Hitchcock como diretor dentro do set
Pelo que se depreende, Hitchcock era o contrário de uma prima donna. No filme de Sacha Gervasi há uma piada que poucos perceberam. Alguém pergunta a Janet Leigh como era trabalhar com Hitch, e ela diz que é fácil, principalmente depois de ter trabalhado com Orson Welles. Se Orson era mesmo o chato que transparece pelo diálogo não consegui descobrir, mas Hitchcock era muito diferente do diretor de cinema usual. Não gritava, não excedia as horas de filmagem, não ficava controlando o trabalho de todos, aceitava sugestões, chegava antes do horário estipulado para o início da filmagem. E, por vezes, era capaz de gestos realmente grandiosos, como quando no último dia de filmagem de Janela Indiscreta, e que era o aniversário da atriz que fazia a bailarina (Miss Torso), prepara uma festa surpresa para ela dentro do set ao final da filmagem, em um bolo em forma de torso[1]. Apesar de simpático, Hitchcock era uma pessoa reservada, sempre fazendo com que as pessoas mantivessem uma distância da sua intimidade.
As histórias são muitas, mas vou me ater àquelas relacionadas à direção de fotografia, que é minha área. Como exposto acima, o diretor teve problemas com sua equipe de TV. E não foi diferente com seu diretor de fotografia de Psicose, John Russell. Não problemas sérios, mas problemas típicos de filmagem. E não tiram o mérito de Russell, que foi nominado ao Oscar pelo filme. Russell, por sua experiência na TV, era rápido, o que explica o fato de ter trabalhado em outro filme rápido e financiado pelo próprio diretor, Park Row (Samuel Fuller, 1952), rodado em apenas 14 dias[2]. Mas nem sempre suas soluções eram aquelas que satisfaziam Hitchcock. Numa diária, Hitchcock desconfiou que um refletor estivesse aparecendo em quadro. Pediu ao continuísta para conferir na câmera, já que ele mesmo quase nunca olhava por ela. O continuísta confirmou. Hitchcock se dirige a Russell e pergunta se o refletor aparecia. O fotógrafo garante que não. A cena é filmada. No outro dia, ao assistir ao copião, o continuísta vê o refletor. Vê-se obrigado a relatar a Hitchcock. Este chama Russell, e o continuísta fica constrangido, pois era amigo do diretor de fotografia. Hitchcock diz a Russell que acabou de ver o copião e que o refletor estava lá. O continuísta admira Hitchcock, pois não o delatou, e chamou a responsabilidade para si[3].
Um problema similar ocorreu quando da filmagem da cena onde Vera Miles descobre a mãe. Hitchcock queria que a primeira, ao se assustar, batesse a mão em uma lâmpada. Hitchcock queria que esta, ao se movimentar, produzisse flares (o efeito que o raio de luz gera ao atravessar as objetivas, provocando por vezes um “espalhamento” de luz na imagem). Rodaram a cena e Hitchcock perguntou a Russell se o feito estava lá. O diretor de fotografia disse que sim. Ao checar o copião, Hitchcock viu que não era verdade. Foi ao assistente de direção, Hilton Green, e disse que ele, Green, não havia conseguido registrar os flares e que tinham que filmar novamente. Green estava bem ao lado de Russell, e foi uma maneira gentil do diretor chamar a atenção de seu diretor de fotografia[4].
Muitos atores reclamavam que Hitchcock não lhes dava atenção, mas a verdade é que o método do diretor era um pouco diferente do habitual. Hitchcock se preocupava com a câmera, sendo o ator mais um elemento dentro da linguagem visual. Não estava interessado nas emoções prévias do ator, na composição da personagem, em toda esta questão que o Actor´s Studio trouxe. Quando Kim Novak, uma das que reclamavam, pergunta sobre suas motivações no filme, ele responde que eles não deveriam ir muito fundo naquilo, pois “era apenas um filme”[5]. Para ele, o importante era o olhar neutro, pois acreditava que a emoção estava no modo como ia concatenar as imagens. E não podemos dizer que seu método não funcionasse, pois Tippi Hedren, escolhida por Hitchcock a partir de um comercial[6], tem uma bela atuação em seu primeiro filme, Os Pássaros, ganhando um Globo de Ouro como estreante. O lado bom era que permitia ao ator aplicar suas próprias ideias, respondendo em geral um “Tente isto!” às sugestões deles.
Hitchcock, tendo exercido várias funções em sua carreira, entendia muito da técnica. É por isso que raramente olhava pela câmera, pois tinha boa ideia do que estava enquadrando. Os problemas técnicos o desafiavam. Ao sugerir ao fotógrafo Ted Tetzlaff uma solução de luz, ouviu como resposta: “Ah, então o papai se interessa pela técnica?”[7]. Sim, se interessava, e cria um estratagema mecânico para a cena onde a personagem em Psicose[8] se perde na estrada, ou quando soluciona com maquete o custoso plano da vertigem nas escadas em Um corpo que cai. Ou, ainda, quando filma, em Psicose, o gesto ralentado do torso com câmera a menos quadros por segundo, a fim de que o movimento na tela ficasse na velocidade normal, permitindo à atriz que não mostrasse os seios, o que fatalmente ocorreria em um movimento brusco do corpo na cena do chuveiro[9].
Psicose foi praticamente todo filmado com uma lente 50 mm, provavelmente para efeitos realísticos, visto que é a lente que mais se aproxima da perspectiva do olho humano. O diretor de arte do filme disse que Hitchcock desenhava em um bloquinho o que queria, e o quadro ficava muito similar ao desenho com a lente apropriada[10].
Obviamente há muitos que detratam Hitchcock, principalmente na sua relação com Tippi Hedren, explorada pelo livro The dark side of a genius: the life of Alfred Hitchcock, de Donald Spoto. Mas não é possível auferir, de nenhum relato, caso de histerias e estrelismo perpetrados por ele dentro do set, algo em geral comum entre diretores. Hitchcock, afinal, era um Sir.
[1] CHANDLER, Charlotte. Op. cit. p. 218.
[2] IMDB. Trivia for Park Row. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2013.
[3] REBELLO, Stephen. Op. cit. p. 101 e 102
[4] In The making of ‘Psycho’ (Laurent Bouzereau, 1997).
[5] CHANDLER, Charlotte. Op. cit. p. 242.
[6] SPOTO, Donald. The dark side of genius: the life of Alfred Hitchcock. Nova Iorque: Da Capo Press, 1999. p. 449.
[7] TRUFFAUt, François. Op. cit. p. 171
[8] REBELLO, Stephen. Op. cit. p 110.
[9] GOTTLIEB, Sidney (Ed.). Hitchcock por Hitchcock: coletânea de textos e entrevistas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1998. p. 318.
[10] REBELLO, Stephen. Op. cit. p. 111
Adriano S. Barbuto é diretor de fotografia, professor de cinematografia e gosta de ir ao cinema, ler, ouvir música e assistir óperas. E fazer longas caminhadas.

