Crítica | Abraço de Mãe incorpora o horror cósmico enquanto explora trauma familiar
Abraço de Mãe está na Netflix a partir de hoje
Quando um filme de terror é capaz de explorar não só os sustos e os efeitos visuais, mas também mexer com nossas emoções e dilemas pessoais, sabemos que estamos diante de algo especial. Abraço de Mãe, da Netflix, faz exatamente isso. Ele mergulha o espectador em um horror que vai além do sobrenatural, explorando traumas familiares, a relação com o passado e, claro, o medo do desconhecido.
No centro da trama, temos Ana, interpretada por Marjorie Estiano. Ela é uma bombeira que, logo após retornar de uma licença de saúde mental, se vê em meio a uma missão perigosa: evacuar um lar de idosos prestes a desabar durante uma tempestade épica em 1996, no Rio de Janeiro. A premissa inicial poderia parecer mais um drama de resgate, mas Abraço de Mãe rapidamente revela que há muito mais em jogo. Os residentes do asilo, misteriosos e desconfiados, recusam-se a deixar o local, como se estivessem protegendo algo... ou alguém.
A tensão começa a se acumular à medida que Ana e sua equipe percebem que o perigo não está apenas na estrutura condenada do edifício, mas também nos próprios moradores. O que parecia ser uma evacuação simples se transforma em um jogo mortal onde segredos sombrios e entidades cósmicas começam a surgir. Um dos pontos mais interessantes do filme é como ele joga com a nossa percepção de realidade, misturando o trauma pessoal de Ana com a ameaça sobrenatural que ronda o asilo.
Elementos clássicos do terror estão presentes
A construção da atmosfera é um dos grandes trunfos de Abraço de Mãe. O diretor Cristian Ponce faz um excelente trabalho ao equilibrar os elementos clássicos do horror cósmico com uma abordagem emocionalmente carregada. As tempestades violentas, a mansão decadente e os detalhes sutis de produção (como os corredores sombrios e os cômodos cheios de segredos não ditos) criam uma sensação constante de desconforto. É como se o próprio cenário fosse um personagem à parte, vivo e pulsante, prestes a desmoronar a qualquer momento.
O enredo também é permeado por flashbacks que nos levam ao passado traumático de Ana, revelando a complexa relação com sua mãe, que tentou matá-la quando ela ainda era uma criança. Essa camada adicional de narrativa faz com que o espectador se conecte ainda mais com a protagonista, compreendendo suas motivações e o peso emocional que carrega. Não é apenas uma luta contra monstros físicos, mas também uma batalha interna, contra seus próprios demônios.
E por falar em monstros, Abraço de Mãe se destaca ao não entregar tudo de bandeja. Os elementos de horror cósmico, inspirados em H.P. Lovecraft, são introduzidos de forma gradual. Em vez de exibir uma criatura gigantesca logo de cara, o filme brinca com a imaginação do espectador, sugerindo o horror que está por vir. Os tentáculos que deslizam pelos corredores e o mistério que envolve a água — que parece ser o catalisador para algo muito maior — mantêm o suspense em alta até o clímax, quando finalmente somos confrontados com a verdadeira ameaça.
Elenco acerta o tom
As performances do elenco são sólidas, com destaque para Marjorie Estiano, que consegue transmitir uma vulnerabilidade contida, mas ao mesmo tempo uma força incrível. Sua personagem está sempre à beira do colapso, mas nunca perde o foco em sua missão. A interação entre Ana e os outros personagens, como Ulisses (Javier Drolas), o administrador sinistro do asilo, e Drica (Ângelo Rebelo), a enigmática dona do local, contribui para a sensação crescente de desconfiança e perigo.
Outro aspecto que merece atenção é a forma como o filme lida com o tema do culto. Diferente de outras produções que abordam seitas de forma exagerada ou caricata, aqui temos uma abordagem mais sutil e sinistra. Os moradores do asilo parecem estar envolvidos em algo maior, algo que remete a rituais antigos e forças além da compreensão humana. A relação deles com a entidade que habita os subterrâneos do asilo é deixada propositalmente ambígua, o que só aumenta o fascínio pelo que realmente está acontecendo ali.
Cristian Ponce, que também co-escreveu o roteiro, demonstra uma compreensão profunda do gênero. Ele consegue criar uma obra que equilibra o medo do desconhecido com uma trama emocionalmente rica. O terror aqui não é apenas sobre criaturas monstruosas ou aparições fantasmagóricas; é sobre as cicatrizes que carregamos e como o passado pode nos assombrar tanto quanto qualquer ser sobrenatural.
Abraço de Mãe é destaque na Netflix
Apesar disso tudo, Abraço de Mãe tem suas falhas. Alguns momentos podem parecer previsíveis para os fãs mais experientes do gênero, e certos elementos do roteiro poderiam ter sido melhor desenvolvidos, como o papel da jovem Lia (Maria Volpe), que surge como uma peça-chave na trama, mas cuja história poderia ter sido mais explorada. Ainda assim, esses detalhes não diminuem a força do filme como um todo.
O clímax é, sem dúvida, um dos momentos mais impactantes do filme. A revelação do que está realmente por trás das ações dos moradores e a luta final de Ana para salvar não apenas sua vida, mas também sua sanidade, culminam em um desfecho tenso e visualmente impressionante. E, apesar do uso moderado de CGI, o filme consegue entregar cenas memoráveis, onde o terror cósmico atinge seu ápice.
Com tudo isso, Abraço de Mãe se destaca no cenário atual do terror não apenas por sua abordagem do horror cósmico, mas também por seu coração. É um filme que mistura emoções de forma eficaz, criando uma experiência no mínimo interessante. Quem procura por um filme de terror que vai além dos sustos baratos e entrega uma história rica em camadas e simbolismos, aqui há um exemplar que cai muito bem.
O filme é uma espécie de mergulho em águas perigosas — literalmente. Abraço de Mãe é um daqueles filmes que vai te fazer pensar duas vezes antes de encarar uma tempestade... e talvez até antes de revisitar certas memórias do passado.
Crítica | As Boas Maneiras - Sinfonia em noite de Lua Cheia
“Antigamente, os problemas eram resolvidos na bala”. Essa é a afirmação chave para As Boas Maneiras, porém, não surge da maneira mais óbvia e conservadora. Com essa ideia na mente e a câmera no chão, Marco Dutra e Juliana Rojas realizaram um dos filmes menos comuns entre as produções nacionais, e com lucidez e fôlego impressionantes. Balanceando o comentário social e uma história de terror, o filme consolida-se como um dos mais múltiplos da atualidade.
Os diretores, que já mostraram talento tanto juntos quanto em suas carreiras solo, parecem realizar um trabalho de policiamento sempre em defesa da coerência do filme. Hoje, pode-se perceber uma insistência do cinema nacional em produzir dramas realistas que buscam ter uma abordagem, se não universal, do país como um todo, que, pela grandiloquência, acaba se perdendo com muita facilidade – vide o apressado e mal realizado Como Nossos Pais, de Laís Bodanzky. O que não quer dizer que As Boas Maneiras não explore a condição do país em sua marginalidade. Não só faz, como desenha um perfil do Brasil.
É impossível não detectar um tratado sobre a herança da escravidão em Clara (Isabél Zuaa), protagonista negra que terá que lidar com o filho incomum (Miguel Lobo, ator-mirim brilhante) da personagem branca, sua patroa-sinhá-amante Ana (Marjorie Estiano). Não é à toa que a criança receberá o nome de Joel (referente à figura de Deus), e que sua relação com Clara será um divisor de águas na vida da moradora da periferia de São Paulo. Muito mais que uma ama de leite, a protagonista dará seu sangue para alimentar a vida dessa criança, que acabara de explodir a barriga de sua genitora em um horrível parto misturando os aliens de Ridley Scott e um banho de sangue que só os elevadores do Overlook Hotel de Kubrick poderiam proporcionar. Ao mesmo tempo, lembra o medo infantil (aqui, até mais literal) de Tourneur e o explícito perturbador de Cronenberg.
Mas mais do que tentar fazer qualquer tipo de reverência – há bem pouco disso, na verdade –, As Boas Maneiras tenta fugir do estanque, do gênero como algo superficialmente ridículo. Isto é, não basta tratar de uma história violenta com um elemento sobrenatural buscando uma fanfarrice que brinque com as expectativas e os limites do espectador. Desse tipo de cinema, absorve o que há de mais importante: o experimento da forma e a despreocupação em “mostrar”. No caso, desde o começo do filme, nos deparamos com uma São Paulo diferente: liberta de si mesma, a cidade é base para a computação gráfica e possibilita planos que poucos diretores seriam capazes de conceber. Uma enorme lua cheia ao fundo, pela janela da sala de jantar potencializa uma sequência que consegue enriquecer a camada “social” do filme quanto seu elemento sobrenatural.
Louvável o fôlego que As Boas Maneiras tem para se redescobrir. As duas horas e quinze poderiam ser muito bem uma hora e pouco, abarcando apenas a primeira parte, e ainda ser uma longa louvável. Mas Dutra e Rojas parecem não ser dos que tiram o corpo fora. O longa consegue explicar a diferença entre o extracampo e a omissão. Isto aparece especialmente com o monstro, cuja transformação é ao mesmo tempo exibida e sugerida, tal como grande parte da, digamos, ação. Mas também surge nos momentos mais cotidianos, mais ternos, sabendo dar espaço para a dor seja no enquadramento, seja com um dos brilhantes números musicais (nesses momentos, tentamos ver por que o filme não poderia se chamar O meu guri). Na sua alternância – de maneira mais clara entre a primeira e a segunda partes –, As Boas Maneiras é um filme de gêneros.
Nesse todo, encontramos uma fábula que desde o princípio se distancia de um conto moral, mas não afasta as característica de uma canção de ninar. O drama vem num carro de bois. E faz sentido o cavalo nunca galopar, senão nos últimos minutos, porque busca-se um outro espírito (antigo) em um cenário moderno. O flashback de Ana, contado por meio de belas ilustrações, buscam suprir uma imagem apagada pelo rancor por parte de sua família ao saber de sua gravidez: a recusa de encarar a realidade. Em complemento, há a festa junina do bairro, um palco para o real e o catártico se desenrolarem num clímax de terror e suspense. As cicatrizes e suas representações denunciam uma nostalgia tão violenta quanto lúdica e acertam o ponto nevrálgico de um passado doloroso.
Em noite de Lua Cheia, As Boas Maneiras chega para impressionar e mesmo que precise se reafirmar em uma ou duas decisões dramáticas, termina com um corte final arrasador e que não deixa dúvidas de que é um dos filmes brasileiros mais libertários dos últimos tempos.
As Boas Maneiras (idem, Brasil – 2017)
Direção: Juliana Rojas e Marco Dutra
Roteiro: Juliana Rojas e Marco Dutra
Elenco: Isabél Zuaa, Marjorie Estiano, Miguel Lobo, Cida Moreira, Andréa Marquee
Gênero: Terror, Thriller, Drama
Duração: 135 min
https://www.youtube.com/watch?v=iPfcLiHdpFA
Crítica | Entre Irmãs – Um Épico Melodramático à Brasileira
Entre Irmãs, o novo trabalho de Breno Silveira (Dois Filhos de Francisco) é o seu longa mais ambicioso, por querer contar uma grande história que tem a ver com o desenvolvimento da região em que se passa a sua história. Pena que mesmo com uma produção muito bem feita, narrativamente o filme é bem irregular.
Ele se passa durante o começo na década de 30, e conta a história das irmãs Emília (Marjorie Estiano) e Luzia (Nanda Costa), que vivem em uma pequena vila no sertão nordestino. A vida de ambas muda quando a vila é atacada por um grupo de cangaceiros liderados por Carcará (Júlio Machado). O líder dos cangaceiros decide levar Luzia junto com o grupo para se tornar uma cangaceira. Após se separar da irmã, Emília se casa com Degas (Romulo Estrela), filho de um médico muito bem sucedido da capital. Ambas seguem suas vidas, mas ainda tem os seus destinos ligados.
Bom, deu pra entender que o filme é um grande melodrama. Pelo menos ele se assume como um e tem todas as características do melodrama e acaba cometendo os erros comuns dos filmes desses gêneros, principalmente os grandes: vários personagens; múltiplos núcleos; estrutura episódica, etc.. Mas o grande erro do roteiro de Patricia Andrade, baseado no livro de Frances de Pontes Peebles, está em encher de tantas subtramas que o filme esquece o relacionamento das irmãs, sendo tocado em apenas dois momentos durante toda a projeção. E as subtramas envolvendo a visão dos cangaceiros como guerreiros da justiça ou de como as pessoas deviam esconder sua sexualidade na alta burguesia, por mais realistas que sejam – e até que são bem desenvolvidas -, só as dos cangaceiros convence. Além dos personagens terem motivações esquisitas.
Se o roteiro soa irregular, o mesmo pode dizer da direção de Breno Silveira. Ele sabe filmar muito bem (O que é óbvio vindo de um diretor cuja formação é a fotografia), mas exagera demais no melodrama. Além de ter um primeiro ato que fica muito perto do desastroso por ser forçado, mal desenvolvido e o diretor não deixar claro a sua gramática visual, atirando pra tudo quanto é lado. O filme melhora bem no segundo ato que ele fica mais fluído e se mostra muito longo no terceiro. Ou seja, mesmo Silveira sendo habilidoso na condução técnica – aproveitando muito bem os cenários e contando com trabalhos incríveis da fotografia e da direção de arte – ele se perde no sentido narrativo, por não ser mais objetivo e por sua mão ser muito pesada nas cenas de drama, ao ponto que apela para uma trilha sonora que mesmo sendo muito bonita soa forçada.
O elenco está muito seguro, todos fazem muito bem o seu papel. Os destaques ficam por contas das irmãs que tem uma ótima química e convencem como parentes. Marjorie Estiano é uma atriz muito disciplinada que tem melhorado durante o tempo e segura bem as suas cenas mais densas. Enquanto Nanda Costa – que é mais limitada – se mostra perfeita para o papel. Utiliza bem a expressão mais fehcada de Costa e se mostra com olhar muito expessivo.
Enfim, Entre Irmãs é um filme bem irregular por conta da mão pesada do seu diretor e do roteiro megalomaníaco. Tem uma parte técnica muito admirável e um bom trabalho do seu elenco, mas infelizmente que você esquece em poucos minutos. Uma pena, porque ele poderia ser bem melhor.
Entre Irmãs (Idem, Brasil – 2017)
Direção: Breno Silveira
Roteiro: Patricia Andrade, baseado no livro de Frances de Pontes Peebles
Elenco: Marjorie Estiano, Nanda Costa, Ângelo Antonio, Júlio Machado, Letícia Colin e Romulo Estrela
Gênero: Drama
Duração: 160 minutos
Trailer:
https://www.youtube.com/watch?v=NrFYL1k6q34&t=10s