Às vésperas da abertura do 78º Festival de Cinema de Cannes, uma carta aberta assinada por mais de 100 jornalistas internacionais lança luz sobre um problema crescente no circuito dos grandes festivais: o bloqueio sistemático ao acesso a entrevistas com talentos. O protesto, endereçado à direção do festival e a líderes de outros eventos de peso como Veneza, Londres e San Sebastián, denuncia a substituição do jornalismo crítico por interações rápidas e promocionais, que, segundo os signatários, esvaziam o papel da imprensa especializada.
A iniciativa ecoa uma ação semelhante ocorrida em Veneza no ano passado, onde repórteres protestaram contra a escassez de oportunidades para realizar entrevistas significativas com artistas e realizadores. Para muitos desses profissionais — especialmente freelancers — esse acesso não é um luxo, mas uma necessidade: é com as entrevistas exclusivas que eles financiam a viagem, hospedagem e produção de conteúdo de qualidade.
“Esperamos estar errados, mas tudo indica que Cannes seguirá o mesmo caminho”, afirma Marco Consoli, jornalista italiano e um dos autores do manifesto.
Superestrelas, pouca conversa
A edição de 2025 de Cannes promete ser uma das mais estreladas dos últimos tempos, com a presença de nomes como Tom Cruise, Scarlett Johansson, Tom Hanks, Emma Stone, Joaquin Phoenix e Benedict Cumberbatch. No entanto, pouco se sabe sobre o tempo que essas celebridades dedicarão à imprensa, além das tradicionais coletivas de imprensa dos filmes em competição. Até o momento, por exemplo, Missão: Impossível 8 — exibido fora da competição — não terá compromissos formais com a mídia, restringindo-se a sessões de fotos com Cruise e o diretor Christopher McQuarrie.
Para os jornalistas, essa tendência preocupa. As agendas controladas por assessores de imprensa, com entrevistas de apenas 10 minutos para múltiplos profissionais simultaneamente, inviabilizam qualquer aprofundamento.
“Estamos tratando a entrevista como uma espécie de loteria. Não dá mais para trabalhar assim”, afirma Consoli.
O fim do jornalismo cinematográfico?
A carta aberta alerta que, sem espaço para reflexão, o jornalismo cultural está sendo substituído por conteúdos instantâneos e manipuláveis, muitas vezes gerados por inteligência artificial. Segundo os jornalistas, as entrevistas reais são uma das últimas barreiras contra a desinformação e a erosão do discurso crítico.
Além disso, os autores apontam que a visibilidade dos próprios filmes e festivais também sai prejudicada: “Sem jornalismo, tudo se reduz a marketing e frases feitas. O cinema precisa de diálogo, precisa de pensamento.”
Um apelo aos líderes do cinema
A declaração pede um posicionamento claro de nomes como Thierry Frémaux (Cannes), Iris Knobloch (presidente do festival), Alberto Barbera (Veneza), Tricia Tuttle (Londres) e José Luis Rebordinos (San Sebastián). Eles são convocados a reafirmar publicamente o papel central da imprensa cultural na vida dos festivais.
A carta também se dirige a estúdios, artistas e agentes, pedindo que restabeleçam o diálogo com os jornalistas, em nome de um ecossistema cinematográfico mais saudável e democrático. “Todos nós amamos o cinema”, conclui o texto. “E todos nós temos interesse em vê-lo prosperar.”