Se, por um lado, o advento do streaming trouxe alguns problemas, por outro traz algumas vantagens. Por problemas, percebemos uma queda no público dos cinemas, uma maior dificuldade em achar filmes clássicos e antigos. Pelo lado positivo, é possível ver alguns filmes que nunca passariam nos cinemas.
Sempre quando viajo tento fazer algumas outras coisas além dos habituais museus e caminhadas. Procuro ir aos concertos, óperas e ao cinema, quando a questão idioma permite. Na Europa, como há uma preponderância de filmes dublados, é um tanto quanto trabalhoso. Mas em países nórdicos e de língua alemã é fácil achar cinemas com idioma original ou legendados em inglês. Gosto também ver ir às cinematecas e ver filmes locais, aqueles que você nunca encontraria em um cinema brasileiro.
Numa dessas pequenas aventuras fui, na Cidade do México, ver um filme local chamado Volverte a ver (Gustavo Adrian Garzón, 2008). A experiência de ir a um cinema no México é curiosa. Ao mesmo tempo em que é similar à nossa, nos detalhes exibe-se a diferença. O multiplex é igual? Certamente. A pipoca? Idem. Mas quando você vai pegar seus temperos (aqui limitado a sal e um molho de pimenta) é possível encontrar jalapeños. Sim, colocam-se pedaços de pimenta na pipoca. E isso diz muito sobre o cinema: uma arte universal, entretanto com características locais. O filme, e isto é um dos pontos desse texto, é bem pueril. Dois jovens bonitos, ricos e famosos que, por algum motivo, são solteiros e solitários. Ela é locutora de rádio, desses programas românticos que passam na madrugada, linda e sexy. Ele empresário de sucesso. Obviamente, apesar dos percalços, vão se encontrar e amar.
Enquanto assistíamos, por vezes ríamos da ingenuidade do filme, achando que era uma espécie de ironia toda aquela melação, aquele novelão mexicano em forma de filme. Mas as jovens da plateia choravam copiosamente. Algo estava errado. Elas não o faziam, como nós em alguns momentos, pelo ardor da pimenta na língua. Elas choravam pelo filme. Em respeito, procuramos segurar nossos risos.
Isso me trouxe uma questão. Que a novela mexicana era daquele jeito pois o povo assim o era. O mexicano do dia a dia é simples, caloroso, emotivo. Desde o carregador de malas de um hotel que se emocionou com um elogio até o popular, num ponto de ônibus em Los Mochis, uma cidade pequena em Sinaloa, que explicava que, apesar da violência no estado por conta do tráfico, eles eram um povo ordeiro e decente. Nas ruas do México é comum ver lojas de vestidos para festas de debutantes, esse tipo de coisa. E, de certa forma, o povo brasileiro também partilha dessas características, que é um tanto latina. Entretanto, no Brasil, seu audiovisual se nega a representá-lo.
Vejam as novelas. Ao invés dos dramalhões amorosos, o que se vê hoje é uma sucessão de pautas. O traficante legal, a lésbica que engravida, a polícia rancorosa, o ouvinte de música clássica e o cinéfilo aparvalhados, etc. Os sentimentos simples foram deixados de lado pela ideologia. E no cinema é o mesmo. Com uma diferença: as novelas mantém um público (ainda que boa parte seja inercial, como minha mãe, que reclama dessas coisas, mas continua a ligar a tv no horário da novela) enquanto o cinema não. Todos esses filmes de pauta são ridicularizados pela bilheteria. Quando ousa sair do esquemão ideológico, um filme como Dois Filhos de Francisco (Breno Silveira, 2005) tem imensa recepção. Entretanto, como atualmente o cinema brasileiro em nada depende da receita dos ingressos, isso não é uma premissa. O que é não usual na história do cinema brasileiro. Nos anos 1970 e 80, minha mãe me levava para ver um monte de filmes brasileiros populares, em geral baseados em cantores ou músicas. Fuscão Preto (Jeremias Moreira Filho, 1983), O Menino da Porteira e Mágoa de Boiadeiro (Jeremias Moreira Filho, 1977 e 1978), filmes com Waldick Soriano e Roberto Leal, Estrada da Vida (Nélson Pereira dos Santos, 1980), etc, etc. Além das reprises, de tempos em tempos, de Dio, come ti amo (Miguel Iglésias, 1966) e Marcelino Pão e Vinho (Ladislao Vajda, 1955). Eram todos sucessos.
Assim, é óbvio que um filme popular latino acaba tendo que partilhar alguma dessas características. É o que se percebe em outros dois filmes que, salvo estando no país de origem, seria praticamente impossível de assistir sem o streaming. E, nessas “viagens” dentro da rede, acabei deparando com um filme da República Dominicana, país do qual seguramente eu não havia visto um filme sequer, e do qual o máximo que tinha ouvido falar era de alguém que tinha ido a um resort em Punta Cana. Locas y atrapadas (Alfonso Rodríguez, 2014) é, em certo sentido, um filme surpreendente. Trata-se de um grupo de mulheres que ficam presas em um elevador e trocam confidências sobre os homens. Tem tudo o que os filmes populares latino-americanos têm: uma mise em scene meio novelão, a história é contada apenas através do diálogo, há um humor pouco politicamente correto, há um certo tom de exagero, há o homossexual caricato. Entretanto, tudo é feito com finesse, nada é forçado, não há a menor autoindulgência ou vitimismo, a narrativa prende a atenção e flui bem, o homossexual é caricato, mas não há uma ponta de proselitismo. A sensação foi tão positiva que resolvi pesquisar. Primeiro o diretor, e qual não foi minha surpresa ao ver que este possui uma carreira extensa, com mais filme que boa parte dos diretores brasileiros. Ainda intrigado, fui pesquisar sobre o país, o qual eu só sabia que era na mesma ilha que o Haiti e um comentário de alguém que foi a Punta Cana e disse que era impossível sair do hotel pra ir à cidade, pois perigoso. De um Haiti 2 da minha imaginação eu descobri que a renda per capita do país é muito similar à do Brasil. Enfim, o país e esse filme não fica atrás dos nossos. Muito pelo contrário.
É interessante notar também como nesses filmes latino-americanos populares é forte a influência da tv via telenovelas. Os filmes sempre parecem uma novela, seja pelos temas, seja pela decupagem e mise em scène. O excesso de closes, a falta de establishing shots, a opção por resolver dramaticamente através do diálogo e não da linguagem cinematográfica são comuns nesses filmes. Mesmo um filme mexicano que tenta ser mais moderno, menos novelesco, como Un papá pirata (Humberto Hinojosa Ozcariz,2019), como fotografia apurada, uso de música e edição de som “esperta”, decupagem mais cinematográfica (over the shouders, enquadramento mais rebuscado), trata da história de um garoto adotado que busca o pai verdadeiro, algo muito comum em dramas televisivos. Muitas vezes é difícil esconder nosso modo de ser. .
A mesma ênfase no contar a história através do diálogo pode ser vista em Uma ressaca de 9 meses (¿Qué culpa tiene el niño?, Gustavo Loza, 2016). O curioso desse filme é como uma gravidez indesejada é resolvida – o pai, mesmo sendo um jovem sem emprego, insta com a mãe para que a criança nasça. O contraste entre a mãe, que é da elite burocrática e trabalha em escritórios modernos e o pai, um rapaz pobre e sem perspectiva, é resolvida pelo bom senso do último. De certa forma, o México é parecido com o Brasil, com uma elite burocrática que se acha moderna e conspira contra os valores estabelecidos e o povo de classe média, que é apegado aos valores cristãos tradicionais. O que diferencia é que o cinema mexicano ainda se preocupa em questionar/problematizar esse estado das coisas, enquanto nossa cinematografia recente não, conforme dito acima.
. Por fim, interessei-me por um filme aleatório do streaming, De Roma com Amor (Colpo di Fulmeni, Roberto Malenotti, 2010). Gosto de Roma, achei que era um filme argentino e resolvi assistir. Descobri que era sim um filme italiano feito para tv. Lembra o primeiro filme que mencionei nesse artigo, Volverte a ver, mas com uma pitada de Cinderela. Tem a moça bonita, mas neste caso ela é pobre. E tem o ator galã, que é uma espécie de príncipe que renega as origens. O filme não é bom, mas confirma o que estou dizendo aqui. Os filmes populares latinos são ingênuos, românticos, chorosos. Alguns chamam de piegas, mas não gosto desse termo, pois acho que estabelece uma visão errada. O de que se emocionar com uma obra artística é coisa de gente atrasada. O velho mote de que uma obra deve passar “valor”, não sentimento. Oras, durante boa parte da história da arte essas coisas não eram excludentes, vide a obra de Dickens, Dostoiévský, Tolstóy, a ópera italiana, Shakespeare e tantos outros. E esse filme, apesar de sua fraqueza intrínseca, serve para mostrar que dramalhões não são exclusividade de povos primitivos e atrasados do terceiro mundo, mas sim uma característica muito forte dos povos latinos. A Itália não é um país atrasado, os italianos não são imbecis, assim como boa parte do povo do Brasil e do México não o é.
Quando Nixon falou, corretamente, sobre a maioria silenciosa, ele percebeu que o que move o mundo não é o que sai nos jornais, da boca da mídia, dos “intelectuais”, dos “youtubers”. As pessoas comuns não precisam ficar provando que o que elas gostam é bom, nem esperam que isso seja reconhecido por uma falsa elite intelectual. Elas creem nos seus sentimentos, nas suas intenções, de buscar aquilo que as representa no fundo do seu ser. E é por isso que cada vez mais os filmes que ganham festivais e os que ganham público estão apartados. Enquanto os primeiros tem por finalidade uma agenda, os outros tentam se conectar com o público. Volverte a ver e Locas y atrapadas podem não ser grandes filmes, mas são muito mais ricos culturalmente que um filme como Roma (Alfonso Cuarón, 2018). De Roma, eu quero um filme com Amor, não com alguém recolhendo o resto das fezes dos anos sessenta.
Adriano S. Barbuto é diretor de fotografia, professor de cinematografia e gosta de ir ao cinema, ler, ouvir música e assistir óperas. E fazer longas caminhadas.


