Vamos analisar Gladiador II em profundidade com um olhar crítico para sua precisão histórica e as liberdades criativas que ele toma. A trama, ambientada em um momento dramático do Império Romano, levanta questões sobre o que realmente aconteceu versus o que foi adaptado para o cinema. Abaixo, cada aspecto é discutido com base na informação que temos dos registros históricos.
Coliseu transformado em uma piscina gigante — Fato
Uma das cenas mais marcantes de Gladiador II é a transformação do Coliseu em uma enorme piscina para encenar batalhas navais. Historicamente, essa prática é autêntica. A construção do Coliseu foi concluída em 80 d.C. sob o imperador Tito, que celebrou a inauguração com uma série de espetáculos, incluindo naumaquias — simulações de batalhas navais. Júlio César havia sido o primeiro a introduzir tais encenações em Roma, usando áreas alagadas para retratar batalhas aquáticas. A água, às vezes rasa, permitia que embarcações especialmente adaptadas navegassem e ofereciam espaço para combate corpo a corpo em ilhas artificiais.
Os registros de Cássio Dio indicam que até animais domesticados, como touros e cavalos, eram introduzidos para se “adaptar” ao ambiente aquático, embora a profundidade da água provavelmente fosse suficiente apenas para esses animais, sem ser tão profunda para lutas mais intensas. Ridley Scott, porém, leva a ideia a outro nível ao adicionar tubarões no Coliseu para aumentar o espetáculo. Embora possamos argumentar que é uma licença criativa, há um grão de verdade: registros indicam que espécies marinhas exóticas às vezes eram exibidas como uma forma de ostentação imperial. A luta contra tubarões é incerta, mas considerando a grandiosidade das exibições romanas, o conceito não é completamente fora de questão.
Lucius Verus II como gladiador — Ficção
Lucius Verus é um personagem que mistura realidade e ficção em Gladiador II. Ele era, de fato, um personagem histórico, o sobrinho-neto do imperador Marco Aurélio e filho de Lucilla Augusta, irmã do imperador Commodus (interpretada por Connie Nielsen no primeiro filme). No entanto, Lucius Verus morreu aos 12 anos, muito antes de alcançar a idade ou as circunstâncias para se tornar gladiador. Historicamente, ele sequer viveu para presenciar o governo de Commodus, o que torna sua história no filme completamente fictícia. Essa é uma adição dramática que alimenta a narrativa do filme, mas é anacronicamente impossível.
Dois irmãos imperadores (Geta e Caracalla) — Fato
O filme introduz os irmãos Caracalla e Geta, coimperadores que dividiram o poder após a morte de seu pai, o imperador Severo. De 209 a 211 d.C., os dois irmãos efetivamente governaram o Império Romano em uma relação tensa e conflituosa, tal como o filme sugere. Os registros históricos indicam que Caracalla era ambicioso e, eventualmente, ordenou o assassinato de Geta, não só para consolidar seu poder, mas também como resultado de uma rivalidade profundamente pessoal. A inclusão dessa rivalidade no filme é fiel aos registros históricos e reflete as intrigas políticas e as tragédias familiares que marcaram a Roma Antiga.
Macrinus como o primeiro imperador negro — Fato
O personagem de Denzel Washington, Marcinus, é baseado em Macrinus, que realmente ascendeu ao trono como imperador após o reinado de Caracalla. Macrinus foi um prefeito pretoriano de origem africana, e o primeiro imperador romano de descendência africana. Ele foi nomeado imperador por suas tropas e não pelo sistema senatorial, o que reflete a instabilidade e o militarismo da época. No filme, Marcinus é descrito como traficante de armas e gladiadores, o que diverge um pouco de seu verdadeiro papel como um oficial civil e militar. No entanto, a essência de sua posição e o papel que ele desempenhou como uma figura de autoridade na Roma antiga são bem capturados.
Romanos liam jornais — Ficção
Uma cena em Gladiador II mostra um personagem lendo um jornal em um café, uma prática que seria anacrônica. Em Roma, havia um sistema de notícias chamado Acta Diurna, que informava a população sobre acontecimentos do governo e outras notícias importantes. Esses “jornais” eram esculpidos em placas de metal ou pedra e exibidos em lugares públicos. Não havia meios portáteis de leitura nem estabelecimentos semelhantes aos cafés para essa prática. Assim, a representação de um jornal no filme é imprecisa e reflete uma visão moderna dos meios de comunicação.
Gladiadores montavam rinocerontes — Ficção
A cena de um gladiador montando um rinoceronte é visualmente impactante, mas carece de base histórica. Sabe-se que rinocerontes, assim como outros animais exóticos, foram exibidos em arenas romanas para entreter o público e mostrar a riqueza e o poder do império. No entanto, não há evidências de que esses animais fossem montados em combate. Para o filme, uma versão realista de um rinoceronte foi criada usando tecnologia de efeitos visuais, resultando em um animal que corre e se movimenta de forma impressionante. Embora essa escolha enfatize o espetáculo visual, é uma invenção sem respaldo histórico.
Marcus Acacius (personagem de Pedro Pascal) — Ficção
Assim como Maximus, o personagem Marcus Acacius de Pedro Pascal é fictício. Embora o filme retrate Acacius como um general que serviu sob Maximus e captura Lucius como prisioneiro, nada disso possui embasamento na história real. No entanto, a presença de um personagem fictício em um épico como Gladiador II não é surpreendente, considerando que mesmo Maximus foi uma criação inventada para enriquecer a narrativa do filme original.
Polegar para cima ou para baixo para decidir o destino — Ficção
A famosa cena em que o imperador levanta o polegar para cima ou para baixo para decidir a vida de um gladiador é uma interpretação errônea popularizada em grande parte por Hollywood e pela pintura Pollice Verso de Jean-Léon Gérôme, que inspirou Ridley Scott a fazer o primeiro Gladiador. Na verdade, na Roma Antiga, “polegar para baixo” simbolizava “espadas para baixo” e poupava o derrotado, enquanto o polegar para cima podia sinalizar a morte. Essa concepção errada persistiu ao longo dos anos e foi novamente perpetuada no filme.
Gladiador II é, sem dúvida, um épico visual com um compromisso ambíguo com a precisão histórica. Embora algumas das representações sejam fiéis, como as batalhas navais e a rivalidade entre Caracalla e Geta, o filme também toma liberdades criativas significativas. Elementos como tubarões no Coliseu e gladiadores montando rinocerontes podem não ser historicamente precisos, mas contribuem para a atmosfera grandiosa e o espetáculo visual que Ridley Scott busca criar. Assim, enquanto Gladiador II não deve ser visto como uma fonte confiável de história romana, ele nos convida a explorar o fascínio duradouro e a complexidade do Império Romano, ainda que com uma boa dose de ficção hollywoodiana.