Fundação é uma série de livros do Isaac Asimov cuja publicação foi iniciada na década de 1950, com o primeiro livro sendo lançado em 1951. O primeiro livro de Duna teve sua primeira publicação em 1965. Ambas as obras são grandes marcos da ficção científica e estão em evidência na cultura pop atualmente, com Fundação tendo uma série na Amazon escrita e produzida pelo David Goyer e Duna tendo uma série de filmes dirigida por Denis Villeneuve, além de uma série spin off na HBO.
As duas séries possuem similaridades interessantes que valem a pena ser discutidas. Não vou dizer aqui que uma série necessariamente “copiou” outra, elas possuem também diferenças suficientes para escapar dessa afirmação. Porém, o que acredito que ocorreu entre as duas era uma troca de ideias entre os autores. Tanto o Frank Herbert quanto o Asimov mantinham contato com outros escritores, até mesmo frequentando as casas um do outro. Para demonstrar isso, vou colocar um trecho da biografia Dreamer of Dune a seguir:
“Vários escritores de ficção científica famosos e que em breve se tornariam famosos visitaram nossas casas em São Francisco, incluindo Robert Heinlein, Poul Anderson, Jack Vance e Isaac Asimov.” (Dreamer of Dune).
Portanto aqui eu farei uma análise que evite colocar um autor acima do outro, afinal, gosto muito de ambos os autores e respeito as ideias deles. Outra observação a se fazer é que estou levando em conta principalmente os livros da série e não as suas adaptações. Portanto vamos agora dar uma olhada nesses dois pedigrees da ficção científica.
Impérios
O que popularmente se diz sobre Fundação é que o livro traria a primeira história que concerne a um império no espaço. Alguns chegam a dizer que seria a primeira space opera, porém fica complicado dizer isso, pois já existiam histórias sobre viagens a outros planetas de autores como HG Welles e Edgar Rice Burroughs. Porém, Fundação se destaca por colocar uma história de sci-fi se passando em escopo intergaláctico onde predomina exclusivamente a presença humana.
Asimov nos coloca cinquenta mil anos no futuro e imagina um cenário em que a humanidade conseguiu expandir-se para além do planeta terra, com um império vasto que se estende por toda a galáxia. A história se inicia com o matemático Hari Seldon apresentando os resultados catastróficos que aguardam o império em um futuro não tão distante que ele descobre através de uma nova ciência que ele cria, a psico-história.
Duna também apresenta um império vasto que se expandiu para além da via láctea. Em Duna temos uma organização da sociedade em um modelo que lembra o feudal. Existem vários senhores que possuem o domínio de planetas, os chamados feudos siridares. Estes senhores estão subordinados ao imperador. Além disso existe a Guilda Espacial que representa o poder econômico, possuindo o monopólio dos transportes espaciais. Essa organização social é caracterizada no primeiro livro como um tripé e diz ainda que esse modelo seria instável.
A civilização em Duna, apesar de avançada, se limita tecnologicamente, pois dez mil anos antes do ponto em que começa a história (que se inicia vinte mil anos depois da era contemporânea), a humanidade entrou em conflito com as máquinas pensantes, vulgo a Inteligência Artificial. Após isso se instalou uma grande repulsa contra essas máquinas a ponto de elas serem consideradas demoníacas pelas religiões dominantes do império. Daí surgem as Bene Gesserits, cujas reverendas madre possuem o acesso a memória genética, mentats que podem fazer cálculos como se fossem computadores e navegadores, que possuem o poder da presciência, utilizado na navegação.
Essa superação da IA e desenvolvimento do cérebro humano para que a humanidade não ficasse mais dependente dela no universo de Duna foi possível através da especiaria mélange, substância mais importante de todo o universo, encontrada apenas no planeta desértico Arrakis. Fundação também possui uma história conectada às Inteligências Artificiais, mais especificamente, o robô, figura que ficou icônica através dos escritos de Asimov, que inclusive cunhou o termo “robótica”. Porém, a forma que cada um aborda a questão é bem diferente. Logo chegamos lá, agora que cada universo foi estabelecido, eu gostaria de falar sobre estrutura narrativa e sobre alguns personagens de ambas as séries.
Vastos em espaço, também em tempo
A narrativa da trilogia original de Fundação abrange centenas de anos. No primeiro livro, cada capítulo conta uma história diferente. Iniciando-se com Gaal Dornick encontrando-se com Hari Seldon, que juntos fundam a Fundação no planeta Terminus. E no segundo capítulo, acompanhamos o prefeito Salvor Hardin décadas depois do ocorrido do primeiro capítulo onde tanto Seldon e Dornick jazem mortos.
Analisando apenas o primeiro livro de Duna, não existe uma lacuna de tempo tão grande dentro da narrativa deste, contendo apenas uma pequena passagem de dois anos entre a parte II, “Muad’Dib” e parte III, “O Profeta”. Porém, se levarmos em conta toda a série Duna e apenas a série Fundação de Asimov em consideração (sem contar com a série Robôs), Duna contém lacunas de tempo maiores entre um livro e outro. Cinco milênios separam os eventos do primeiro livro da série escrito pelo Frank Herbert e do último, “As Herdeiras de Duna”.
Duna também faz um comentário histórico e político ao longo de suas obras, porém eu acredito que a principal diferença entre as duas séries é que Duna se inclina mais para os elementos místicos e religiosos de sua obra. O que podemos notar é que ao longo destes livros, Herbert nos mostra como eventos do passado se tornam lenda para o futuro e tece comentários sobre como o passado molda o presente, e como as pessoas do presente veem o passado e dá ênfase em como o passado deveria servir de lição para as pessoas que hoje vivem. Comentarei um pouco mais sobre como isso ocorre na próxima sessão.
Heróis e vilões, Governos e Desgovernos
Asimov baseou sua história na ideia de que impérios sempre tem uma ascensão e um declínio, inclusive a obra que mais o inspirou falava sobre o império romano, como a nota e edição brasileira publicada pela editora Aleph diz:
“Um dos pontos notáveis é o fato de ter sido inspirada no clássico A História do Declínio e Queda do Império Romano, do historiador inglês Edward Gibbon. Não é portanto uma história de Glória e Exaltação, mas sim a epópeia de uma civilização que havia posto tudo a perder.” (Fundação, nota a edição brasileira)
Geralmente impérios justificam sua existência baseando-se em uma ideologia que denota a superioridade de um povo sobre outro, como o Destino manifesto dos americanos e as ideias de eugenia e superioridade racial dos alemães nazistas. Existem menções nos livros que nos fazem lembrar de tais fatos na própria forma que o império justifica sua permanência.
Portanto o elemento humano do livro abrange uma dimensão histórica, com diversos paralelos sendo feitos ao longo das páginas de Fundação. Geralmente quando um império cai, a humanidade passa por um momento difícil até que seja restabelecida a ordem, vulgo o que a dissolução do império romano promoveu na Europa, começando a era medieval. Hari Seldon, com sua psico-história sabe que é impossível evitar que isso venha a acontecer, portanto seu objetivo na verdade seriam minimizar os danos, fazer com que essa era de calamidade intergaláctica ao invés de durar milhares de anos, dure apenas algumas centenas.
O livro resume a psico-história da seguinte maneira: […] ramo da matemática que trata das reações dos conglomerados humanos a estímulos sociais e econômicos fixos […]”. Ou seja, psico-história pode prever fatos que envolvem o coletivo, mas quando se trata do indivíduo, os cálculos passam a ficar menos precisos. Seldon conseguiu prever esses momentos em que a história ficaria mais nebulosa e os chamou de “crises”. Na maior crise enfrentada pela Fundação, surge O Mulo.
O Mulo para mim está entre os vilões mais interessantes de toda a ficção científica. Estudando história, observamos que em momentos em que uma população passa por provações severas em relação a situação econômica e social de seu país, muitas vezes surge a figura de um salvador, um líder que estaria para além de questionamentos para boa parte da população e que libertaria o povo do que quer que estivesse passando e restauraria seu orgulho como nação. Hitler foi um desses personagens e o Mulo tem uma característica forte de tirania na Fundação que foi inspirada nessas figuras.
Em resumo, o Mulo é um mutante que desenvolveu um poder mental especial, ele pode influenciar a emoção das pessoas e ele potencializa seu poder através da música, sendo ele também uma espécie de trovador no livro. Ora, líderes como Hitler, Mussolini, Napoleão, Mao Tsé-Tung e grandes figuras políticas da história recente e da antiguidade que receberam as alcunhas de ditador e tirano não eram apenas cruéis ou maldosos como alguns superficialmente os resumem, mas também ótimos oradores e inteligentíssimos, sabendo fazer discursos que toquem o emocional mais íntimo da população, utilizando o discurso que Aristóteles chamaria de páthos, proferido para causar uma resposta emocional. O Mulo é literalmente isso.
E é agora que retornamos a Duna, pois aqui temos uma reviravolta interessante, o “herói” da história, Paul Atreides é basicamente, o Mulo de seu universo. Coloque o termo que o designa entre aspas em respeito a intenção do Frank Herbert com o personagem, que o criou no intuito de que ele fosse questionado. Para ilustrar isso, demonstro uma frase do próprio primeiro livro de Duna:
“Não poderia acontecer um desastre mais terrível para sua gente do que cair nas mãos de um Herói.” (Duna)
E ainda, na biografia do Frank Herbert, Dreamer of Dune, escrita por seu filho, Brian Herbert
Heróis são perigosos, especialmente quando as pessoas os seguem cegamente, tratando-os como deuses. (Dreamer of Dune)
Esse pensamento que coloco aqui não é exatamente original, Tim O’Reilly havia expressado isso em sua tese sobre o Frank Herbert, mas pensemos nisso por um momento. Paul Atreides dentro do universo de Duna é um Kwisatz Haderach, um super humano projetado pelas Bene Gesserits, cuja aparição se deu graças a um programa de procriação de mais de dez mil anos.
Explicando de forma resumida, ele seria o suprassumo do desenvolvimento humano desde que as máquinas pensantes foram abolidas na época do Jihad Butleriano. Teria a memória genética das Bene Gesserits, a capacidade análitica dos mentats e a presciência dos navegadores, porém em um nível jamais alcançado antes por qualquer ser humano. Ele seria capaz de “conectar o passado ao futuro” e teria acesso a história da humanidade e também de seus possíveis futuros e seria aquele que “aponta o caminho” (significado de Kwisatz Haderach). Segundo a premissa das Bene Gesserits, ele saberia o melhor curso que a humanidade deveria tomar.
As Bene Gesserits são missionárias e implantam mitos e lendas dentro de religiões locais para conseguir refúgio em planetas distantes e hostis e isso também contribui para que pessoas reconheçam seu Kwisatz Haderach. Quando Paul e sua mãe, Jessica, estavam perdidos no planeta Arrakis, os fremen acolheram Paul acreditando que ele poderia ser o “Lisan al-Gaib”, que eles acreditavam que libertaria seu povo e transformaria o planeta desértico em um paraíso.
No início, Paul decide usar os fremen para chegar em seu principal objetivo no momento, vingar-se dos Harkonnen e do imperador que haviam assassinado seu pai e seus amigos, porém ao longo da história ele vai se afeiçoando aos Fremen e sua cultura a ponto de se sentir culpado por usá-los e ver seus amigos se tornarem adoradores.
Veja que Paul também suscitou grande apelo emocional nas massas assim como o mulo o fez, apesar dos métodos serem diferentes. O Mulo afeta diretamente o emocional das pessoas com suas habilidades mutantes. Já o Paul se apropria de uma lenda pré-existente, que ele sabia muito bem que foi fabricada com segundas intenções.
Agora a comparação em si, O Mulo simplesmente aparece em Fundação, como algo que não foi previsto por Seldon, sendo a maior ameaça para os planos da Fundação. Enquanto o leitor ficava confortável com a psico-história tendo a solução de tudo até Quele ponto, o surgimento Mulo quebra isso, aumentando a intensidade dramática da história de forma repentina. Lembro que esse elemento foi uma das principais coisas que mais me fizeram gostar de Fundação na primeira leitura.
De forma parecida, as Bene Gesserit não planejavam que Paul fosse o Kwisatz Haderach (apesar de haver suspeitas que foram negligenciadas, Herbert dedica uma seção do apêndice para falar disso) e sim que ele nasceria uma geração depois. O surgimento desses personagens em seus respectivos universos desestabiliza tudo, entre planos, governos e instituições.
A principal diferença está na motivação dos dois. Sendo o antagonista da história, não penetramos na mente do Mulo diretamente, ele parece querer conquistar apenas por conquistar. Mas existe uma motivação psicológica apresentada de forma sutil. Ele é extremamente solitário, não tem uma boa aparência e não consegue fazer amigos ou ter relacionamentos naturalmente, ficando totalmente dependente de seus poderes para tal. Ele então cria uma compulsão de sempre conquistar mais, até chegar ao nível planetário e depois galáctico.
Já o Paul Atreides não tinha essa compulsão, essa é a tragédia desse personagem. Ele nunca quis conquistar o império e guiar os fremen em uma cruzada fanática, as circunstâncias o levaram a isso e ele via o futuro com horror. Depois de despertar completamente sua consciência de Kwisatz Haderach, ele ficou sabendo de seu “propósito terrível” O que o fez permanecer foi que ele talvez poderia minimizar os danos do que foi iniciado em Arrakis, como é aludido algumas vezes nos livros.
Paul torna-se um prisioneiro do seu próprio destino, apesar de poder ver o futuro, ele não gosta dos resultados dos caminhos e sabe que não pode fazer muita coisa para impedi-los. Existem coisas que ele conseguiu impedir, como a própria morte e alguns futuros que ele vê no livro que nunca chegam a acontecer, porém existem alguns pontos que por mais que ele se esforce, não pode mudar, como o próprio jihad.
Completando a comparação, ambos são obras do acaso que desestabilizam a ordem vigente em seus universos. Os dois utilizam a emoção das pessoas para criar um fervor em relação a suas figuras. O mulo exacerba as emoções das figuras diretamente, já o Paul utiliza o elemento religioso, apresentando-se como uma espécie de Messias para os fremen.
Religião e política são duas das coisas que mais suscitam animosidade entre as pessoas e Herbert tenta demonstrar a linha tênue que existe entre eles ao longo dos livros. Ele sempre menciona políticos como Kennedy e Nixon em entrevistas e em Messias de Duna, Paul se compara a Hitler e Genghis Khan, sinalizando o que ele queria que tirássemos como mensagem da história. Heróis como o Paul podem ser tão perigosos quanto essas figuras e como um vilão como o Mulo.
Máquinas e Robôs: A Inteligência Artificial
Fundação não iniciou-se conectado diretamente a série Robôs. Isso ocorreu na década de 1980 quando Asimov estava escrevendo novos livros tanto na série Robôs quanto Fundação e decidiu conectá-las, fazendo uma espécie de retcon no processo. De certa forma isso deixou ambas as séries mais ricas.
No que concerne Fundação, a série se passa milhares de anos da série Robôs, onde a humanidade se expandiu tanto para além das estrelas, que a existência da Terra, planeta natal da humanidade, nem mesmo é lembrada. No passado, como ocorre na série Robôs houve um conflito entre os robôs que fez com que sua existência se tornasse uma mera lenda. Isso decorreu após a lei zero ser criada. Vamos relembrar aqui as leis da robótica.
“Primeira. Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano seja ferido.
“Segunda. Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas pelos seres humanos, exceto quando tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.
“Terceira. Um robô deve proteger sua própria existência, desde que isto não entre em conflito com a Primeira e a Segunda Leis.
Essas leis regem o comportamento dos robôs e o Asimov explora brechas nessas leis ou a própria ausência delas em alguns casos para mostrar que mesmo com um controle rígido os robôs podem dar problema e causar desastres que movem suas histórias na série Robôs. Porém, Asimov nunca é tão pessimista em relação a Inteligência artificial como o Herbert é na série Duna. Isso pode ser demonstrado na seguinte fala dele no prefácio de Robôs da Alvorada:
“Em 19 de abril de 1952, Gold e eu estávamos falando sobre um novo romance que deveria ser publicado na Galaxy. Ele sugeriu que fosse um romance de robôs. Meneei a cabeça de maneira veemente. Meus robôs tinham aparecido apenas em contos e eu não tinha certeza de que poderia escrever um romance inteiro baseado neles.
– É claro que consegue – Gold sugeriu. – Que tal um mundo superpovoado no qual os robôs estão tomando os empregos dos humanos?
– Depressivo demais – respondi. – Não tenho certeza se quero trabalhar com uma história de tema sociológico difícil.” (Prefácio de Robôs da Alvorada)
Essa filosofia continuou pelo resto de sua carreira, as histórias nunca se tornavam depressivas demais por mais que os robôs dessem problemas, ainda existia uma esperança de que eles fossem úteis à humanidade. É daí que decorre a lei zero que suplanta todas as outras, eis no que ela consiste:
“Um robô não pode ferir a humanidade nem deixar, por inação, que a humanidade venha a ser ferida.”
Em Origens da Fundação, Asimov revela que foi um robô (um personagem da série Robôs, só não vou revelar quem para não dar spoiler a quem for ler os livros) que auxiliou Seldon a aprimorar a psico-história e criar a Fundação, enquanto obedecia os regimentos dessa lei. O robô sabia que para o bem da Humanidade, Seldon teria que ser bem-sucedido em sua tarefa. Portanto, o grande plano de diminuição dos danos sofridos após a queda do Império teve uma contribuição substancial de uma máquina.
Voltando para Duna, a situação em relação às máquinas é completamente diferente, enquanto o Asimov tentava escapar de “temas sociológicos difíceis”, Herbert chafurda neles. O trauma do conflito envolvendo máquinas, o Jihad Butleriano foi tamanho que deixou sequelas na humanidade, mas ao mesmo tempo foi o evento propulsor para seu desenvolvimento. Porém, na maioria do tempo (existem exceções em alguns pontos da série), as máquinas são vistas como destruidoras da humanidade e não auxiliadoras e muito menos salvadoras como em Fundação.
Em Duna, a questão é ainda mais séria porque a luta do Kwisatz Haderach (como é enfatizado principalmente nas sequências) é salvar a humanidade não de um período ruim que poderia se alongar na história, mas da sua completa extinção. Às vezes se fala de um grande mal vindo para abater a humanidade caso ela não estiver sendo preparada, mas em suma, eles querem salvar a humanidade dela própria, afinal, tanto máquinas quanto seres prescientes que venham a ser ameaças não surgem do nada neste universo, mas são resultados da ação humana.
Assim, Paul e depois o Imperador Deus, se consideram não exatamente salvadores da humanidade, mas antes de tudo, seus professores (mu’addib em árabe quer dizer literalmente professor e é daí que Herbert adaptou o nome Muad’Dib). Por mais que seja um super humano, aqui quem aponta o melhor caminho para a humanidade seguir, ainda assim, é humano. Porém, esse melhor caminho ainda assim é sujeito a falhas, pois o próprio Imperador Deus sugere que ele é humano, no entanto, ele ainda é a melhor chance que a humanidade tem, como é dito aqui:
Zombar de você? Por meu nome, Stilgar, eu jamais zombaria de você. Eu lhe fiz um presente inestimável. Ordeno que o leve sempre perto do coração, como recordação de que todos os humanos podem errar e de que todos os líderes são humanos.
Uma risadinha leve escapou de Stilgar.
– Que naib você teria dado!
– Que naib eu sou! Eu sou o naib de todos os naibs! Jamais se esqueça disso! (Filhos de Duna)
Porém, a questão não é tão simples quanto parece. Ao longo dos livros, Herbert tece vários paralelos entre as máquinas e os Kwisatz Haderach, porque primeiro, ambos são seres programados que saíram do controle de seus programadores e ambos ameaçam a humanidade em igual medida, onde nenhuma salvaguarda foi capaz de contê-los. Por isso, o principal plano deles é garantir que um ser presciente capaz de aprisionar toda a humanidade em sua visão não surja nunca mais.
A série de Fundação e mais paralelos
O que me incentivou a escrever esse texto foi que, ao assistir a adaptação do David Goyer de Fundação produzida para a Apple TV, não pide deixar de notar que ele insiste em acrescentar ainda mais elementos que são mais característicos a Duna do que Fundação. São escolhas que achei curiosas visto que as duas séries já eram bem comparadas mesmo quando ainda estavam confinadas às páginas da literatura de sci-fi.
A primeira adição que chama atenção é a escolha de Gaal Dornick para ser protagonista da série. Nos livros ele aparece apenas no primeiro capítulo, mas aqui, a personagem (trocam o gênero na série) é a protagonista presente em todas as crises. Além disso, ela é presciente na série, lembra um certo personagem de algum outro lugar, não?
Outras semelhanças incluem os navegadores que são necessários para viagens interestelares. Os livros de Fundação não menciona isso, porém em Duna já sabemos que eles existem. Além disso, há na série uma ênfase em genética que nos livros não existe. Mas onde vemos bastante isso? Adivinhou, em Duna.
Nas sequências de Duna, somos apresentados aos Bene Tleilax que são especializados em modificação genética (os livros nunca usam a palavra “engenharia”, apesar de ser isso que eles fazem). Eles criam gholas, que são basicamente clones. Já na adaptação de Fundação somos apresentados à “dinastia genética” do imperador Cleon, que é composta por um triunvirato de clones de si mesmo em fases diferentes da vida.
O termo “dinastia genética” nunca é proferida em nenhuma das séries de livros de ficção científica, porém é algo que não seria estranho no universo de Duna, visto a importância que os livros dão à genética. Os Kwisatz Haderach, por exemplo, são o que são por causa de seus genes moldados por milhares de anos no programa de procriação das Bene Gesserit.
Conclusão
Fundação é interessante por ser a primeira história a ousar expandir o que temos de organização imperial para uma galáxia inteira. Asimov cria um conceito muito interessante com a psico-história e a utiliza para criar situações e conflitos envolventes que nos prendem nas páginas dos livros. Em geral, eu acho Asimov positivo, pois apesar de existir sempre um perigo iminente, sempre há uma saída, as crises são sempre contornáveis e a maior consequência seria um longo período de trevas. Não dá para dizer o mesmo de Duna.
Minha interpretação pessoal de Duna é que se trata de uma distopia com pretensões utópicas. Já era uma espécie de distopia por mostrar uma desigualdade brutal no primeiro livro, onde os Harkonnen caçam os fremen por esporte e o imperador faz o que quer, até mesmo erradicando casas inteiras que o desagradam (o que acontece aos Atreides). Porém, é uma distopia também de forma mais profunda.
Distopia se conceitua como uma sociedade imaginária caracterizada por condições de vida opressivas, frequentemente totalitárias, onde a liberdade e a felicidade são suprimidas. Logo após o primeiro livro de Duna, o império se torna exatamente isso nas mãos dos Atreides. A humanidade se torna prisioneira da visão dos Kwisatz Haderach, de fato Paul torna Arrakis um paraíso, mas a liberdade em si não existe quando todos estão presos em sua visão. Os fremen espalham guerra e intolerância religiosa por toda parte e o mundo se torna um lugar mais sombrio. Como o próprio Paul diz em Messias de Duna: “Eu trouxe as trevas”.
E porque eu disse que essa distopia se propõe a ser uma utopia? Porque descobrimos nas sequências (mais especificamente Filhos de Duna e Imperador-Deus de Duna) que o plano final do Kwisatz Haderach nada mais é do que educar a humanidade para que ela nunca mais siga cegamente mais ninguém. Seja um líder carismático humano presciente ou caia novamente na armadilha de “entregar a razão às máquinas”.
Ora, só essa pretensão já configura uma ideia utópica, extremamente idealista. O que constatamos no estudo da história é que problemas sociais e conflitos escalantes decorrentes deles ou de outras razões surgem sempre, por mais que tenhamos exemplos que nos ensinam o que não fazer. Paul e o Imperador Deus querem ensinar uma lição que fique “gravada nos ossos” da humanidade.
Como eles ensinam essa lição? Sendo eles próprios exemplos negativos para toda a humanidade. Eles pretendem libertar o povo a longo prazo através da opressão. Segundo eles, a humanidade passou muito tempo acomodada na estrutura que se formou após o Jihad Butleriano e isso teria que mudar ou as consequências seriam catastróficas. Eles usam a expressão “tronco chave”, pois através da tirania, eles impeliriam tal mudança. A meu ver, é uma ideia extremamente fantasiosa e a realização disso por si só já seria utópica. Porém não digo isso de forma a criticar negativamente o Herbert, pois é justamente essa ideia ousada, que eu raramente vejo algum autor tendo coragem de trabalhar, pois isso é justamente o que o Asimov chamaria de “tema sociológico difícil.”
Porém, ao contrário do Asimov, Herbert é bem mais pessimista. Apesar de alguns livros terminarem com uma nota de esperança para o futuro, o que vem adiante fica sempre cada vez pior. No quinto e sexto livros, Hereges e Herdeiras, todo o universo passa por dificuldades nunca enfrentadas antes e a humanidade parece que pode mesmo ficar à beira da extinção, apesar de todos os esforços do Kwisatz Haderach.
Esses assuntos podem ser melhor discutidos em outra oportunidade, mas aqui deixo meu veredito final sobre essa questão. Apesar de toda a semelhança entre as séries, no pior cenário de Fundação, a humanidade ainda existe para contar a história. Já em Duna, a ameaça seria a extinção, portanto creio que a principal diferença entre as duas esteja no tom em que abordam as histórias. Eu acredito também que nos dois últimos livros de Duna as semelhanças com Fundação se aprofundam ainda mais e os leitores provavelmente reclamariam do excesso de spoilers, então essa é uma discussão que fica para outra oportunidade.