Desde 2002 que a saga Mafia conseguiu se consagrar frente à concorrência de GTA ao se diferenciar na abordagem de gameplay e de narrativa. Com os grandes sucessos que foram o jogo original e sua sequência Mafia 2 em 2010, a franquia tropeçou feio com Mafia III em 2016 e acabou vendo a geladeira por anos.
Ressurgindo de surpresa em 2020 com um excelente remake do original, os fãs da saga ficaram órfãos de conteúdo original por quase uma década. Também anunciado de surpresa, Mafia: The Old Country é uma nova abordagem para a saga, permitindo que qualquer jogador se aventure na selvageria siciliana sem precisar conhecer praticamente nada dos jogos anteriores.
Escolhendo seguir por esse caminho, a nova produção da Hangar 13 – que conseguiu sobreviver ao amargo fracasso do terceiro game, é muito familiar aos veteranos da série, mas pode ser ponto de entrada para uma nova geração de fãs.
Raízes da Máfia
Mafia sempre foi altamente focada na qualidade de sua narrativa ante outras escolhas de gameplay. Praticamente, o jogo acontece estruturado por sua história e, aproveitando o cenário italiano da Sicília pela primeira vez em um jogo inteiro, há bastante potencial para apresentar temas e contextos sociais nunca antes vistos anteriormente na saga.
Aqui, o jogador é Enzo Favara, um jovem vendido aos impiedosos mafiosos da família Spadaro. Agora sendo um carusu, praticamente um “escravo” obrigado a trabalhar nas minas de enxofre para quitar a dívida da venda, Enzo passa seus dias respirando gases tóxicos, movendo rochas e correndo risco de morrer a qualquer desabamento inesperado.
Após uma tragédia se instalar na mina, Enzo encontra a oportunidade perfeita para fugir. Perseguido pelos Spadaro, o garoto consegue adentrar nas terras da família Torrisi, também mafiosa. Sendo salvo pelo próprio Don Torrisi e o capo Luca, Enzo consegue um teto e uma perspectiva de futuro melhor para sua vida na vila Torrisi. Em questão de poucos dias, começa a trabalhar para a famiglia e fazer sua própria história, principalmente quando conhece a bela Isabella, a simpática e interessada filha de Don Torrisi.
Tirando a origem de Enzo, a história segue uma estrutura muito similar a de Mafia e Mafia II. Se você já jogou ambos os títulos, já sabe muito bem o que esperar de The Old Country. Isso, por si, não é um demérito para jogadores novos, mas os mais experientes encontrarão, possivelmente, a história mais previsível de todos os jogos da saga e que, só não é a mais fraca, por conta dos acontecimentos interessantes do final do jogo.
Iniciando em 1904 e atravessando diversos anos, vemos Enzo crescer sua reputação na família, ao mesmo tempo que se adentra em atividades cada vez mais sombrias. Embora o jogo não consiga explorar isso muito bem, Luca se torna um mentor para o protagonista que se vê no personagem mais velho. Luca tem sua própria família, esposa e filhos, então tudo o que acontece com o personagem, ajuda a amadurecer Enzo.
Outros coadjuvantes ajudam em ser um bom contraponto como Cesare, sobrinho de Don Torrisi, que não tem inteligência o suficiente para ser um bom mafioso, mas um falastrão violento e carismático. Leo, neto de Don Galante, outra família criminosa da Sicília, também ajuda o personagem a amadurecer em uma jornada que os dois trocam experiências.
Seja por limitação de orçamento ou de estrutura – embora eu ache que seja mesmo questão de orçamento, os personagens acabam prejudicados por não terem momentos livres para realizarem outras atividades que complementam à narrativa principal. O jogo é extremamente linear e não tem respiros para que os coadjuvantes confraternizem momentos importantes e os desenvolve um pouco além do básico. Pelo menos a mensagem geral da história é eficaz e bonita.
Logo, muito potencial é perdido deixando cada personagem em estereótipos funcionais: Enzo é a esponja com bom coração que vai entender sua jornada só no final, Isabella é virtuosa e que quer tirar Enzo do pior caminho, Cesare é invejoso e violento, Luca é experiente e comedido e Don Torrisi é misterioso com uma aura de perigo – de longe, o Don é o personagem mais fraco da história, sofrendo bastante no final.
Pelo menos os vilões são bastante memoráveis, criando desafetos pessoais profundos com Enzo por estarem relacionados às minas de enxofre que o personagem gastou anos de sua vida. A tríade composta por Don Spadaro, Il Merlo e L’Ombra é realmente memorável sem precisar tornar o jogo apelativo, é só o poder da atuação de atores que sabem o que estão fazendo. A inserção de Tino e os episódios com Torrisi se revelando cada vez mais perverso também ajudam a trazer antagonistas próximos ao núcleo de Enzo, trazendo sempre uma atmosfera de ameaça constante contra o personagem.
Além disso, o roteiro se vale, junto com o departamento de arte, em explorar de modo satisfatório a Sicília do começo de 1900 trazendo uma Itália aprendendo a ser industrializar, com diversas explorações trabalhistas que viriam a culminar nos movimentos fascistas que trariam a completa desgraça para o país, além das paixões do povo italiano em bons vinhos, carros e corridas. O jogo também consegue mostrar como a máfia se enraízava como uma corrupção praticamente inata ao capitalismo que vinha a germinar na época, oferecendo facilidades e trapaças para sistemas de segurança governamentais cheios de furos.
Além disso, a vibe e atmosfera de toda uma história de máfia é correta e adequada. A ambientação é perfeita e fiel com tudo sendo muito bem apresentado com as ótimas cinemáticas bem dirigidas e cativantes. Há até mesmo a possibilidade jogar com áudio siciliano, embora a sincronia labial dos personagens tenhas sido feita para o inglês – o que pode te tirar um pouco da experiência.
Hangar13Estrutura secular
Sabendo que a história é apenas boa, mas extremamente previsível, o que sobra para Mafia: The Old Country? No aspecto positivo, certamente é fácil ficar maravilhado com as belezas mediterrâneas das vinícolas sicilianas, dos portos de atum e das cidadezinhas charmosas, um bom sistema de iluminação e a boa trilha musical. De resto, o jogo sofre bastante com uma estrutura linear datada que remonta até mesmo ao Xbox 360.
Ao contrário de Warhammer 40000 Space Marine 2 que consegue impressionar se valendo de uma estrutura antiga, Mafia sofre por uma certa obsessão com realismo que a Hangar 13 tem desde sua fundação quando ainda era a 2K Czech. Os controles para dirigir os veículos altamente rudimentares do começo do século são igualmente rudimentares e quase nada divertidos.
O mesmo se dá com os ostensivos tiroteios com uma variedade pífia de armas truncadas, sensíveis ao extremo com os coices e a cadência de tiro praticamente ainda do final de 1800. Em questão de horas, o combate se torna um fardo com inimigos muito pobres de IA que, pelo menos, tentam te flanquear a todo momento. No fim, o melhor é mesmo se armar com uma escopeta e sair explodindo todos no caminho para tudo terminar mais rápido.
Tirando as duas missões de corrida que são sim divertidas, principalmente a de cavalos, praticamente todas as outras seguem uma estrutura muito restritiva e, novamente, comento sobre a questão orçamentária. Ao contrário de termos bolsões de ações para o personagem interagir, temos corredores que se comportam da mesma forma: primeiro Enzo vai lidar com inimigos através de segmentos stealth, chegará na metade da missão, alguma coisa acontecerá e ele retomará o mesmo caminho na base do tiroteio.
A repetição já desgasta a experiência até mesmo antes da metade do jogo e, não fosse o bom romance entre Enzo e Isabella, provavelmente muitos jogadores não aguentariam finalizar a história. O jogo é constituído por capítulos com momentos certos do dia e estações do ano, com um modo free roam bastante limitado. Há alguns colecionáveis para encontrar como manchetes de jornais e raposas misteriosas, mas como o mapa é praticamente morto, há pouco encorajamento para o jogador seguir em frente nessas missões.
O mesmo ocorre no artifício que se trata da maior novidade do jogo: os duelos de faca. Sim, assim como em Duna, a velha máfia siciliana resolve suas diferenças na ponta da faca. O duelo é sim divertido no começo, com estocadas, cortes horizontais e golpes pesados, mas por conta também do uso excessivo deles para demarcar chefes de fase, acaba cansando bastante, principalmente por conta das lutas durarem uma eternidade e contarem com muitos problemas de colisão – juro que vi minha faca atravessar um monte de gente, mas o jogo não reconhece o golpe.
Embora algumas seções do jogo sejam repletas de NPCs programados em diversas atividades e vida exuberante, é notório que não há vida selvagem e a vida nas cidadezinhas é pacata, sendo que algumas são até mesmo fantasmas já que não há ninguém. Sem atividades complementares, o mundo, apesar de bonito, é inócuo. Há outros sistemas também que não são muito explorados ou encorajados como o vestuário, customização de cavalos e carros, além da mecânica das contas do terço de Enzo que trazem alguns modificadores interessantes como o de silenciar seus passos ou permitir que você sobreviva a um golpe fatal.
Em termos técnicos, joguei a versão de PC e não é possível afirmar que o jogo está bem otimizado. Há bastante trabalho a ser feito aqui já que mais uma vez a Unreal Engine 5 se prova ser um verdadeiro problema em questão de framepacing e quedas súbitas de fps. Não chega a ter freeze frames, mas há quedas massivas de frames, principalmente no terço final do jogo em zonas mais abertas.
Também é impressionante que, apesar de ser sim um jogo bonito, nada justifica a performance medíocre em um PC que tem bastante lenha para queimar com uma RTX 4090 e um i5 12600K. Dá para saber que se trata de otimização porque há problemas notórios de pop ins de texturas e da distância renderizada com árvores ganhando detalhes a cada segundo que o personagem se aproxima dela e outras texturas que sofrem com o carregamento tardio.
Também existem alguns bugs de falta de capricho, com personagens se teletransportando para carros ou ajustando automaticamente sua rota para abrir portas, o mesmo se dá com algumas animações repetidas para todos os NPCs – repare no movimento dos personagens nas cavalgadas e verá que o trabalho é replicado em todos eles. Essas questões facilmente seriam resolvidas com mais alguns meses de polimento e transparece uma falta de capricho que remontam ao péssimo lançamento de Mafia III. Felizmente, o jogo está num estado jogável e eu não experimentei nenhum crash durante a jogatina.
Velhos hábitos de uma gente violenta
Mafia: The Old Country está longe de ser o melhor jogo da saga até agora, mas certamente não é o pior deles. Pela estrutura do jogo, algumas faltas de capricho e a otimização mambembe muito dependente da geração de frames para fazer o jogo rodar, algo me diz que havia muito espaço para melhora e que o orçamento não foi dos grandes. É difícil crer que o título seja um AAA, se assemelhando mais a um projeto ornamentado de escopo AA.
Entretanto, não há muito o que fazer já que o jogo é o que é: uma obra boa que diverte e traz uma história interessante que não desagrada, mas que também tinha um potencial muito maior para ser explorada até mesmo em sequências ou expansões vindas posteriormente. Acho difícil que aconteça dado o modo que a história termina, mas ainda assim é uma experiência que vale a pena ser jogada tanto por fãs quanto por novatos. Torço para que a franquia continue viva para contar mais histórias futuramente.
Agradecemos à 2K Games pelo código gentilmente cedido para a realização desta análise.