Não é muito comum que um dos jogos mais aguardados do ano chegue literalmente nos primeiros meses do ano, mas assim foi feito com Hogwarts Legacy, anteriormente prometido para dezembro. Empurrar o lançamento para fevereiro acabou sendo uma decisão acertada para a Warner. Mesmo em um mês repleto de grandes títulos como Like a Dragon: Ishin! e Atomic Heart, o que mais se fala na comunidade gamer é mesmo sobre Hogwarts Legacy.
O vasto game é o primeiro a ser criado dentro do Wizarding World que não adapta as aventuras principais de Harry Potter. De modo algum a franquia era desconhecida nos games, sendo que a EA conseguiu realizar três primeiros jogos excelentes para a saga que tropeçou em diversos altos e baixos no lançamento dos jogos lançados ao mesmo tempo que os longas.
O desafio que a Avalanche Studios encarou foi tremendo. Era preciso criar uma história original que expande o lore da franquia, recriar o icônico castelo de Hogwarts e trazer muito conteúdo para acomodar as tanto as tendências da indústria quanto a vontade do público que ama investir horas e mais horas em um produto só. Ao longo de seis anos de desenvolvimento, a produtora conseguiu trabalhar firme para transformar magia em realidade e o resultado é nada menos que fascinante.
Legado desconhecido
A narrativa original de Hogwarts Legacy consegue surpreender e prender o jogador em totalidade, apesar de desandar severamente no final. Na aventura, encarnamos um bruxo ou bruxa capaz de ver traços de uma longa e esquecida magia ancestral. Esse jovem é convidado para estudar em Hogwarts já iniciando seu curriculo acadêmico pelo quinto ano.
Para não chegar atrasado e desconhecendo diversos feitiços básicos, o jovem é tutelado particularmente pelo simpático professor Fig que já está envolvido em uma busca para descobrir o mistério por trás da magia ancestral que havia deixado sua mulher, Miriam, tão obcecada que a acabou levando até a morte.
Neste balaio, após algumas confusões típicas até o caminho para Hogwarts, os personagens acabam transportados através de uma chave de portal para um misterioso cofre em Gringotes, os colocando na rota de encontro do vilão goblin Ranrok e seu comissionado maléfico Rookwood.
O encontro inicia uma corrida dos dois lados representando luz e trevas para encontrar respostas envolvendo essa misteriosa magia que pode ser usada para o bem ou para o mal. As respostas estão escondidas em Hogwarts e somente o jovem protagonista conseguirá usar essa poderosa magia para impedir o início de uma nova guerra no mundo bruxo.
De fato, desde Harry Potter e as Relíquias da Morte, Hogwarts Legacy traz a melhor história do Wizarding World comparado ao que saiu posteriormente ao final da saga – tirando a abominação do oitavo livro sobre a Criança Amaldiçoada. Ainda assim, embora a história empolgue bastante com seu teor mais sombrio e adulto dos momentos iniciais, ela sempre está presa na promessa da resolução dos seus mistérios crescentes.
O problema é que a resolução dos mistérios muitas vezes são ligeiras e superficiais, sem explorar devidamente as problemáticas envolvendo o uso da magia ancestral. O mais curioso envolve uma micro narrativa contada através de flashbacks que falha tremendamente em trazer um retrato compreensível da personagem que “inova” no uso da magia ancestral, desagradando os professores de Hogwarts chamados de Guardiões.
Uma pena também que o game falhe em trazer uma relação mais personalizada do protagonista com seus colegas de classe e professores. Muitas vezes, os desenvolvedores apostam todas as fichas na apresentação mágica das aulas de algumas matérias de bruxaria, mas falham em criar mecânicas de minigames que, por sinal, já existiam em outros jogos da franquia como A Ordem da Fênix.
As aulas encantam qualquer fã de Harry Potter que sempre sonhou em participar de algumas peças letivas encantadas, mas é uma pena que sejam tão poucas, pois existe um trabalho nitidamente apaixonado pelo material original de J.K. Rowling. Aliás, o desperdício também fica em cena para o elenco de professores bastante carismáticos como a vice-diretora Weasley, a professora de voo Kogawa e o professor de poções Sharp, um ex-auror. Nesse grupo, o metido diretor Phineas Black também acaba subaproveitado.
Nada seria de Hogwarts se também não fossem seus carismáticos alunos. O time de roteiristas do jogo se preocupa em trazer diversidade para os personagens coadjuvantes e, infelizmente, por mais cativantes que sejam as aventuras com Poppy e Natsai, muitas vezes a narrativa não emplaca.
Aliás, é curioso notar que a melhor história do jogo inteiro esteja justamente em uma missão secundária com a linha narrativa de Sebastian Sallow e Ominis Gaunt, dois alunos da Sonserina que abrem a possibilidade do jogador aprender as três maldições imperdoáveis. Aqui, a história progride para caminhos bastante inesperados e até mesmo perturbadores com uma qualidade e peso de decisões muito mais impactantes do que ocorre na história da campanha principal.
Também é uma pena que o jogo não comporte significativamente as escolhas do jogador ao longo da narrativa. Os dois finais que ele possui são minimamente diferentes, evidenciando a importância de um sistema de moralidade presente no título – é possível disparar Avada Kedavra para todos os lados e não sofrer consequência alguma na história ou na relação com outros NPCs. Chega a ser um tanto cômico, até.
Um vasto mundo para explorar
A Avalanche traz diversas características de sua história para tornar Hogwarts Legacy um jogo essencial para todo fã da saga Harry Potter. Eles aproveitaram sua expertise no sandbox visto em Mad Max e com os modos criativos de construção de mundos de Disney Infinity. O resultado no jogo é um mapa massivo repleto de coisas para fazer que pode até mesmo ser um tanto quanto avassalador devido ao tanto de conteúdo que o jogo traz.
As atividades são inúmeras e só listá-las já é uma tarefa árdua. Há diversos enigmas espalhados no mapa envolvendo salas secretas, pergaminhos descritivos especiais, itens de colecionador, estátuas que interagem sob efeito das magias certas (são cerca de 26 feitiços), desafios de voo com vassouras, desafios intelectuais como trivias e de matemática simples, coleção de criaturas mágicas, desafios mágicos, de sequência de botões, dungeons, acampamentos de inimigos e muitas, mas muitas quests secundárias.
Fora isso, Hogwarts por si só é imensa e recriada aos mínimos detalhes de locais extremamente conhecidos como o Grande Salão e a casa comunal da Grifinória, bem como possui um grande capricho estético nas áreas inéditas que ajudam a dar um sentimento maior de consistência realista à geografia do castelo. As paredes são ornamentadas com belos tapetes, luminárias e uma vastidão de retratos animados.
O destaque aos retratos é tão caprichado que existem interações bastante únicas em ocasiões especiais como o corredor musical que te pega de surpresa na primeira passagem a eles. A magia não fica restrita à Hogwarts, obviamente, apesar de contar com uma alta densidade de atividades – aliás, é impressionante como é possível explorar praticamente o castelo inteiro sem tombar com uma tela de carregamento graças aos SSDs dos novos consoles e PCs.
A atenção aos detalhes e cuidados com segredos que imploram para serem revelados pelo jogador estão em diversas outras áreas. Hogsmeade por si só é encantadora, mas existem outros povoados com suas próprias histórias e características especiais. A Floresta Proibida, por exemplo, consegue provocar grandes calafrios ao visitá-la na calada da noite – felizmente não existe nenhuma restrição de horário para explorar o mapa.
São realmente muitos detalhes impressionantes. O melhor de tudo é que o mesmo cuidado existe com as animações envolvendo o personagem principal – muito embora as animações faciais possam deixar a desejar, para corridas e interações pelo mapa, principalmente no combate.
Os designers de combate sabem dosar muito bem os recursos de magia à disposição do jogador. Temos os feitiços básicos que integram a principal ofensiva e a magia de proteção Protego, em um sistema similar aos vistos no Batman Arkham. Já os feitiços mais complexos de ataque possuem um leve tempo de cooldown para serem utilizados em meio à batalha. Também é possível realizar combos criativos para causar mais dano aos inimigos. Por exemplo, a mistura de Glacius com Diffindo é mortal e garantia de sucesso.
É possível, porém, que pelo tamanho massivo do game, o combate tenda a se tornar viciado em um combo de feitiços, mas o jogo encoraja bastante experimentar as possibilidades ao misturar mais magias diferentes. Isso também ocorre para conseguir quebrar as defesas dos inimigos, ao usar poderes da cor correspondente às bolhas de proteção.
Também ficam os elogios pelo fato dos desenvolvedores não terem nerfado o Avada Kedavra. Com a combinação certa de feitiços e habilidades, é possível derrubar uma sala inteira repleta de inimigos com apenas um feitiço mortal bem calculado. A morte é mesmo instantânea, não importando o tamanho do adversário. Aliás, é impressionante a variedade de inimigos que vão de goblins, acromântulas e trasgos até bruxos das trevas.
Tornando as coisas mais interessantes para o combate, há a implementação da magia ancestral cujos medidores crescem conforme o jogador aumenta o combo de golpes. Há golpes fracos e alguns especiais que trazem animações exclusivas a depender do inimigo – miniaturizar uma acromântula e esmagá-la ou bater o porrete do trasgo nele mesmo nunca perdem a graça.
Por fim, é importante mencionar as funcionalidades do hub do jogador com a Sala Precisa. Ela traz diversas oportunidades de customização e instalação de equipamentos importantes para criar poções e plantas que são extremamente úteis em combate e que vão fazer a diferença na hora de enfrentar difíceis chefes da fase. É possível decorá-la com tapetes e quadros, além de aprimorar os próprios equipamentos de vestuário – que felizmente contam com um sistema simples e eficaz de transmogrificação.
O destaque mais apaixonante, porém, está no bestiário onde é possível cuidar e alimentar algumas das criaturas fantásticas que encontramos pelo caminho como hipogrifos e testrálios. Há muitos animais fantásticos no jogo e buscar por todos eles é uma das atividades mais divertidas.
Problemas nem tão mágicos
Quem acompanha as notícias dos lançamentos do mercado de jogos, sabe que Hogwarts Legacy sofreu, como tantos outros, na versão de PC. Para a infelicidade da avaliação geral do game, foi a plataforma que escolhi para jogar – além de ser a minha plataforma preferida para resenhar os jogos. Somente agora, na terceira semana pós-lançamento, que o jogo está relativamente estável na plataforma.
Mesmo com uma RTX 4080, o jogo sofria com quedas muito bruscas de frames e diversos engasgos – os famigerados stutterings. O que mitiga o problema, mas não o elimina por completo, é o uso do frame generation do DLSS 3 – ainda um recurso extremamente restrito para inúmeros jogadores de PC. No geral, o game sofre com a má otimização e quando os efeitos Ray Tracing são ativados, as coisas pioram ainda mais. Hogsmeade é uma das áreas mais afetadas por problemas, inclusive.
A experiência só não se torna insuportável por conta do jogo ser realmente muito bom e induzir o jogador a “passar um pano” para a performance péssima. O jogo te encanta tanto com a riqueza em detalhes e no mapa fantástico repleto de atividades que ajuda a dilatar a paciência do jogador. Fosse qualquer outro título, com certeza as avaliações de PC na Steam estariam bem menos amistosas.
De qualquer forma, o game já recebeu dois grandes patches durante meu tempo de jogatina e realmente a performance melhorou. Agora, os problemas mais corriqueiros são mesmo os engasgos de tela e as quedas de frames em Hogsmeade.
Um gigantesco salto para o Wizarding World
Hogwarts Legacy foi mesmo a maior empreitada de Harry Potter no setor de jogos e as vendas exorbitantes só comprovam que a marca é extremamente forte e rentável. A qualidade do jogo também é ótima e muito digno de elogios. Tanto que o maior defeito da obra, por si, é a história por ser decepcionante e nunca atingir o potencial prometido.
De resto, em termos de mecânicas, gráficos, design artístico, variedade e conteúdo, não há o que reclamar. O jogo entrega o que promete e vai além deixando qualquer estúdio que não seja a própria Avalanche com um enorme desafio para superar em uma próxima aventura.
Tudo indica que temos aqui o célebre início de uma franquia. O mundo mágico de Harry Potter enfim ganhou um grande e memorável jogo para chamar de seu.