Nos últimos anos, a Square Enix vem trazendo alguns clássicos seus em uma nova roupagem, entre remakes e remasters. Porém existem pelo menos duas maneiras de fazer isso. Os remakes de Final Fantasy VII, por exemplo, se diferem de diversas maneiras do jogo original, tanto em gameplay como na história. Essas mudanças tem como objetivo apresentar esse jogo para toda uma nova geração de jogadores, porém, no processo é possível que alguns fãs mais antigos sejam afastados desapontados com as diferenças.

Ano passado, eles trouxeram também uma solução alternativa a esse problema, com o excelente Dragon Quest III HD-2D Remake. Nessa nova versão, o jogo ainda tem o mesmo estilo de arte pixelada, de gameplay e história do original da década de 1980, porém com gráficos aprimorados e belíssimos. Dessa forma, vários fãs antigos podem retornar para apreciar de uma nova forma seus títulos favoritos de outrora e novos jogadores podem ser apresentados ao antigo estilo de JRPG que já foi um dos gêneros dominantes do mercado.

Começar fazendo remake do III foi uma boa escolha da Square, sendo que o jogo é um prelúdio, um ótimo ponto para começar a série. Depois a Square trouxe Final Fantasy Tactics preservando também muito do jogo original, seguindo os passos do III HD-2D Remake. Agora a Square traz os dois primeiros jogos da série em um belíssimo remake. Agora podemos analisar como essa nova empreitada da desenvolvedora se saiu. 

O Renascimento da Jornada Clássica

Dragon Quest I & II HD-2D Remake faz algo que parecia improvável: transforma dois dos JRPGs mais fundamentais da história num pacote que honra a velha escola sem deixar de lado as exigências do jogador moderno. Ao focar aqui exclusivamente na jogabilidade, o que mais impressiona é o equilíbrio que o remake encontra entre preservação e reinvenção, uma operação de restauro que, ao mesmo tempo em que limpa a poeira das mecânicas originais, mantém as cicatrizes que fizeram esses jogos memoráveis.

 Para quem cresceu enfrentando encontros aleatórios, menus cheios de opções e mapas que pareciam infinitos, a sensação é estranhamente familiar e ao mesmo tempo renovada: os combates continuam sendo o coração da experiência, mas o corpo do jogo, como exploração, progressão, e ritmo foram cuidadosamente reescritos para não punir o jogador pela idade do design.

Visualmente, a interface entre o HD-2D e a jogabilidade é mais do que estética: é funcional. Os cenários reapresentados em camadas, com luz volumétrica, partículas e efeitos de pós-processamento, não só evocam nostalgia ao manterem os sprites 2D clássicos, como também melhoram a leitura do campo de batalha. Em vez de um mero filtro nostálgico, o novo visual facilita identificar rotas, portas secretas e pontos de interesse, algo essencial num jogo onde explorar ruínas e masmorras é rotina. 

A câmera e o enquadramento, quando bem usados, ajudam a preparar emboscadas e a entender a geografia de um calabouço sem precisar recorrer a tentativas por tentativas e errar: isso reduz a fricção, sem transformar a exploração em passeio guiado. Em suma, a “beleza” aqui tem função prática,  destacando o que importa para o jogador que quer tanto reviver memórias quanto avançar sem tédio.

No plano do combate, o remake faz escolhas conservadoras e inteligentes. Os encontros mantêm a estrutura por turnos que definiu Dragon Quest: comandos por menu, magias com função clara, uso de itens e posicionamento narrativo (quem ataca primeiro, quem cura, quem usa habilidades de área). A nostalgia está intacta nas decisões táticas simples, que sempre valorizaram planejamento mais do que reflexo, como escolher quando usar uma magia ou economizar poções continua sendo um dilema significativo. 

Mas o remake incorpora melhorias modernas que mudam a sensação do jogo sem adulterar sua alma: modos de combate acelerado, que permitem que as batalhas se desenrolem em ritmo mais ágil, agilizam a progressão sem tirar o sentido das escolhas. Para quem tem tempo limitado, ativar um “fast combat” é um alívio; para quem busca a experiência clássica, basta jogar no modo normal. Essa flexibilidade é talvez a mudança mais sensata: respeita gostos diferentes sem impor uma “versão correta”.

A inclusão da viagem rápida (chamada nesse jogo de “zoom”) é outra adição que transforma profundamente o ritmo de jogo. Em títulos antigos, como os originais, longos trechos de caminhada entre cidades, templos e masmorras eram parte do design, e para alguns parte da frustração. O fast travel aqui não elimina a sensação de mundo, porque o remake preserva a necessidade de explorar certas rotas e enfrentar encontros estratégicos; porém, remove o custo absurdo de atravessar trilhas repetidas vezes apenas por causa de fetch quests. O efeito prático é que o jogador passa a concentrar tempo onde há de fato decisão relevante: combates, resolução de baús secretos, escolha de equipamentos e momentos narrativos. Em vez de polir a relíquia até ela ficar irreconhecível, o remake afia a parte que importa.

As mudanças de qualidade de vida se estendem ao combate: atalhos de inventário, prompts de ação mais claros, possibilidade de acelerar ou pular animações de habilidade, e sistemas que reduzem o tempo perdido em micro-gestão trivial. Essas melhorias diminuem os pontos de atrito sem transformar o jogo num “clicker”. A sensação predominante é a de que a equipe entendeu o que dava certo no design original: A clareza das funções e a simplicidade estratégica. Trabalhando para manter esses elementos puros, ao mesmo tempo tornando sua execução menos penosa. No campo do balanceamento, notas preliminares indicam um cuidado em evitar as curvas exasperantes onde apareciam monstros de nível absurdo e progressão travada, com ajustes que tornam a curva mais gentil, especialmente nas primeiras horas. Isso favorece novos jogadores sem tirar a satisfação dos veteranos que sabem aproveitar cada ponto de experiência.

Outra consequência positiva da modernização é a forma como o remake aborda encontros e diversidade de inimigos. Onde antes havia batalhas com um único inimigo (no caso do primeiro jogo), agora há lutas com múltiplas formações e padrões que exigem leitura mais atenta. Isso enriquece o repertório tático: habilidades de área passam a ter função estratégica real, formação da equipe importa mais, e o uso de status alters ganha relevância tática. Em vários momentos percebe-se um esforço de transplante de mecânicas do II para o I, criando uma linha de coerência entre os dois jogos do pacote. Ainda assim, as lutas mantêm a simplicidade que as tornou icônicas.  Sempre há uma solução elegante baseada em conhecimento de habilidades e prioridade de uso.

O remake também redescobre o valor do tempo entre batalhas. Com fast travel e combate acelerado, as interações com NPCs, pequenas side quests e o ato de equipar personagens recuperam um espaço de significado. Antigos trechos tediosos de “andança por um mapa” viram momentos para planejar, escolher habilidades, trocar equipamentos, refinar táticas para chefes. Nesse sentido, o jogo parece ideal para uma jogabilidade em sessões curtas e produtivas, sem perder a sensação de progressão contínua. A inclusão de configurações de dificuldade e de atalhos para jogadores casuais é outro ponto a favor: é claro que a intenção foi abrir a experiência a públicos diversos, evitando o dilema cruel “ou jogue na dificuldade clássica, ou não jogue”.

É justo também mencionar elementos que podem incomodar puristas. Sempre haverá quem sinta que recursos como fast travel e combate acelerado dessacralizam a “prova de resistência” que os jogos antigos representavam. Há um debate legítimo sobre o quanto modernizar um clássico preserva sua identidade; no caso deste remake, minha leitura é que a balança pende para o lado da preservação: as decisões centrais permanecem, os dilemas de gestão de recursos também, e as melhorias apenas afetam a fricção ao redor dessas decisões. Se há perda, ela é de frustração repetitiva, não de desafio significativo.

No fim das contas, o que torna a jogabilidade do Dragon Quest I & II HD-2D Remake tão bem-sucedida é a clareza de propósito. Não se trata apenas de “embelezar” gráficos antigos; trata-se de atualizar a experiência para que os jogadores de 2025 possam vivê-la sem que a idade do design vire obstáculo. Música, estética e atmosfera ajudam, mas é o cuidado com o ritmo, o combate e as pequenas gentilezas de interface que transformam essas versões em algo que qualquer fã, seja novo ou antigo, reconhecerão como legítimo. 

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Lendas Recontadas

Aqui, o trabalho da Square Enix é uma prova de como é possível preservar a simplicidade narrativa original e ainda assim torná-la relevante e emotiva para o público contemporâneo. A força dos dois primeiros Dragon Quest nunca esteve em roteiros complexos ou em diálogos extensos, mas sim na capacidade de transmitir aventura, heroísmo e senso de jornada com poucos elementos. O remake compreende isso e opta por não expandir radicalmente o enredo, mas sim aprofundar a atmosfera que o cerca, investindo em ritmo, dublagem e direção artística para revigorar histórias já conhecidas, que, em suas versões originais, eram quase arquetípicas.Em termos narrativos, o remake não reescreve a base mítica de Dragon Quest I e II. 

No primeiro, acompanhamos o descendente do lendário herói Erdrick em sua jornada para derrotar o terrível Dragonlord e restaurar a paz no reino de Alefgard. É uma narrativa deliberadamente simples, quase uma parábola do nascimento do herói, construída sobre o esqueleto mais clássico da fantasia: o jovem solitário, o rei que implora por salvação, o mundo fragmentado e a escuridão crescente.

 No segundo, séculos depois, acompanhamos os descendentes do herói original, agora governantes de reinos diferentes, enfrentando a ameaça do Alto Sacerdote Hargon, que deseja destruir o mundo e recriá-lo sob o caos. São histórias conectadas por um fio quase mítico: A linhagem, a repetição cíclica do mal e a inevitável ascensão do herói.

O que o remake faz é dar carne a esses ossos antigos. Onde antes havia apenas texto em janelas e o silêncio das limitações técnicas, agora há interpretação, entonação e textura emocional. As dublagens em japonês e inglês são, sem dúvida, um dos pontos altos desta nova versão. Elas não apenas dão vida aos personagens, mas também ajudam o jogador moderno a sentir o peso simbólico das palavras. Reis, sacerdotes, vilões e aldeões ganham nuances que antes eram apenas sugeridas. 

No caso de Dragon Quest II, especialmente, onde há múltiplos protagonistas e uma trama mais ampla, as vozes reforçam as diferenças de temperamento entre os herdeiros de Erdrick — algo que ajuda o jogador a se conectar com figuras que antes eram, essencialmente, avatares mudos.

Há um mérito notável na direção de voz: os diálogos mantêm a ingenuidade típica da série sem soar caricatos. A dublagem japonesa tende a acentuar a solenidade e a tradição épica, enquanto a inglesa privilegia o charme e a acessibilidade. Ambas funcionam bem, e o resultado é que o jogo agora tem alma sonora. Essa decisão faz toda a diferença, sobretudo porque as cenas continuam curtas e o texto, econômico — a expressividade das vozes sustenta aquilo que o roteiro, por natureza, não se alonga em explicar.

Mas se por um lado a Square Enix deu um passo importante ao adicionar dublagens, por outro ela cometeu um deslize difícil de ignorar: a ausência de localização em português. Para uma franquia que há décadas ajuda a moldar o gênero de RPG no mundo inteiro, essa decisão soa como um descuido com o público latino-americano, que hoje representa uma fatia expressiva do mercado global de jogos. O contraste é ainda mais evidente porque Dragon Quest XI S,  título mais recente entre os numerados da franquia, recebeu legendas em português, o que torna a omissão no remake ainda mais frustrante. É uma falha que limita o alcance emocional da obra, especialmente porque a narrativa desses jogos, embora simples, se apoia muito na atmosfera de conto e nas nuances do texto. Para novos jogadores brasileiros, essa barreira linguística enfraquece a experiência.

Apesar disso, é inegável que o HD-2D ajuda a transformar cada trecho da história em algo mais cinematográfico, mesmo sem recorrer a cutscenes tradicionais. A alternância de foco, o uso da iluminação e o enquadramento dos personagens criam uma espécie de teatralidade visual. Quando o herói entra no trono de Alefgard ou quando Hargon profere seu sermão de destruição, a cena tem peso, que vem da arte. Cada ambiente agora participa da narrativa: o calor das tochas nos castelos, o brilho frio das masmorras e o entardecer dourado nas vilas evocam emoções que o texto original não podia expressar.

Essa reinterpretação visual serve à própria natureza da história de Dragon Quest. Desde o início, o criador Yuji Horii queria fazer um jogo que transmitisse a sensação de estar dentro de uma lenda — não uma narrativa hiper-realista, mas um mito contável. O remake respeita esse espírito, mantendo a simplicidade dos diálogos e reforçando a sensação de fábula com a estética 2D. Há algo quase ritualístico na progressão: falar com o rei, receber a missão, explorar o mundo, reunir aliados, enfrentar o mal. É uma estrutura que se repete, mas a repetição não é falha, ela é rito, tradição, eco. O remake entende isso e transforma o retorno a esses velhos eventos em uma experiência quase litúrgica para fãs de longa data.

Do ponto de vista de ritmo, a narrativa também se beneficia das melhorias de jogabilidade comentadas anteriormente. O fast travel e o combate acelerado tornam o andamento da história mais fluido. Antes, o impacto narrativo de certos eventos, como descobrir uma nova cidade ou encontrar uma relíquia lendária, era diluído por horas de deslocamento. Agora, a fluidez entre momentos-chave mantém o envolvimento do jogador. A história se move com mais naturalidade, e isso realça o valor simbólico de cada etapa da jornada: a sensação de progresso deixa de ser puramente mecânica e volta a ser emocional.

O mesmo vale para as relações entre os personagens em Dragon Quest II, que finalmente encontram espaço para respirar. No original, as interações entre os três descendentes de Erdrick eram limitadas a fragmentos de texto; agora, com dublagem e animações expressivas, há um senso de camaradagem genuíno. As pequenas falas durante os combates, as reações ao explorar ruínas e os diálogos curtos em acampamentos criam laços perceptíveis. Essa mudança eleva a narrativa, transformando o grupo de aventureiros em personagens críveis, não apenas funções de gameplay.

Outro ponto que merece destaque é o uso da música orquestrada, que amplifica o tom emocional das cenas. A trilha sonora de Koichi Sugiyama sempre foi uma âncora identitária da série, e aqui ela soa mais rica e dinâmica. Cada tema antigo, agora orquestrado, acompanha a narrativa magistralmente, mesmo os temas mais simples, como o da vila inicial, carregam uma nostalgia quase pungente. A fusão entre música e dublagem cria uma camada emocional que substitui a ausência de narrativa cinematográfica tradicional.

Ainda assim, é importante reconhecer os limites. O remake não tenta reinventar a história nem acrescentar novos arcos ou reviravoltas. Para alguns jogadores, isso pode soar conservador demais. Num mercado saturado de remakes que reescrevem o cânone, Dragon Quest I & II HD-2D aposta no minimalismo. É uma escolha artística coerente, o jogo não quer competir com Final Fantasy VII Rebirth ou Persona 3 Reload; ele quer reafirmar a identidade de uma era. Contudo, essa fidelidade pode parecer modesta demais para quem esperava uma reinvenção completa.

No fundo, a narrativa desses remakes serve a um propósito quase pedagógico: lembrar de onde veio o RPG japonês, e por que ele continua relevante. A simplicidade não é limitação, mas estilo. Cada reino, cada personagem e cada ato seguem arquétipos reconhecíveis, o herói, o sábio, o vilão, a princesa, mas é justamente na pureza desses papéis que reside a força de Dragon Quest. O remake não os moderniza à força, apenas os apresenta com clareza e beleza renovada.

O resultado final é um tributo à narrativa clássica dos videogames. Apesar da falta de localização em português, uma falha que, de fato, corta parte do impacto para muitos jogadores, o jogo consegue reacender o encanto das histórias simples e universais, que falam de coragem, sacrifício e legado. Com suas dublagens de qualidade, ambientação impecável e sensibilidade visual, Dragon Quest I & II HD-2D Remake devolve humanidade e emoção a textos que, décadas atrás, só existiam em linhas estáticas.

Em resumo, o remake não apenas conta as mesmas histórias; ele as faz ressoar de novo, como canções antigas em novos instrumentos. É uma celebração da inocência narrativa que fundou o gênero e, mesmo com pequenas falhas de acessibilidade linguística, é impossível negar o cuidado e o respeito que permeiam cada cena. É, em essência, o mesmo conto que começou tudo, só que agora contado em voz alta, para que uma nova geração possa ouvi-lo, não apenas lê-lo.

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Conclusão

O remake honra a razão pela qual Dragon Quest sambou por décadas no panteão dos JRPGs: sistemas simples, combate com alma, e um mundo onde cada passo para frente é ganho com escolhas, não com reflexos.

Se o objetivo era criar uma ponte entre gerações, o remake atinge seu objetivo. Ele não desmancha o original em nome de modernidade tampouco se prende à rigidez do passado; em vez disso, reescreve a experiência de maneira onde nostalgia e progresso não se anulam, mas se reforçam. 

Para quem busca reviver as raízes do RPG japonês com conforto contemporâneo, sem perder o sabor das batalhas por menu e do suor que dava cada nível ganho, este remake entrega exatamente isso: um velho clássico com nova roupa, mesmo coração e menos dor de cabeça.

Agradecemos à Square Enix pela cópia gentilmente cedida para a realização desta análise.

Daniel Tanan

Uma Enciclopédia viva de Duna e outros assuntos nerds variados do cinema à animes.

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