É fato concreto: George Lucas é um gênio capaz de criar duas das franquias mais amadas pelos millennials – Star Wars e Indiana Jones. Outro fato concreto é que faz muitos anos que as franquias estão a ver navios com lançamentos de produtos cada vez piores sob a égide da Disney.
Tanto os fãs de Star Wars quanto os de Indiana Jones já sentiram o sabor do estrago e desastre artístico e comercial dos mais recentes lançamentos das sagas. Seja com The Acolyte ou com o deprimente A Relíquia do Destino, é difícil encontrar alguém que realmente tenha amado de paixão as duas obras. O trauma é tamanho a ponto de fazer os fãs celebrarem O Reino da Caveira de Cristal, o penúltimo filme da saga e ainda dirigido por Steven Spielberg.
Logo, com essa nuvem densa que paira nas marcas, quando o novo jogo de Indiana Jones foi revelado, havia um temor constante de ser mais um produto destinado ao desastre completo. Porém, Indiana Jones e o Grande Círculo na verdade se trata de uma obra ótima que merece figurar até mesmo na seleção de melhores histórias do infame arqueólogo na trilogia original.
Produzido pela MachineGames, estúdio que não vê um lançamento desde o desastre de Wolfenstein: Youngblood em 2019, o game acaba se provando uma redenção para os fãs do estúdio e da franquia, oferecendo um respiro muito bem-vindo e merecido.
Espírito dos originais
Indiana Jones e o Grande Círculo acontece em 1937, pouco tempo depois dos eventos de Caçadores da Arca Perdida. Jones retorna à Universidade Marshall, sem mais aventuras perigosas, frustrado também pelo romance com Marion não ter dado certo.
Porém, em uma noite chuvosa, enquanto cochilava na universidade, Jones é acordado por uma perturbação no acervo de arqueologia. Ao investigar, é confrontado pelo gigante Locus (interpretado por Tony Todd em seu último papel em vida) que rouba uma das peças do museu – uma múmia de um gato do Antigo Egito
Com pistas que o levam diretamente ao Vaticano, Indy reencontra amigos, mistérios e uma nova companheira de aventuras: a jornalista italiana Gina que procura por sua irmã desaparecida. Entretanto, com o Vaticano ocupado pelas forças fascistas de Mussolini, Indy não tarda a esbarrar em mais arqueólogo nazista, o excêntrico Voss, que acabará em confronto direto com o aventureiro.
Se tratando de uma experiência bastante cinematográfica com 14 horas de duração, em média, sendo cinco horas só de cinemáticas, é notável o empenho do time de roteiristas em trazer uma história de qualidade, com reviravoltas boas ao mesmo tempo que lida com arcos narrativos interessantes para Indy e Gina.
Aos preocupados, o carisma, essência e espírito de um clássico Indiana Jones está aqui. O Grande Círculo entrega momentos divertidos, ternos, tensos e até mesmo horripilantes em alguns momentos. Exatamente como uma obra Indiana Jones deve ser.
É isso o que acontece quando um time profundamente apaixonado pela marca se empenha para entregar um resultado além do satisfatório. Há diversas referências a trilogia original sendo que uma delas é incorporada ao gameplay de modo totalmente orgânico – isso é, caso o jogador pense exatamente como Indiana Jones.
Ao contrário de muitos exemplos recentes de jogos que não conseguem compreender o zeitgeist cultural do momento, O Grande Círculo, felizmente, não se empenha em doutrinar o jogador, jogando problemas do mundo real a todo momento e muito menos ser condescendente com lições de moral rasas. Tampouco o jogo visa desconstruir Jones ou ser desrespeitoso com qualquer cultura e religião abordados na história – pasmem, isso inclui até o Cristianismo no Vaticano.
O brilho dos personagens secundários também se faz notado, incentivando o jogador a realizar missões paralelas que tem direito a suas próprias histórias feitas com capricho (a qualidade dos níveis é igualmente surpreendente). E me arrisco a dizer que o vilão, Voss, é o nazista mais carismático visto no audiovisual desde Hans Landa, de Bastardos Inglórios. A performance de Mario Gravilis é cativante ao mesmo tempo que constroi uma repulsa e raiva no jogador. Basicamente, rouba a cena sempre que aparece.
Não há como não mencionar o trabalho estupendo de Troy Baker ao encarnar Indy. O ator, em 80% do tempo, consegue acertar ao máximo os trejeitos, maneirismos e voz de Harrison Ford para o personagem. É mesmo algo impressionante que com certeza vai marcar qualquer fã da franquia. O único porém que posso apontar é que Baker, provavelmente muito focado em mimetizar Ford, acaba não trazendo algo novo para o personagem. É literalmente o mesmo Indiana Jones, mas seria legal ver algo diferente do que Ford já conquistou no papel.
Talvez, o que é a maior falha da narrativa e, por consequência, do jogo todo, é a grande ausência de set pieces de ação ao longo da experiência. Há apenas três, incluindo a que abre o jogo ao recriar toda a sequência de abertura de Caçadores da Arca Perdida (momento brilhante por sinal). Logo, apesar de não ser um jogo chato ou enjoativo, o Grande Círculo passa raspando de ter problemas com o ritmo. Imagino que essa decisão de deixar o jogo mais lento é para evitar comparações diretas com Uncharted ou Tomb Raider, mas, convenhamos, essas franquias não existiriam se não fosse Indiana Jones. Então, em uma sequência, seria bom injetar mais ação em uma franquia que é conhecida por suas sequências inesquecíveis de perseguição.
Indiana Jones e a receita certa
Se criar uma grande história de qualidade para Indiana Jones já é um desafio, imagino que pensar em design de níveis e gameplay seja ainda mais difícil. Felizmente, o que a MachineGames apresenta aqui é uma receita quase que ideal. Até mesmo a escolha da jogatina em primeira pessoa acaba se provando adequada com as mudanças para trechos em terceira pessoa estranhando menos a cada hora jogada.
Explorando diversos cantos do mundo ao longo da campanha, muitos biomas diferentes são apresentados trazendo um tico do charme de cada filme da saga. Temos masmorras medievais no Vaticano, tumbas egípcias em Guizé e muito mais – evitando spoilers já que a experiência é mesmo surpreendente.
O loop de jogo é, em essência, simples. Indy é jogado em grandes áreas exploráveis e nisso passa a conhecer contatos, realizar missões enquanto investiga objetivo principal que algumas vezes é vinculado à alguma missão paralela do tipo de buscar um item essencial da jornada como uma câmera ou isqueiro.
Com a câmera, Indy pode tirar fotos de diversos pontos de interesse, gerando tokens que são gastos para adquirir novas habilidades sendo estas disponíveis através de livros espalhados pelos mapas. Ou seja, o jogador é recompensado pela exploração – assim como um arqueólogo seria. Com a presença de fascistas ou nazistas no mapa, há também regiões proibidas que trazem seus incentivos próprios para explorar.
Entretanto, como qualquer fã sabe, Indy não é um pistoleiro apesar de ser bom de briga. Logo, uma abordagem stealth discreta é sempre recomendada já que, caso seja descoberto por um capitão que consegue identificar Indy mesmo disfarçado, o jogador terá muitos problemas e vai enfrentar a morte certa quando vier inimigo de todos os lados.
É muito difícil sobreviver a qualquer confronto com tiroteio, por isso evite sacar o revólver de Indiana. Em geral, os npcs sempre vão optar em sair no soco, o que é ótimo para o jogador. Nos cenários há uma infinidade de armas brancas, algumas até cômicas como vassouras e tapa moscas, para enfrentar os nazistas. As armas quebram após o uso, então os combates sempre são intensos envolvendo pequenas perseguições e confrontos diretos.
Apesar de ser bastante presente, o combate não é a prioridade do jogo. A exploração e os quebra-cabeças que são o foco. Então, se você não gosta de jogos de aventura com ênfase em história e puzzles, esqueça qualquer chance de desvendar os mistérios do Grande Círculo.
Entre catacumbas, masmorras, torres, túneis, mausoléus, câmaras submersas e muito mais, é louvável o trabalho empenhado nos puzzles que são bastante diversificados entre elementos clássicos como ajustar tubulações, engrenagens, decriptografar códigos secretos até outros muito originais envolvendo ditar palavras na ordem correta ou forjar chaves para abrir uma porta ornamentada. Absolutamente todos são bastante divertidos e até mesmo nas raras batalhas contra chefes, há elementos originais que aceleram o ritmo do jogo.
As seções de plataforma, embora todas funcionais, infelizmente acabam um tanto prejudicadas pela lentidão de movimento do Indy. Por estar numa pegada mais realista, o personagem não salta igual um macaco por entre obstáculos como Nathan Drake, por exemplo. Também é uma pena que o chicote icônico seja implementado de modos bastante óbvios na gameplay e muito pouco encorajado no uso durante combate.
Como a aventura do jogo atravessa diversos países, é muito louvável que a MachineGames tenha se empenhado em trazer NPCs falando seus idiomas corretos geograficamente. Ou seja, não vai topar com um escavador árabe no jogo para ouvir inglês fluente. Italianos falam italiano, egípcios falam árabe, nazistas falam alemão e tailandeses falham thai. Exatamente como deveria ser. É algo que realmente faz diferença na imersão do jogador.
Em quesitos técnicos, o jogo tem suas dificuldades, muito provavelmente por implementar efeitos ray tracing de modo obrigatório – assim como Star Wars Outlaws e Black Myth: Wukong. Sendo um jogo pesado graficamente, fico feliz em informar que a performance é o menor dos problemas, geralmente bastante estável durante a jogatina no PC.
Os problemas geralmente ocorrem em cinemáticas que sofrem com quedas de frames, além de apresentarem muitos artefatos visuais – e não, não é apropriado ter esse tipo de artefato até mesmo num jogo estrelado por um arqueólogo (piada ruim, eu sei). Outros bugs visuais ou de colisão surgem, principalmente no terço final de jogo que é o menos polido. Nada é realmente escandaloso ou quebrado, mas seria gratificante ver esses problemas corrigidos em atualizações futuras – ainda mais tendo em vista que há uma expansão prometida para o título.
De resto, temos um trabalho visualmente impressionante sendo um jogo muito belo com efeitos de iluminação em tempo real notáveis. As texturas são ótimas, as animações faciais não deixam a desejar e a direção de arte é apurada ao máximo, trazendo localidades icônicas ao misturar o real com o imaginário. Tudo isso acompanhado por uma trilha musical de excelente qualidade, criando faixas imbuídas de todo o gene romântico das composições belas de John Williams para os filmes da saga.
Um belo presente de Natal para o personagem e também para os fãs
Indiana Jones e o Grande Círculo é um game obrigatório para qualquer fã da franquia. Com absoluta certeza, trata-se de uma obra muitíssimo mais competente que A Relíquia do Destino, trazendo uma história interessante e divertida que, inclusive, se baseia em uma teoria da conspiração que realmente existe nos fóruns da Internet.
Fico feliz em saber e afirmar que Indiana Jones está em boas mãos desde que continue com a MachineGames. Existe muito espaço de tempo entre os filmes para explorar as aventuras ainda desconhecidas de Indy. Ou até mesmo revisitar as clássicas já contadas pela saudosa LucasArts lançadas há eras. O potencial é irrestrito e o personagem merece essa reverência e oportunidade de conquistar uma nova geração de fãs para se maravilhar com as descobertas inesquecíveis do arqueólogo irreverente.
Agradecemos à Bethesda pela cópia gentilmente cedida para a realização desta análise.