Existem poucas franquias de colecionar monstros com o potencial narrativo e mecânico de Digimon. Com um lore que sempre tendeu para o lado mais maduro do gênero e um sistema de evolução que é um sonho para os amantes de RPG, a expectativa para Digimon Story: Time Stranger era alta.
A promessa era de um JRPG à altura dos grandes — um “Shin Megami Tensei” menos denso com a escala de um Ni No Kuni. O resultado, no entanto, é um jogo que tem um sistema central viciante, mas que passa a maior parte do tempo tropeçando nas próprias amarras, sendo um produto de ambição sufocada por decisões de design conservadoras e nítida falta de orçamento.
O novo título da Bandai Namco entrega um mundo que flerta com o épico, com uma apresentação gráfica e um escopo que é um passo acima de qualquer outro jogo da IP. A sequência de abertura, que mostra um incidente Digimon afetando drasticamente o mundo real, é imponente e estabelece o tom sombrio, além de oferecer senso de urgência e propósito para a missão do jogador.
Essa escala cinematográfica e o desejo de contar uma história mais séria, voltada para o público que cresceu com a franquia, são notáveis. Contudo, essa ambição é rapidamente soterrada, dando lugar a uma sensação de que a narrativa e o gameplay nunca se alinham.
Time Stranger é um jogo com um coração fantástico, mas que insiste em se punir com um ritmo lento, linear e uma série de decisões de design frustrantes que limitam a liberdade do jogador em quase todas as curvas. O contraste entre a profundidade tática da criação de Digimon e a simplicidade das batalhas e dos mapas se torna um dilema constante, obrigando o jogador a se perguntar: por que o jogo me dá ferramentas tão complexas se a maior parte do desafio exige apenas o básico?
Ainda que a história se esforce para ser madura, com temas sobre guerras entre Digimon e anomalias temporais, o design de níveis é precário e muito ultrapassado, lembrando os jogos de Naruto da era do PS2 com a estrutura linear e repetitiva de suas dungeons e mundo.
O jogo atinge o seu auge quando te permite interagir com a mecânica central, mas essas oportunidades são escassas e mal distribuídas, transformando o que deveria ser uma grande aventura em um exercício de paciência.
A viciante ciência da evolução
É inegável: o sistema de colecionar e evoluir Digimon é o maior triunfo de Time Stranger, o motor viciante que nos faz perdoar a maioria dos tropeços do jogo. Com mais de 450 ‘mon’ para colecionar, a liberdade de customização é um sonho de RPG que recompensa a persistência, especialmente em um gênero que, muitas vezes, limita o jogador a linhas de evolução estáticas.
O método de recrutamento é um golpe de mestre e resolve um problema crônico de grinding em RPGs. Ao derrotar um Digimon em um encontro aleatório, você coleta uma porcentagem dos dados dele. Alcançar 100% permite que você o adicione à sua party via Digivice. Já com 200%, você pode recrutá-lo em uma versão ainda melhor e mais forte.
Essa simples loop de grinding com recompensa imediata é viciante e mantém o jogador motivado a explorar cada canto do mapa para “analisar” o máximo de criaturas possível, tornando cada encontro um passo tangível em direção a um novo parceiro.
O sistema de Digivolução eleva a complexidade a outro nível. Cada Digimon tem uma árvore evolutiva ramificada em múltiplas direções, baseada nos stats atuais da criatura, e o processo de de-evolução é essencial para resetar os stats e desbloquear caminhos ainda mais poderosos. Isso incentiva o jogador a experimentar, treinar e planejar as evoluções constantemente para maximizar o potencial do seu exército, transformando o ato de “evoluir” em uma ciência fascinante. A sensação de progredir de pequenos slimes para criaturas no ápice da evolução é um dos maiores prazeres do jogo.
As Attachment Skills, habilidades que seu Digimon aprende ao subir de nível e que podem ser removidas e equipadas em outros parceiros, é o recurso que encoraja o grinding ao seu limite. Você é motivado a caçar as evolution lines mais obscuras, não apenas para completar o seu Digivice, mas para encontrar os ataques mais raros e poderosos para o seu time principal.
Esse sistema de skill inheritance é uma carta de amor aos JRPGs mais profundos e dá um valor tremendo a cada Digimon que você encontra. É o tipo de profundidade que faz Time Stranger brilhar, mesmo que o jogo em si nunca o recompense por explorar essa genialidade a fundo.
Batalhas lentas, estratégia subutilizada
O combate, no papel, é o que se espera de um JRPG. Times de três Digimon, mais um convidado, se enfrentam em um sistema simples de turnos que gira em torno do clássico pedra-papel-tesoura (Data, Virus, Vaccine) e de fraquezas elementais, com profundidade adicionada por buffs temporários e status effects.
A chave é montar uma party que cubra todas as bases de ataque e resistência, pensando na distribuição de stats (mágicos vs. físicos) para quebrar as defesas inimigas. No total, você dispõe de seis digimon para lutar ao seu lado.
No entanto, o principal problema do combate é a dificuldade inexistente. Time Stranger é um jogo incrivelmente fácil, projetado claramente para ser o primeiro RPG de alguém. Se o jogador for minimamente atento às fraquezas elementais e se lembrar de Digivolver, ele supera a vasta maioria dos encontros, que se tornam uma sucessão de lutas de um só golpe onde o desafio desaparece.
Essa facilidade faz com que o combate se torne repetitivo e tedioso, uma sucessão de “aperte o botão de ataque duas vezes” sem necessidade de estratégia. O jogo oferece o recurso de Autobattle com modo x5 de velocidade, uma benção que serve apenas para mascarar a simplicidade e a lentidão das batalhas. Enquanto isso permite mastigar o grinding sem desligar completamente o cérebro, é um reconhecimento da própria desenvolvedora de que o combate não é divertido o suficiente para ser jogado em tempo real – é de fato, é um sistema que envelhece rápido.
Para agravar essa repetitividade, as animações de batalha são lentas e metodológicas por padrão, consumindo vários segundos para um único ataque. É um atraso desnecessário que mina a imersão e torna difícil jogar Time Stranger em sessões longas. Porém, é inegável que a maior parte do orçamento do jogo ficou para os animadores capricharem em diversos golpes únicos ou especiais que enchem os olhos.
O mundo desconexo
Apesar da escala épica que a narrativa tenta vender, o design do mundo é um dos maiores obstáculos do jogo. O enredo, que envolve viagens no tempo e o colapso entre o mundo real e o Digimundo, infelizmente nos prende por horas de “trabalho de detetive” em uma Tóquio sem vida e inexpressiva. É uma versão “Temu” dos cenários vibrantes de Persona ou Like a Dragon, com NPCs anônimos e corredores que te forçam a seguir em linha reta com poucas atividades importantes para realizar.
Essa lentidão do início é exasperante. Antes de você sequer chegar ao Digital World, a história te submete a cerca de dez horas de missões sem inspiração, com side quests mal apresentadas que sempre se resumem a fetch quests em um esgoto que você revisita excessivamente.. As interrupções constantes de cutscenes e comunicações via Digivice (que poderiam ser simples logs) dramaticamente freiam o gameplay, matando o ritmo antes que ele possa engatar. A falta de voz para o protagonista jogável é outro ponto que diminui o engajamento na história – o que é muito bizarro já que a contraparte do protagonista possui todas as linhas de diálogo gravadas.
Felizmente, a aventura encontra o seu pé quando finalmente chegamos ao Digimundo. Aqui, o mundo é maravilhosamente bem realizado, com arquitetura excêntrica e biomas mais interessantes, entregando a representação mais convincente da casa dos Digimon até hoje.
Contudo, a liberdade que a gente espera nunca chega: os mapas são apenas corredores estreitos e lineares. O jogo implora por uma área de grinding randomizada, como o Mementos de Persona 5, mas te força a dar voltas tediosas para resetar os inimigos para fortalecer seu time.
O Digi-Ride, a habilidade de montar seus Digimon, é o exemplo mais claro desse design limitado. Na teoria, é um detalhe adorável, que reforça o laço com seus monstros. Na prática, ele é puramente cosmético, pois você não ganha impulso de velocidade nem desbloqueia novas áreas. É um recurso que promete utilidade e exploração, mas que só te permite andar nos corredores com uma skin diferente.
Potencial desperdiçado por vários motivos
Digimon Story: Time Stranger deveria ser o melhor RPG que a série já produziu. Seu sistema de evolução e coleta de monstros torna a rejogabilidade alta, a história tem potencial para satisfazer a nostalgia adulta e a ambição na apresentação é evidente.
No entanto, o jogo se sabota constantemente ao que ele faz de melhor: a liberdade de grinding e party-building. A estrutura linear e as decisões de design que não respeitam o tempo do jogador — desde as longas introduções até as batalhas lentas e o level design em corredor — impedem que os sistemas brilhantes respirem.
Se você é um fã fervoroso de Digimon e está desesperado por uma nova história com seus monstros favoritos, a viciante ciência da evolução e a apresentação adulta do lore farão com que o jogo seja agradável. Mas para o fã de JRPG que busca um desafio e um design de mundo que valorize a exploração, Time Stranger será um tiro no pé frustrante que nunca consegue sair da mediocridade técnica e do design datado. É aquilo, se superar as dez horas iniciais, com certeza verá uma boa recompensa nas horas restantes.
Agradecemos à Bandai Namco pela cópia gentilmente cedida para a realização desta análise.
Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema. Jornalista, assessor de imprensa.
Apaixonado por histórias que transformam. Todo mundo tem a sua própria história e acredito que todas valem a pena conhecer.
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