Hell is Us é o novo jogo da Rogue Factor, desenvolvedora responsável por Mordheim: City of the Damned. O jogo é liderado por Jacques-Belletete, que foi responsável pelos excelentes Deus Ex: Human Revolution e sua sequência, Deus Ex: Mankind Divided.
O jogo possui elementos que lembram os soulslike, muito em voga atualmente, porém também vem com uma proposta ousada. Hell is Us tem uma proposta mais “minimalista”, não traz mapas ou minimapas, o jogador precisa se guiar através de pistas encontradas em diálogos, documentos e no cenário. Aqui analisamos como o jogo se sai na sua abordagem.
Encontre seu caminho em meio ao inferno
Hell Is Us é um jogo que desafia convenções modernas de design ao apostar em uma jogabilidade centrada na exploração orgânica e no combate tenso, sem recorrer às “muletas” mais comuns de jogos de mundo aberto, como minimapas, ou marcadores constantes na tela. Ele é, em essência, um título que pede ao jogador atenção, paciência e disposição para interpretar o ambiente, transformando a própria paisagem em guia, e não apenas em pano de fundo. Essa decisão, embora arriscada, é a base de sua identidade e define quase todos os aspectos da experiência de gameplay.
O primeiro ponto que chama atenção é a exploração. Diferente de grandes franquias que entopem a tela de indicadores, Hell Is Us exige que o jogador observe marcos geográficos, sons, luzes e até mesmo detalhes arquitetônicos para se orientar. Esse elemento pode ser comparado a jogos de sobrevivência ou a aventuras minimalistas como Shadow of the Colossus, onde o mundo comunica mais do que o próprio HUD.
A ausência mapa digital força uma imersão genuína: perder-se é parte da experiência, e o caminho errado pode render tanto frustração quanto descobertas inesperadas. Essa aposta funciona bem para quem aprecia exploração contemplativa, mas pode ser uma barreira para jogadores acostumados à praticidade dos fast travels e das missões sempre marcadas. Tudo que o jogador tem para se guiar é uma bússola e com ela e a pista certa, o jogador pode encontrar seu caminho. Apesar da ausência da marcação, as pistas definem bem o destino, como por exemplo, “siga a nordeste para encontrar a capela”.
O combate é o segundo pilar da jogabilidade, e talvez o mais divisivo. Hell Is Us utiliza um sistema de combate corpo a corpo baseado em armas tradicionais, como espadas, lanças e machados. Cada arma tem peso, cadência e alcance próprios, exigindo que o jogador aprenda não apenas os golpes, mas também os tempos de recuperação e as janelas de ataque. A inspiração em mecânicas “soulslike” é clara, mas com uma identidade menos voltada para combos complexos e mais para a leitura da situação.
Os inimigos, em especial as criaturas conhecidas como Hollow Walkers, funcionam como verdadeiros testes de paciência: não basta atacar de forma agressiva, é preciso estudar seus padrões, aproveitar aberturas e recuar quando necessário. O drone que acompanha o protagonista cumpre um papel de suporte e também auxilia em alguns ataques. A combinação certa de combos com seu auxílio pode fazer danos devastadores aos inimigos.
Apesar disso, a repetição pode se tornar um problema. O leque de inimigos, embora criativamente concebido em termos visuais e simbólicos, não apresenta a variedade necessária para manter o frescor durante toda a campanha. Muitos confrontos acabam se parecendo mais do que deveriam, e a evolução no arsenal nem sempre é suficiente para dar a sensação de progressão. Ainda assim, o peso do combate, a fisicalidade dos golpes e o risco constante de falhar conferem ao jogo um senso de intensidade que compensa parte dessa limitação. Além disso, a mecânica de parry e as variadas animações de finishes que decorrem do ataque após atordoar os inimigos são sempre satisfatórias de assistir.
Outro aspecto interessante é a integração de puzzles ambientais. Diferente de quebra-cabeças isolados ou excessivamente artificiais, Hell Is Us aposta em enigmas que se misturam ao cenário: símbolos ocultos em ruínas, diários que sugerem soluções e até mesmo a forma como certos objetos são posicionados no espaço. Resolver esses desafios não é apenas uma questão de avançar na história, mas também de compreender a lógica interna do mundo. O jogo recompensa a observação e a curiosidade, criando uma sensação de descoberta que se alinha com sua proposta de exploração sem guias.
A ausência de sistemas de navegação tradicionais se reflete também na forma como missões e objetivos são apresentados. O jogo raramente diz “vá até o ponto X”; em vez disso, ele oferece pistas narrativas e visuais que levam o jogador a montar o quebra-cabeça por conta própria. Isso significa que muitas vezes o progresso depende da interpretação: seguir a trilha de fumaça no horizonte, perceber a luz de uma tocha em meio à escuridão ou notar a mudança na vegetação podem ser as únicas indicações de que você está no caminho certo. Esse design reforça a sensação de estar realmente perdido em um mundo devastado, mas pode soar hermético para quem prefere direções claras.
No campo da mobilidade, o protagonista conta com movimentos básicos de corrida, esquiva e escalada limitada. Não há acrobacias exageradas ou parkour, o que reforça a intenção de manter o jogo mais grounded e realista. Isso também influencia na exploração: alcançar certos pontos exige atenção ao relevo, observar onde há superfícies escaláveis ou pequenas rotas alternativas. A decisão de manter a movimentação simples pode parecer restritiva, mas ela cria um contraste interessante com a vastidão do cenário — o jogador nunca se sente um super-herói, mas sim um ser humano vulnerável tentando sobreviver.
A mecânica de cura é outro ponto que merece destaque. Ao contrário dos frascos de vida instantâneos de outros jogos, Hell Is Us utiliza um sistema que exige tempo e atenção. Recuperar energia em combate não é trivial: é preciso encontrar momentos seguros para ativar o recurso, o que adiciona uma camada de estratégia e tensão. Consiste em atacar o inimigo e apertar um botão no tempo certo sem ser atingido. Muitos jogadores podem achar essa escolha punitiva, mas ela dialoga diretamente com a proposta de um jogo que valoriza cautela sobre pressa.
O ritmo de Hell Is Us também merece análise. Não é um jogo que entrega recompensas constantes ou progressões rápidas. Pelo contrário, a sensação é de lentidão deliberada, em que cada vitória é conquistada a duras penas e cada passo dado em direção ao desconhecido carrega peso. Essa cadência pode ser considerada tediosa para quem espera ação constante, mas é justamente ela que sustenta a atmosfera densa e opressora do mundo apresentado.
A interface minimalista contribui para a imersão, mas cobra um preço. Sem indicadores claros de objetivo ou até mesmo de status detalhados, o jogador depende de observar o próprio corpo do personagem, as reações visuais do ambiente e pequenos sinais de feedback. É um design corajoso, que vai contra a tendência atual de interfaces informativas e didáticas, mas que pode alienar parte do público. No entanto, para quem aceita o desafio, essa escolha gera momentos únicos, como perceber que a respiração ofegante do personagem indica o esgotamento da stamina ou que a mudança no som ambiente pode significar perigo iminente.
No que diz respeito ao equilíbrio de dificuldade, Hell Is Us busca um meio-termo. Não chega a ser tão brutal quanto um Dark Souls, mas também não é indulgente. O jogo recompensa a observação e pune a pressa. Morrer em combate é comum, mas raramente injusto; o aprendizado vem da repetição, da paciência e do refinamento das estratégias. Essa curva de aprendizado é consistente e, apesar da repetição, gera satisfação quando finalmente se domina um inimigo ou se descobre um novo caminho.
Por fim, é importante destacar que a jogabilidade de Hell Is Us não se resume a sistemas isolados, mas à maneira como todos eles se entrelaçam. A exploração sem guias, o combate meticuloso, os puzzles integrados e a ausência de convenções modernas se combinam para criar uma experiência que exige engajamento ativo do jogador. Não é um jogo que se entrega facilmente; ao contrário, ele pede dedicação e disposição para se perder, errar e tentar de novo. Para alguns, essa pode ser uma experiência frustrante; para outros, será exatamente o que torna o jogo memorável.
O Inferno somos Nós
A história de Hell Is Us é um mergulho nas camadas mais sombrias da condição humana, utilizando a guerra, o luto e a violência como eixos narrativos para construir um enredo que não apenas acompanha o protagonista, mas também interpela diretamente o jogador. Desde os primeiros minutos, percebe-se que não se trata de um jogo interessado em entregar explicações fáceis ou narrativas lineares. Pelo contrário, sua força está em provocar, em deixar lacunas, em sugerir mais do que revelar. O resultado é uma trama que mistura ficção científica, simbolismo e drama psicológico, costurando uma experiência narrativa que funciona em vários níveis.
O protagonista, Rémi, é um personagem que chega ao cenário devastado do jogo já carregando um peso pessoal considerável. O país em que ele se encontra, Hadea foi dilacerado por uma guerra civil que deixou marcas visíveis nas cidades destruídas, nas paisagens despovoadas e nos escombros que contam histórias silenciosas.
Ao mesmo tempo, há uma camada sobrenatural que se sobrepõe a esse pano de fundo: as criaturas conhecidas como Hollow Walkers, manifestações enigmáticas que não são simplesmente monstros, mas representações simbólicas de emoções humanas extremas. Elas não surgem por acaso, e cada uma guarda relação com sentimentos como luto, medo ou raiva, transformando o próprio campo de batalha em um reflexo das cicatrizes emocionais dos personagens.
Essa fusão entre guerra real e elementos sobrenaturais é um dos pontos mais fascinantes da narrativa. O jogo nunca trata os Hollow Walkers apenas como inimigos a serem derrotados; eles são metáforas corporificadas. O combate contra eles tem sempre um duplo sentido: além do desafio físico, há o enfrentamento de dilemas internos. É nesse equilíbrio que Hell Is Us constrói uma de suas maiores forças narrativas — a ideia de que a verdadeira batalha não é contra um exército rival, mas contra os fantasmas que a própria violência humana gera.
A história também se destaca pela maneira como é contada. Não há longos monólogos expositivos ou cutscenes intermináveis explicando cada detalhe. O enredo se desenrola através de fragmentos: documentos encontrados, símbolos cravados em paredes, conversas curtas com NPCs sobreviventes e até mesmo o design do ambiente. O silêncio das cidades arrasadas, por exemplo, fala mais do que qualquer diálogo.
Essa abordagem reforça a imersão, pois coloca o jogador na posição de investigador, alguém que precisa reconstruir os acontecimentos passados a partir de vestígios. É uma narrativa que respeita a inteligência de quem joga, ao invés de mastigar cada detalhe.
No centro da trama está a jornada pessoal de Rémi. Sua busca não é apenas por sobrevivência ou vitória militar, mas por autoconhecimento e reconciliação com suas próprias feridas. O jogo sugere, em diversos momentos, que ele não está apenas lutando contra forças externas, mas enfrentando traumas íntimos, perdas familiares e ressentimentos mal resolvidos.
Esse aspecto é reforçado pela presença do drone que o acompanha, que funciona não apenas como recurso de gameplay, mas também como uma espécie de testemunha silenciosa, quase um confidente. Sua relação com o drone é ambígua: ao mesmo tempo em que depende dele, Rémi parece projetar parte de sua solidão nessa companhia mecânica.
Outro ponto relevante é o tratamento da guerra. Diferente de outros jogos que exploram conflitos armados de forma glorificada ou puramente estratégica, Hell Is Us adota um tom introspectivo e crítico.
A guerra aqui não é apenas cenário, mas também uma consequência da incapacidade humana de lidar com emoções profundas. A destruição que vemos é fruto tanto da brutalidade física quanto da deterioração psicológica coletiva. Essa abordagem dá ao jogo um caráter quase filosófico: em vez de perguntar “quem vai vencer?”, ele pergunta “qual é o preço de se lutar?”. Cada ruína visitada, cada diário encontrado reforça essa reflexão, tornando a narrativa mais pesada e impactante.
Os personagens secundários contribuem para expandir essa visão. Embora não haja uma grande quantidade deles, cada encontro é significativo. Sobreviventes relatam fragmentos de suas vidas, muitas vezes marcados por perdas irreparáveis. Não são figuras que fornecem missões tradicionais, mas vozes que ajudam a compor o mosaico do sofrimento humano. Essas interações curtas e densas lembram muito o estilo literário, em que cada diálogo carrega um peso simbólico. Muitos desses personagens parecem existir não para avançar a trama central, mas para ampliar o tema do luto coletivo.
A estrutura narrativa é fragmentada, e essa fragmentação é intencional. O jogador nunca tem acesso imediato à “verdade” sobre os eventos que desencadearam o surgimento dos Hollow Walkers ou sobre a própria história pessoal de Rémi. Em vez disso, a verdade é construída em camadas, revelada aos poucos, como se fosse uma cicatriz que só pode ser compreendida quando observada de diferentes ângulos. Essa escolha pode ser frustrante para quem prefere narrativas lineares, mas é fundamental para o impacto do jogo. O objetivo não é entregar respostas claras, mas provocar questionamentos.
Um dos momentos mais marcantes da trama ocorre quando o jogador percebe que os Hollow Walkers não são apenas inimigos externos, mas reflexos internos do protagonista. Esse ponto de virada redefine a leitura de todos os encontros anteriores e dá à narrativa uma dimensão mais íntima. Não se trata mais de “derrotar monstros”, mas de aceitar, entender e talvez até perdoar partes de si mesmo.
A luta contra o luto, em especial, é central: Rémi precisa lidar com a dor da perda de pessoas próximas, e o jogo retrata isso de forma simbólica, com confrontos que funcionam como representações viscerais de seu sofrimento.
O final da história, sem entrar em spoilers específicos, não é convencional. Em vez de uma conclusão triunfante ou de uma resolução clara, o jogo opta por deixar a sensação de ambiguidade. Não há respostas fáceis, nem fechamento completo. Essa decisão pode dividir opiniões, mas está alinhada com o tom geral da narrativa: em um mundo marcado pela guerra e pelo trauma, raramente existe um “final feliz”. O que resta é o esforço de compreender, de continuar e de conviver com as cicatrizes.
Outro elemento que merece destaque é a simbologia presente em todo o enredo. Desde a paleta de cores usada nos ambientes até os nomes dos inimigos e os objetos coletados, tudo possui uma camada interpretativa. Nada é gratuito, e cada detalhe pode ser lido como metáfora.
Essa densidade simbólica faz com que a história seja aberta a múltiplas interpretações, um convite para que cada jogador construa sua própria leitura. Alguns podem ver o jogo como uma crítica direta à guerra, outros como uma jornada de autoconhecimento, outros ainda como um estudo psicológico sobre o luto. Todas essas leituras são válidas e coexistem dentro da obra.
A narrativa de Hell Is Us também dialoga com tradições literárias e artísticas. É possível identificar influências de obras de ficção científica existencial, como as de Jeff VanderMeer (Aniquilação), e até de clássicos da literatura russa, com sua insistência em retratar personagens atormentados pela culpa e pela perda. Essa intertextualidade reforça o caráter sofisticado do enredo, que não se limita à lógica do entretenimento, mas aspira a algo maior, quase artístico.
Em resumo, a história de Hell Is Us é uma experiência complexa, densa e muitas vezes desconfortável. Ela não busca agradar a todos, mas desafiar, questionar e provocar. Sua força está em transformar um jogo de ação em uma reflexão sobre a condição humana, em que os monstros não são apenas criaturas de outro mundo, mas espelhos distorcidos de nossas próprias emoções. A narrativa é fragmentada, simbólica e ambígua, mas é justamente isso que a torna marcante. Hell Is Us não entrega respostas; entrega perguntas, e talvez seja essa a maior qualidade de sua história.
Conclusão
Hell is Us traz um gameplay que inova em tempos em que os desenvolvedores tentam facilitar a todo momento a vida dos jogadores, colocando um enorme X nos objetivos. Aqui a imersão fica maior, forçando o jogador a buscar pistas, sendo o jogo uma escolha perfeita para aqueles que se divertem com essa abordagem mais investigativa. O combate também é mais dinâmico que a maioria dos outros jogos, forçando o jogador a se manter ativo e atento para conseguir sobreviver.
O jogo também traz uma história interessante e cheia de simbologias que lida com luto, família e guerra de forma bastante reflexiva e provocativa. Aqueles que gostam de obras de ficção científica com esse teor devem achar a história deste jogo um deleite. Dito isso, certamente não se trata de um jogo que vai agradar a todos, porém certamente tem o seu público entre fãs de soulslikes e sci-fi.
Esta análise foi realizada com uma cópia gentilmente cedida pelo desenvolvedor.
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