaziou a importância da própria personagem Coco/Inês no filme.