A atriz Fernanda Torres, que ganhou destaque com seu papel em Ainda Estou Aqui, do diretor Walter Salles, compartilhou em entrevista que a construção de sua personagem, Eunice Paiva, foi um processo longo e intenso, e revelou detalhes do que a levou a dar vida a essa figura tão emblemática. A produção, que aborda a ditadura militar brasileira, conta a história da luta de Eunice pela verdade e justiça, após o desaparecimento de seu marido, Rubens Paiva, um ativista político. Ao interpretar essa mulher resiliente, Fernanda se mergulhou profundamente no papel, chegando a trabalhar por meses com treinamentos de atuação e preparação emocional.
Casting inesperado
No início, a atriz pensou que Walter Salles, com quem já tinha trabalhado anteriormente, a convidaria para colaborar no roteiro do filme, devido à diferença de idade entre ela e a personagem. Porém, o convite foi para o papel de Eunice, que, aos 41 anos no início da trama, seria interpretada por Fernanda, então com 57 anos. “Eu estava velha demais para o papel. Pensei que ele chamaria outra atriz, mas Walter tinha um plano para mim”, explicou Fernanda.
A preparação foi meticulosa. Como contou, ela se dedicou por um mês inteiro, sem apoio de nenhum outro ator, para entender Eunice antes da primeira leitura. “A primeira coisa que fiz foi procurar um coach de atuação, para que, na minha primeira leitura, eu já tivesse algo substancial“, contou. “Foi uma viagem de autoconhecimento, porque a personagem era muito diferente de tudo o que eu já tinha feito.”
“Mais tarde, começamos a trabalhar com outro coach, que ficou no filme durante todo o processo. Ela trabalhou conosco [para criar] um senso de família. Claro, também tínhamos a casa. A casa é um personagem do filme, e aquela casa se tornou nosso lar. Walter filmou tudo cronologicamente, então tudo o que acontece com Eunice, ou com qualquer outra pessoa, estava acontecendo conosco também. O dia em que me despedi de Selton foi o dia em que Selton — meu amigo, que eu amo — estava saindo do filme, e [depois disso] eu teria que ficar sozinha com as crianças e os homens estranhos que tinham vindo para a casa. Na casa, não havia mais luz.”
O processo criativo de Walter Salles também foi essencial para a construção do filme, que foi filmado de forma cronológica, o que permitiu que os atores vivessem os acontecimentos de forma natural. “Aquela casa no filme se tornou nosso lar. Walter filmou tudo de forma cronológica, então tudo que acontecia com a personagem de Eunice também acontecia conosco. Quando me despedi de Selton [Mello], meu amigo, foi quando ele saiu do filme, e depois tive que enfrentar sozinha as dificuldades e os novos desafios”, relembrou a atriz.
Eunice
A pesquisa sobre a história real de Eunice foi outra parte crucial. Fernanda leu o livro de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice, que conta os detalhes do sequestro e da morte de seu pai, um episódio sombrio da história do Brasil. Para a atriz, entender a força de Eunice foi essencial para dar veracidade ao papel. “Eu sabia do que Walter estava falando, e eu me sentia muito próxima do Rio de Janeiro da década de 70, uma época que eu vivi intensamente. E, mais do que tudo, eu sabia que a história de Eunice não era apenas sobre dor, mas também sobre uma resistência silenciosa e uma força única.”
Ela também destacou como a personagem de Eunice foi crucial para o seu desenvolvimento, não só como atriz, mas também como mulher. “Eunice era uma mulher que, mesmo nas adversidades, mantinha uma postura firme. Ela jamais se deixou quebrar. Para mim, o ato de não desmoronar era o maior poder dela”, afirmou. Depois, contou sobre a mensagem do filme: que sorrir é resistência. “Perfeito. E o que é incrível é como ela passou isso para Marcelo, porque essa era a coisa surpreendente sobre ele — ele estava paralisado, mas se recusou a se tornar uma vítima disso. E então, quando você descobre Eunice, descobre que tudo começou com ela. É sobre como enfrentar a tragédia e não entrar em colapso. Não sei se você conhece essa expressão em inglês, mas ela fez isso com a coluna reta. Significa que você não estava quebrada. É isso: se eu não estou quebrada, não significa necessariamente que eu sou durona. É isso sobre Eunice. Ela sempre foi muito feminina. É um conto feminista, mas ela não parece uma heroína feminista.
No cenário de sua carreira, o papel de Eunice Paiva é um marco. Fernanda Torres já construiu uma carreira sólida, com atuações memoráveis em teatro, cinema e televisão, mas este filme a levou a uma reflexão profunda sobre a natureza da dor e da resistência. “Eunice sempre foi uma mulher cheia de contradições. Ela nunca contou a verdade sobre o que aconteceu com Rubens para seus filhos. Era difícil lidar com o que ela estava sentindo. Ela escolheu não passar essa amargura, mas não dizer nada também foi uma forma de crueldade”, contou.
Fernanda Montenegro e Central do Brasil
Ao receber o Globo de Ouro, Fernanda fez questão de dedicar seu prêmio de Melhor Atriz em Filme – Drama à sua mãe, a lenda Fernanda Montenegro, que, aos 95 anos, continua a ser um exemplo de resistência e talento. Para Fernanda Torres, atuar ao lado de sua mãe e em um filme tão importante sobre a história do Brasil, não apenas consolidou sua carreira, mas também a reconectou com as raízes profundas de sua própria identidade.
Ela, então, lembrou sobre Montenegro ter sido surpreendido pela indicação ao Oscar em 1999: “Lembro que ela tinha 70 anos. Lembro dela me dizendo: “Nanda, tenho 70 anos. Fiz tudo o que queria fazer na minha vida, interpretei todos os personagens que queria interpretar e acho que agora é hora de fechar minha porta. Acabou, eu acho.’ Mas então: Oscar! E ela não parou desde então. [Risos.] Todo ano ela diz: ‘No ano que vem, tenho que parar. Não consigo trabalhar do jeito que tenho trabalhado.’ Ela é uma workaholic. Workaholic severa. Ela acabou de adaptar um monólogo sobre Simone de Beauvoir. É uma adaptação muito boa. Ela fez isso em um teatro para 1.000 pessoas e eles projetaram ao mesmo tempo em um parque com 15.000 pessoas. “
O Brasil e a recepção ao filme
Por fim, Torres refletiu sobre o impacto do filme no território nacional: “As pessoas querem conhecer a história. No Brasil, assim como na América, estamos bem divididos entre extremistas de direita e progressistas, e muitas pessoas que eu acho que não são extremistas de direita provavelmente votaram do jeito que votaram porque não queriam [o que a esquerda estava oferecendo]. Mas, direita ou esquerda, as pessoas foram tocadas pelo filme. Por quê? Porque aquela família é adorável e porque eles não mereciam o que aconteceu com eles. Pessoas com todos os tipos de crenças podem concordar que é um filme lindo. Ele criou um orgulho cultural, porque no Brasil às vezes odiamos nossa própria cultura. Não a música, mas o teatro, o cinema. É odiado e é amado. Mas esse filme criou uma onda de amor pelo cinema, eu acho.”
A interpretação de Fernanda Torres em Ainda Estou Aqui não é apenas uma homenagem a Eunice Paiva, mas também uma reflexão sobre a resiliência humana e a luta pela justiça, temas ainda atuais e de grande relevância para a sociedade brasileira.