Crítica | King: Uma História de Vingança - Um Filme Sem Identidade
Filmes com personagens sendo motivados por forte sentimento de vingança já foram realizados das mais diversas maneiras, passando por diversos gêneros cinematográficos, que vão desde o western até a ficção científica. Tais histórias, mesmo com tramas simples, como John Wick, ou mais rebuscadas, vide Jornada nas Estrelas II: A Ira de Khan, possibilitam enfoques variados, seja explorando o psicológico de seus principais personagens ou focando quase que exclusivamente na ação. Como o próprio título nacional já deixa bem claro, King: Uma História de Vingança, é uma dessas histórias, com o diferencial de procurar equilibrar o drama e ação nessa trama de revanchismo.
O longa-metragem acompanha Jacob King (Chadwick Boseman, o Pantera Negra do Universo Cinematográfico Marvel), um sul-africano que viaja para Los Angeles após receber uma ligação de sua irmã pedindo ajuda. Ao chegar lá, ele descobre que ela fora torturada e assassinada – Jacob inicia, então, uma jornada de vingança a fim de acabar com os responsáveis pela morte de sua irmã, o que não prova ser algo fácil, já que gangues locais e pessoas de grande influência estão envolvidos nessa trama.
Como esperado, o roteiro de Oliver Butcher e Stephen Cornwell estabelece uma premissa bastante simples a ser desenvolvida. Sem perder tempo, já somos jogados no meio dessa grande investigação de King, com a obra assumindo traços de filmes policiais. Curiosamente, o longa se sustenta melhor justamente nesses trechos, que envolvem o protagonista seguindo as pistas deixadas e, claro, indo atrás de cada um dos envolvidos no assassinato. Boseman nos convence, desde o início, através dessa mais calada persona, com seu sotaque carregado sempre nos lembrando sua posição de estrangeiro naquele meio.
O texto, porém, não sabe muito bem no que focar e acaba prejudicando todo o ritmo da obra através de suas súbitas mudanças de tom. Em um momento Butcher e Cornwell estão construindo um forte suspense, apenas para interrompê-lo com uma cena de ação prolongada, nos deixando com a sensação de que toda aquela construção fora desperdiçada, com o filme seguindo pelo caminho mais fácil, sem verdadeiramente se aprofundar no que deveria. Tal questão é, ainda, evidenciada pela narrativa fragmentada, que pula de ponto em ponto, como se o personagem estivesse atirando para todos os lados, sem realmente seguir uma linha de raciocínio lógica.
O que causa maior estranhamento, porém, é a direção de Fabrice du Welz, que opta por planos mais prolongados nas sequências mais dramáticas, mas abandona isso por completo nas de ação, as quais utilizam a típica linguagem de filmes do gênero atuais, com cortes excessivos e câmera tremida, que não só incomodam, como nos impedem de entender qualquer coisa do que está acontecendo. Chega ao extremo de ficarmos confusos com um personagem sendo espancado, parado, no chão, visto que os planos não se estendem por mais que um segundo, ao ponto de irritar aquele que assiste o filme.
Não há, portanto, qualquer identidade visual na obra, que ora opta por planos escuros, ora reveladores. Mesmo a ocasional iluminação azulada, que reflete bem a disposição do protagonista, simbolizando a desolação de sua perda, parece ser esquecida conforme progredimos na história.
Todo o drama e construção de personagens, portanto, é desperdiçado a favor da mesmice de sempre – perfeito exemplo disso é o dentista interpretado por Luke Evans, que é apresentado como uma figura dúbia e cativante no início, mas que segue por um caminho para lá de óbvio, com direito a tramas complicadas as quais jamais são apropriadamente desenvolvidas, deixando várias pontas soltas, como se os roteiristas tivessem começado uma determinada história e desistido dela no meio do caminho. Dito isso, dentre os diversos pontos apresentados na obra, apenas o lado pessoal de Jacob é realmente explorado em sua plenitude, o que não é dizer muito, já que esse é justamente o aspecto mais simples do longa.
O almejado equilíbrio entre drama e ação, portanto, falha em concretizar-se, ao passo que a obra não consegue estabelecer sua identidade visual ou narrativa. Com direção e roteiro que não sabem ao certo o que querem e um trabalho fotográfico nada inspirado, King: Uma História de Vingança depende quase que exclusivamente do carisma de seu protagonista e, mesmo que Chadwick Boseman consiga nos convencer através de sua interpretação, ela não é o suficiente para salvar esse filme.
King: Uma História de Vingança (Message from the King— EUA/ Reino Unido/ Bélgica/ França, 2017)
Direção: Fabrice du Welz
Roteiro: Oliver Butcher, Stephen Cornwell
Elenco: Chadwick Boseman, Teresa Palmer, Luke Evans, Tom Felton, Jake Weary, Natalie Martinez, Alfred Molina, Kirsty Hill, Dale Dickey, Chris Mulkey, Sibongile Mlambo, Drew Powell
Duração: 102 min.
Crítica | O Profissional - A Obra Máxima de Luc Besson
Nos minutos finais de Nikita – Criada para Matar, Luc Besson introduz em sua história a figura de um cleaner. Interpretado por Jean Reno, que já trabalhara com o diretor em Imensidão Azul, o homem era, em outras palavras, um assassino profissional – contratado com um único propósito, já anunciado pela sua designação, o de “limpar”. Em O Profissional, Besson decide explorar mais a fundo em indivíduo como esse, mas vai muito além disso, não caindo no velho filme de ação e nos trazendo um íntimo olhar na vida conturbada de um homem e uma menina.
Léon (Jean Reno) é uma pessoa simples e calma, muito calma. Ele acorda todos os dias em seu apartamento barato, faz seus exercícios matinais, bebe seu leite puro, rega sua planta com muito esmero e, quando necessário, compra mais duas caixas de leite. Seus gostos nada requintados, contudo, são financiados pelos seus contratos de assassinato, algo que jamais imaginaríamos, à primeira vista, que um homem como este faria. Sua rotina, porém, sofre um abalo considerável quando Mathilda (Natalie Portman), uma menina de doze ou treze anos (que diz ter dezoito), sua vizinha, bate à sua porta logo após ter sua família inteira assassinada a sangue-frio por Stansfield (Gary Oldman), um policial corrupto, chefe da divisão de narcóticos, o DEA. Léon, após certa relutância, decide abrir a porta e salvar a vida da garota.
O roteiro de Besson não demora muito a traçar uma das principais diretrizes da obra: a vingança da jovem. A trama, porém, jamais cai nos moldes do óbvio, explorando profundamente a interação entre Léon e Mathilda. Com cuidadosos diálogos e direção precisa, acompanhamos tal relação caminhar pelo paternal e amoroso. Apesar de seus meros treze anos, a personagem de Natalie Portman é retratada como uma mulher adulta, tanto em figurino quanto em personalidade, se apaixonando pelo seu salvador e jogando centenas de indiretas e flertes que completamente moldam nossa visão de Mathilda, nos confundindo, fazendo-nos indagar de que forma devemos tratar a personagem. É essa constante contestação que mantém tão instigante o longa-metragem, praticamente independente do fato de termos um assassino como protagonista.
Luc decide ir ainda mais fundo e mantém a violência em alta nessa sua obra e para isso utiliza a loucura de Stansfield para nos chocar a cada aparição sua. Gary Oldman, em um de seus melhores papéis, nos traz uma figura verdadeiramente psicótica e imprevisível, gerando um distinto temor não só nos personagens à sua volta, como na própria audiência. Através desse marcante retrato da psicose, a presença de Mathilda nesse cenário se torna ainda mais pungente, rapidamente fixando ainda mais a imersão do espectador, que pode apenas sentir pena do impacto que tudo aquilo terá na vida de uma garota já traumatizada pelos maus tratos que sofria na casa dos pais.
É justamente essa ferida aberta da menina que a torna tão dependente de Léon, que, aos poucos, demonstra um visível afeto por ela. A gradual transformação do personagem é palpável, garantida pela interpretação sólida de Jean Reno, que consegue imprimir em cada silêncio uma distinta emoção, por mais apático que possa tentar transparecer. Suas expressões, que muitas vezes colocam em cheque a inteligência do protagonista, exercem o papel de nos aproximar dele. Somos chocados, então, quando o simples homem desperta sua fera adormecida interior e entra em atividade, através de cenas de ação cruas e bem montadas, que garantem não só o entendimento como a fluidez das sequências e da obra como um todo.
Em tais momentos se torna visível a identidade da direção de Besson, aliado da fotografia de Thierry Arbogast, mais uma vez ao lado de Besson. Em nenhum ponto sofremos da velha repetitividade. O que vemos são planos bem concebidos, captados com precisão, seja para compor o close mais intimista, seja para compor o conjunto Mathilda-Léon. Solidificando o tom de cada imagem, temos a trilha atmosférica de Eric Serra, que vai do pop às mais arrepiantes notas, que tão bem imprimem não só o amor por trás dos dois protagonistas, como toda a sua controvérsia. No fim, somos definitivamente presos a essa narrativa tão bem fechada por todos os seus aspectos.
Fica fácil, portanto, enxergar que Luc Besson acertou em cheio com O Profissional, criando algo que, de imediato, podemos enxergar como sua obra-prima. Seja pela relação entre uma jovem e um assassino, seja pelos surtos psicóticos tão bem interpretados por Gary Oldman, todos (everyone!) sairão marcados por esse inesquecível filme.
O Profissional (Léon – França, 1994)
Direção: Luc Besson
Roteiro: Luc Besson
Elenco: Jean Reno, Natalie Portman, Gary Oldman, Danny Aiello, Peter Appel, Michael Badalucco, Ellen Greene, Elizabeth Regen
Gênero: Drama
Duração: 110 min.
Crítica | O Conto dos Contos - Retomando as Fantasias de Grimm e Andersen
O primeiro filme em inglês do diretor italiano Matteo Garrone, O Conto dos Contos é, como o próprio título sugere um apanhado de histórias que se entrelaçam através de alguns poucos elementos. Não se enganem, porém, acreditando que o caráter de fantasia que o filme assume quer dizer que ele é feito para um público mais jovem. Muito pelo contrário, temos aqui algo muito similar aos contos de Grimm e Andersen originais, nos quais a lição apresentada sempre vem acompanhada com sangue. Este é um conto de fadas para adultos.
Em um reino cujo nome desconhecemos um rei (John C. Reilly) e rainha (Salma Hayek) estão abalados por não poderem ter filhos. É nesse momento que um homem misterioso surge e propõe uma série de feitos, envolvendo a caçada de um monstro marinho, que, no fim, garantirão um filho ao casal. A história, contudo, como mencionado anteriormente, não se limita a um único foco narrativo. Alguns anos mais tarde temos a história de um rei libertino, interpretado por Vincent Cassel e outra de uma princesa que, acima de tudo, deseja um marido. Unidos somente pelo fato de que são reinos vizinhos esses três contos apresentam, cada um, sua própria estrutura narrativa, contando com um clímax para cada.
Dito isso, o roteiro assinado por quatro mãos, baseado no livro de Giambattista Basile, leva o espectador em uma espiral de emoções, nos deixando pouco tempo para respirar. O caráter adulto que a história assume desde o princípio nos faz ter a percepção de ausência de um final plenamente feliz – sabemos que haverá sacrifício, algo anunciado pela figura misteriosa que faz sua aparição no primeiro trecho da projeção. Toda aventura assume um tom de provação para os personagens e o elenco, cada um com suas particularidades, desempenha um ótimo papel na construção desse universo. A única que soa fora do lugar é Salma Hayek, sendo a única personagem latina da obra. Naturalmente, sendo este um reflexo fantasioso da Europa, tal possibilidade existe, mas ainda soa fora do lugar.
A decupagem de Matteo Garrone garante sua originalidade fugindo do que estamos acostumados quando se trata de fantasias como O Senhor dos Anéis ou As Crônicas de Narnia, que fazem uso de planos abertos constantes. Sua estrutura fragmentada permite um uso mais frequente de planos fechados, essenciais na construção psicológica de cada personagem, definitivamente o maior dos enfoques do longa. Existem, é claros, enquadramentos mais abertos, mas eles são justificados por ações mais “aventureiras”. O uso de cores mais vibrantes também é uma constante, criando através do contraste o tom necessário da projeção Acompanhando toda a projeção, e coroando o caráter da obra, temos a trilha certeira de Alexandre Desplat, que acerta em cheio o tom de cada sequência, nos trazendo melodias que permanecem em nossa mente muito após o término da obra e que, certamente, merece ser adquirida.
A ausência de uma maior coesão entre cada foco narrativo é o que pode ser considerado o único deslize do filme. A intenção do diretor era, sem dúvidas, criar uma história fragmentada e a montagem dá conta desse recado, criando uma notável fluidez na trama, mas não podemos deixar de sentir como se algo estivesse faltando, algo para nos prender ainda mais. A união entre os diferentes contos ocorre somente no início e no fim e através de poucos personagens secundários, quando eles poderiam ser entrelaçados de maneira muito mais criativa.
Tal defeito, porém, não cria uma barreira entre o espectador e o longa-metragem, que pode ser aproveitado em sua plenitude. O Conto dos Contos é uma interessante retomada das fantasias escritas por Grimm e Andersen e certamente irá agradar a qualquer apreciador do gênero. Matteo Garrone faz, portanto, uma ótima estreia no cinema em língua inglesa, trazendo um conto de fadas verdadeiramente adulto e angustiante.
O Conto dos Contos (Il Racconto dei Racconti – Itália/ França/ Reino Unido, 2015)
Direção: Matteo Garrone
Roteiro: Edoardo Albinati, Ugo Chiti, Matteo Garrone, Massimo Gaudioso
Elenco: Salma Hayek, Vincent Cassel, Toby Jones, John C. Reilly, Shirley Henderson
Gênero: Fantasia
Duração: 125 min.
Crítica | Ichi - O Assassino - A Loucura de Takashi Miike
Takashi Miike é um total, completo maluco. Com uma carreira como diretor iniciada em 1991, ele já chegou a dirigir mais de cem obras, em sua maioria longa-metragens, mas também alguns episódios de séries ou minisséries. Sua loucura, porém, não é limitada somente à sua assustadora prolificidade, ao lado desse fator temos as temáticas abordadas em suas obras, que rapidamente o transformaram em um dos atuais diretores japoneses mais cultuados, tanto fora quanto dentro de seu país. De forma alguma, porém, o chamo de louco de forma pejorativa, estamos falando de uma daquelas loucuras que vem como uma verdadeira dádiva para o cinema e por isso, revisitamos uma icônica obra desse realizador único, Ichi – O Assassino.
Adaptado do mangá de Hideo Yamamoto, de mesmo nome, o longa-metragem nos conta a história de Kakihara (Tadanobu Asano), o segundo em comando de uma gangue da Yakuza, cujo chefe desaparece misteriosamente. Nós, espectadores, sabemos que o líder da gangue fora assassinado por alguém chamado Ichi (Nao Ohmori), mas, ignorante a esse fato, Kakihara começa uma violenta investigação, repleta de morte e tortura para descobrir o destino de seu chefe. Pouco sabia ele, contudo, que um sádico homem arquitetava todos esses eventos, que levam à perseguição do protagonista e seu bando pelo assassino desconhecido, que pouco a pouco se torna famoso pela forma brutal como mata suas vítimas.
hi – O Assassino definitivamente não é um filme fácil de ser assistido. Miike procura mostrar toda a violência dessa história da forma mais visceral possível, na intenção de causar desconforto no espectador. Sua intenção é a de provocar um questionamento a nós mesmos acerca da necessidade de consumirmos tanta violência nos dias atuais. O interessante, porém, é que o diretor deixa que nós próprios tiremos nossas conclusões – sua narrativa dispensa julgamentos morais e exibe tudo de maneira crua, colocando no espectador a responsabilidade de enxergar isso como algo bom ou ruim. De fato, ao terminarmos a projeção, chegamos a ficar com uma grande repulsa em relação a essa forte violência gráfica, que não perdoa homem, mulher ou criança.
Mas não é sempre que enxergamos os momentos mais sanguinolentos do longa-metragem com nojo ou arrepios. Uma das mais famosas marcas do trabalho do diretor é a maneira como insere o absurdo e o inesperado em suas histórias e isso se faz presente principalmente nas sequências nas quais vemos Ichi “em trabalho”. Sua forma de assassinar, com lâminas em seus sapatos, que cortam qualquer um com uma facilidade inacreditável, gera necessárias risadas no espectador, funcionando como um mórbido alívio cômico dentro de tanto desconforto. Miike, portanto, coloca duas formas de violência em tela: a descontraída, inevitavelmente ligada ao humor negro e a visceral, que gera o questionamento sobre a necessidade da mesma.
O rebuliço causado na audiência, todavia, não se limita a seu estômago, visto que nossas mentes permanecem em um estado de quase total confusão durante a grande maioria do filme. Com constantes flashbacks e mudanças de foco, fica claro que Takashi Miike não pretendia entregar tudo mastigado a nós, exigindo do espectador que preste atenção redobrada ao que se passa em tela, o que dialoga perfeitamente com sua intenção de causar uma forte aversão através da imagem e do som – ao mesmo tempo que queremos tirar nosso olhar do filme, somos obrigados a não nos distanciar por um momento sequer. Infelizmente, essa progressão narrativa acaba soando exageradamente fragmentada em determinados momentos, provocando constantes quebras de imersão, que dificultam o fluir da obra.
Outro aspecto que prejudica nosso aproveitamento da obra como um todo são algumas das atuações, em especial a de Paulyn Sun, interpretando a personagem Karen. No filme, ela é uma chinesa que alterna entre o japonês e o inglês em suas falas e quando parte para essa segunda língua, chegamos a sentir até arrepios de tão terrível que sua interpretação se torna, visto que emprega um tom exageradamente dramático, que simplesmente não combina com o inglês – não podemos deixar de nos perguntar qual a necessidade dessa personagem falar dessa forma, visto que não afeta em absolutamente nada a narrativa. Felizmente, o trabalho perturbador de Tadanobu Asano balanceia essa equação, ao passo que ele nos entrega uma persona verdadeiramente assustadora e imprevisível, que, no fim, não sabemos se torcemos contra ou a favor.
Ichi – O Assassino é o exemplo perfeito do quão único é Takashi Miike. O que vemos nessas duas horas e nove minutos de projeção certamente não encontramos em mais lugar nenhum. O diretor é louco, sim, mas um louco que pode ser traduzido como um gênio de seu próprio estilo, visto que criou uma linguagem própria que simplesmente não há como ser copiada por qualquer um (e muitos tentaram). Temos aqui um filme de revirar o estômago e a cabeça, uma daquelas obras que nos deixa em choque após o seu término e que certamente merece ser vista por todos aqueles que tiverem coragem para tal.
Ichi – O Assassino (Koroshiya 1 — Japão, 2001)
Direção: Takashi Miike
Roteiro: Sakichi Satô (baseado no mangá de Hideo Yamamoto)
Elenco: Tadanobu Asano, Nao Ohmori, Shin’ya Tsukamoto, Paulyn Sun, Susumu Terajima, Shun Sugata, Toru Tezuka
Gênero: Ação, Comédia
Duração: 129 min.
Crítica | Nikita - Criada para Matar - Impactante retrato sobre a Solidão
Com fortes repercussões tanto na França quanto no exterior, Nikita – Criada para Matar deu origem a duas séries de televisão, uma de 1997 (La Femme Nikita, utilizando o título americano da obra original) e uma mais recente, de 2010 (Nikita), além de uma refilmagem americana de 1993, A Assassina, com Bridget Fonda. Neste seu longa-metragem, Luc Besson mais uma vez adentra nos princípios do Cinéma du Look, mergulhando de cabeça na marginalização de seus personagens e criando um filme que remete à solidão tanto quanto Imensidão Azul. Ao contrário deste outro, porém, o diretor traz uma retratação crua da violência e como ela pode moldar a vida de uma pessoa.
Uma gangue de jovens delinquentes invadindo uma loja, no meio da noite, inicia a projeção. O aparente assalto logo escala para uma troca de tiros entre os punks marginais e o dono da loja. Imediatamente a polícia chega ao local e a única sobrevivente do grupo invasor é uma garota, Nikita que, no fim, atira em um policial a queima-roupa. A jovem é levada para tomar a injeção letal e é dada como morta, ao invés disso contudo, recebe um destino completamente diferente. Em uma instalação misteriosa, Nikita (Anne Paurilland) é treinada, sem direito a liberdade, para se tornar uma agente do governo, devendo cumprir as missões dela requisitadas.
O roteiro de Besson garante um fluido ritmo à obra, conseguindo nos contar, sem pecar em uma demasiada lentidão ou rapidez, a trajetória da garota. Seguindo o exemplo de seus personagens de produções passadas, o diretor nos traz uma protagonista que expira excentricidade, com uma personalidade que beira à bipolaridade, tornando esta uma narrativa completamente imprevisível. Embora este seja um filme que pode ser classificado como de espionagem, seu foco está inteiramente na espiã e não em suas operações.
Isso se torna claro pela forma como é retratado cada estágio dessa nova vida da personagem. Primeiro, o treinamento, admite uma notável dinâmica, garantida pela montagem de Olivier Mauffroy, que sabe exatamente quando inserir suas elipses temporais. Nikita não peca pelo exagero caindo em repetitivas sequências que ilustram a modificação da protagonista, ao invés disso, situações pontuais nos passam não só a nítida sensação de passagem de tempo, como de evolução da garota. Ela não só passa a admitir uma personalidade mais sociável, como tem sua própria aparência alterada, passando da criatura selvagem que vemos nos minutos iniciais para uma femme fatale, que o título americano sugere.
A maior parte da projeção, contudo, tem seu foco na vida já com uma falsa liberdade da personagem. Já noiva de Marco (Jean-Hugues Anglade), quem conhece em um mercado local, a jovem é ocasionalmente chamada em missões através de seu codinome, Josephine. Besson explora toda a relutância de sua protagonista a cada tarefa que é requisitada, mostrando a fragilidade de sua psique, nos remetendo à já citada solidão, disfarçando as pontuais rupturas de ritmo presentes aqui e lá. Apesar de contar com um relacionamento, Nikita não pode compartilhar essa parte de sua vida, sentindo-se, claramente, como uma peça estranha a todo aquele cenário, seja na França ou na Itália. Deixando claro tal aspecto está a evidente ausência de personagens externos à sua vida dupla, que criam um clima de alienação à tudo que está a volta – de um jeito ou de outro ela continua à margem da sociedade.
Corroborando esse enfoque, Besson, mais uma vez trabalhando com o diretor de fotografia, Thierry Arbogast, utiliza diversos planos fechados na personagem. Mostrando o corpo inteiro ou somente o rosto, se torna claro que esta é uma obra sobre ela, sobre sua posição neste mundo que parece desprezar sua existência, tirando dela o controle sobre a própria vida. Essa falta de domínio se torna ainda mais evidente nas sequências de ação, bem dirigidas e fotografadas, que procuram gerar uma clara sensação de caos, como se ninguém dentro de cena realmente pudesse prever o resultado da sequência. Perante essa precisa ilustração, a tensão no espectador é uma constante, especialmente quando este se torna mais simpático à personagem principal.
Ao encerrarmos a projeção não podemos deixar de sentir uma distinta falta de Nikita, de tê-la a nossa frente, provando, de uma vez por todas, que a criação de Luc Besson passou a fazer parte de nós – explicando, imediatamente, o surgimento das duas séries de televisão. Através deste seu longa-metragem, que exala a solidão e um forte toque de depressão, o diretor consegue submergir sua audiência em uma crua retratação da realidade, que claramente contém a marca do cineasta. Nikita – Criada para Matar é um filme impactante, do qual dificilmente sairemos da mesma forma que entramos.
Nikita – Criada para Matar (Nikita – França/ Itália, 1990)
Direção: Luc Besson
Roteiro: Luc Besson
Elenco: Anne Parillaud, Marc Duret, Patrick Fontana, Alain Lathière, Tchéky Karyo, Jeanne Moreau, Jean-Hugues Anglade, Jean Reno
Gênero: Ação, Thriller
Duração: 118 min.
Crítica | Imensidão Azul - A Amizade por Luc Besson
Marcado pela sua retratação de grupos ou indivíduos excêntricos, marginalizados, Luc Besson é um dos três nomes, juntamente de Jean Jacques Beneix e Leos Carax, que realizaram filmes dentro do Cinéma du Look. Priorizando a estética à narrativa, as relações interpessoais a uma trama mais elaborada, tal maneira de se fazer cinema nos permite claramente identificar o tom comum nas obras dos três diretores. Besson adentrou em tais princípios com Subway e assim seguiu com Imensidão Azul, que apesar de contar com um cenário completamente diferente, nos transmite uma similar sensação, algo que permaneceria nos longas-metragens posteriores do diretor.
O apelo estético do filme se faz evidente desde os minutos iniciais, quando, em preto e branco, acompanhamos um jovem menino mergulhando na costa das ilhas gregas. O jovem Jacques Mayol, com apenas uma máscara de mergulho, alimenta uma enguia com as mãos. Com uma trilha sonora precisa, que busca emular a sensação de estar submerso, mesclando com recursos dramáticos, a tensão no espectador é garantida. São necessários, porém, apenas alguns segundos para enxergamos a naturalidade com a qual o garoto encara o mar, fazendo dele, praticamente, um ser marinho por si só.
Tais cenas subaquáticas são gravadas com maestria por Carlo Varini, com direção de Besson, que não só consegue captar uma imagem nítida, como realiza planos de se cair o queixo, sejam eles estáticos ou com movimento. De fato, é a ausência de desequilíbrio nesse trabalho fotográfico que praticamente força em nós a necessária calma tão almejada e representada pela obra. Através de tais sequências, Luc Besson constrói a figura de seu protagonista que acompanhamos por um curto período quando criança, para, depois, pularmos para sua vida adulta, na qual o personagem é vivido por Jean-Marc Barr e onde a história, efetivamente, se desenrola.
Reitero, todavia, que Imensidão Azul não procura nos contar uma história complexa, cheia de twists e similares. Como dito, a estética do qual faz parte pede um foco nas relações interpessoais e isso se dá pela relação entre Jacques e seu amigo de infância, Enzo Molinari (Jean Reno). Sem a menor dificuldade, Jean Reno, através de sua retratação absolutamente excêntrica e não menos cômica, rouba todas as cenas, rapidamente constituindo o ponto alto da obra com sua forte (e muitas vezes difícil) personalidade. Obviamente, para tal, Mayol se faz necessário, atuando como um catalisador dos eventos transcorridos da obra. Ainda assim, não podemos deixar de sentir um certo subaproveitamento do personagem, que ao invés de ser marcante em seu constante silêncio, simplesmente é ofuscado pelo notável, e divertido, coadjuvante.
Tal deslize poderia ser facilmente perdoado graças à discreta química existente entre os dois personagens, que tão bem garante a profundidade do filme. Infelizmente, funcionando como uma recorrente quebra de ritmo ao longo da projeção, temos Johana Baker (Rosanna Arquette), o caso amoroso de Jacques, uma personagem inteiramente desnecessária para a trama que somente nos distancia do elemento desejado: a interação entre os dois velhos amigos. As diversas cenas com Johana, em sua maioria, destoam do restante da obra, soando como inserções inorgânicas à narrativa, que, no fim, somente garantem uma duração demasiadamente estendida ao filme. Resgatando-nos delas, temos, novamente, as cenas subaquáticas, que tão bem marcam o filme em nossa memória, representando, de forma ideal, o subconsciente do protagonista excêntrico e marginalizado, que constrói a estética em questão.
Com méritos e defeitos, Besson consegue nos passar uma obra que prioriza a estética, mas que não nega a narrativa, conseguindo sobrepujar suas muitas qualidades aos defeitos. Imensidão Azul pode não ser seu melhor filme, mas certamente ficará marcado na mente de qualquer um que o assistir, seja pelas extasiantes sequências no mar, seja pela sincera retratação de uma amizade que dura uma vida inteira.
Imensidão Azul (Le Grand Bleu – França/ EUA/ Itália, 1988)
Direção: Luc Besson
Roteiro: Luc Besson, Robert Garland, Marilyn Goldin, Jacques Mayol, Marc Perrier
Elenco: Rosanna Arquette, Jean-Marc Barr, Jean Reno, Paul Shenar, Sergio Castellitto, Jean Bouise
Gênero: Aventura, drama
Duração: 168 min.
Crítica | A Maldição da Casa Winchester - O Desgaste do Terror
O gênero terror sempre foi um de rápido desgaste no Cinema. Ainda que tenhamos sido presenteados com emblemáticos exemplares ao longo dos anos, indo desde Nosferatu até O Iluminado, a grande maioria das produções do gênero conseguem ser, no máximo, esquecíveis, fruto da superutilização de fórmulas desenvolvidas por alguns (raros) cineastas de destaque. Se analisarmos os últimos anos, fica fácil enxergar os diretores de maior impacto para o terror e como sua inovadoras obras originais acabaram sendo incessantemente replicadas com o passar do tempo - Wes Craven (A Hora do Pesadelo, Pânico) e James Wan (Jogos Mortais, Invocação do Mal) foram dois desses ocasionais sopros de ar para o horror.
Com isso em mente, fica fácil enxergar o porquê de A Maldição da Casa Winchester ser, se me perdoam o adjetivo, um filme “chato”. Obviamente não ficarei somente nessa categorização, mas, logo de início, é evidente a falta de inovação, ou até mesmo de refinamento de fórmula presente nessa obra dos irmãos Spierig. Não que isso venha como grande surpresa, afinal, os Spierig jamais demonstraram uma carreira muito promissora, tendo no currículo verdadeiras tragédias, como Jogos Mortais: Jigsaw e 2019 - O Ano da Extinção. Essa falta de qualquer coisa que não seja exatamente o que já vimos em dezenas de outros filmes, simplesmente nos impede de enxergar qualquer relevância desse filme, cujo maior mistério é o porquê de Helen Mirren ter aceitado o papel.
Essa mesmice se torna bastante clara logo nos segundos iniciais, que nos mostram um trecho de uma criança sendo, aparentemente, possuída em uma mansão, no início do século XX. Pouco depois conhecemos o doutor Eric Price (Jason Clarke), um médico que tomou certo gosto por substâncias alucinógenas, que é contratado para averiguar a sanidade de Sarah Winchester (Helen Mirren), dona da mencionada mansão. Chegando lá ele encontra uma morada suntuosa, gigantesca, em constante processo de ampliação. Não demora muito para que o doutor descubra que existem fantasmas consideravelmente agressivos compartilhando a casa com os Winchester.
Fórmulas desgastadas
A repetição de fórmulas desgastadas, no entanto, não permanece unicamente no roteiro - toda a direção dos Spierig gira em torno de criar o número máximo de cheap scares possível, chegando ao ponto que, em uma mesma sequência, vemos o mesmo artifício sendo utilizado repetidas vezes, beirando o terror-comédia criado por Sam Raimi em Arraste-me para o Inferno. Vemos os típicos enquadramentos mais fechados, com câmera estática, evidenciando que algo aparecerá em determinado lugar e, quando de fato aparece, vem o som em volume elevado, buscando trazer, sem êxito, o mínimo de envolvimento do espectador, o que a trama em si também é incapaz de fazer.
Não ajuda, claro, o fato de que não é criada nenhuma atmosfera imersiva de terror, ou mesmo de suspense. Os Spierig parecem querer atirar para todos os lados, compondo quadros com o céu em evidência, para, em seguida, pularem para o interior mais escuro da mansão. Para piorar, mesmo dentro da morada, os tons se alteram completamente de uma hora para a outra, pulando do vermelho para o azul e o esverdeado, sem qualquer identidade visual própria, apenas uma amálgama de cores que, no fim, apenas passam a impressão de estarmos vendo ambientes completamente descoordenados.
Ironicamente, essa mudança de tons poderia ter sido utilizada para criar a ideia de que o médico está desorientado naquela gigantesca casa, mas não é isso o que ocorre - por maior que seja, a mansão Winchester somente é tratada como confusa nos diálogos, ao passo que os personagens sempre chegam rapidamente onde querem, sem se perderem no meio do caminho. Já sobre a presença do céu em evidência, notamos a tentativa de emular o viés mais artístico do terror de Gore Verbinski, que compôs belos planos contemplativos tanto em O Chamado quanto em A Cura - o resultado desse paralelo em A Maldição da Casa Winchester, porém, soa vazio e sem um propósito evidente dentro da narrativa.
Propaganda escancarada
Conforme progredimos na projeção, já cientes de todas as falhas dessa tentativa de se criar um filme de terror, passamos a enxergar a obra como algo mais, como uma mera propaganda para a regulamentação das armas de fogo - assunto que, não por acaso, está em voga nos EUA, especialmente após os recentes tiroteios que abalaram a nação.
De fato, não há problema algum em realizadores despejarem suas ideologias nos seus filmes, o problema é quando um filme, vendido como um terror, passa a ser, na realidade, uma grande propaganda e, independente de concordarmos ou não com a mensagem, não podemos deixar de enxergar o longa como raso, especialmente quando os personagens e o enredo em si perecem em razão da tentativa de criar uma moral. No fim, não deixa de ser uma grande tática barata para convencer os defensores da liberação das armas de fogo que eles estão errados.
Esse discurso fica bastante óbvio através das falas de Sarah Winchester, que bate na mesma tecla incessantemente, atribuindo o lucro de sua família às mortes causadas pelas armas de fogo criadas pela indústria criada pelo seu marido.Essa culpa, ao menos, é utilizada para justificar a expansão da casa, mas mantém a personagem em um repetitivo ciclo, que a impede de, de fato, evoluir com a progressão da história. Para piorar, o texto dos Spierig, ao lado de Tom Vaughan, através do desfecho vai de encontro a tudo o que tentaram vender nessa grande propaganda.
No fim, o único aspecto que realmente salva essa tragédia é Jason Clarke como Eric Price, que parece estar mais à vontade em seu papel do que o restante do elenco, todos trabalhando no modo automático. Clarke chega a nos divertir com algumas de suas reações, especialmente as mais céticas ou as equilibradas, que o colocam como um dos poucos personagens sensatos da obra. Ele, contudo, não é capaz de nos fazer apreciar, mesmo que minimamente, esse longa-metragem para lá de esquecível.
Terror genérico
A Maldição da Casa Winchester, portanto, apresenta mais do mesmo, enquanto mostra a tentativa dos irmãos Spierig, tanto como diretores, quanto roteiristas, em despejar seu discurso no filme. O que conseguem criar, no entanto, nada mais é que um longa-metragem vazio em todos os sentidos.
Nada mais que uma grande propaganda, trata-se de mais um daqueles filmes de terror que meramente se apoiam em fórmulas desgastadas. O pior é que, nesse caso, não há sequer resquícios de tentativa de inovação. Sem criatividade, sem alma, temos aqui mais um dispensável terror, que evidencia a dificuldade do gênero em se manter no auge da forma.
A Maldição da Casa Winchester (Winchester - EUA/ Austrália, 2018)
Direção: Michael Spierig, Peter Spierig
Roteiro: Michael Spierig, Peter Spierig, Tom Vaughan
Elenco: Helen Mirren, Jason Clarke, Sarah Snook, Finn Scicluna-O'Prey, Emm Wiseman, Tyler Coppin, Angus Sampson
Gênero: Terror
Duração: 99 min.
Crítica | Um Dia de Fúria - Extrapolando as Irritações do Dia a Dia
Quem nunca teve um daqueles dias em que tudo parece que deu errado? Quem nunca se irritou com o atendimento em fast foods, ou com o exorbitante preço de alguns produtos? Ou com o engarrafamento constante nas cidades grandes?
Um Dia de Fúria lida justamente com isso - com essas questões mundanas, que servem como estopim para um homem comum simplesmente “quebrar”, atingir seu limite e, em súbita loucura, ultrapassar essa linha imaginária, que nos impede de cometer verdadeiras barbaridades, de sair quebrando tudo pela frente. Nessa sua obra, Joel Schumacher nos dá um vislumbre sobre como seria caso, de fato, nos deixássemos levar pela ira.
Logo nos minutos iniciais conhecemos Bill (Michael Douglas), um sujeito de camiseta branca e gravata, preso em um engarrafamento, aparentemente voltando ou indo para seu trabalho. O calor, constante gritaria, o verdadeiro caos, fazem com que ele abandone seu carro no meio da rua e saia, dizendo que vai para casa. Nessa sua jornada, porém, tudo conspira para irritá-lo ainda mais e, durante o trajeto, sai destruindo tudo à sua volta, desde uma loja de conveniência, até um fast food. Enquanto isso, em paralelo, acompanhamos o último dia de trabalho - antes de sua aposentadoria - de Prendergast (Robert Duvall), que, obviamente, acabará cruzando o caminho de Bill.
Logo de imediato, Um Dia de Fúria segue pelo caminho do humor negro. Através desses problemas mundanos apresentados, nos identificamos com o protagonista, por mais ensandecido que ele esteja e há um certo ar libertador em suas ações, ao passo que ele claramente personifica a raiva que já passamos nesse tipo de situação. Dessa forma, Bill, ou D-Fens, é alguém facilmente relacionável e suas reações perante certas injúrias são impagáveis, o que garante certa leveza à atmosfera do longa-metragem, impedindo, momentaneamente, que, apesar de lidar com o crime, ele se torne sério demais.
Infelizmente, o texto de Ebbe Roe Smith acaba impedindo que essa estrutura seja mantida, já que do humor negro, o texto vai gradualmente se tornando um drama, ou thriller, abandonando aquele ácido humor que tanto marcara o primeiro terço do filme. Ainda que o arco de Prendegast seja envolvente, afinal, estamos falando de Robert Duvall no papel, ele acaba criando um forte maniqueísmo, que coloca Bill, inevitavelmente, como vilão da obra, enquanto que ele funcionaria como uma espécie de violento anti-herói. Essa derrocada ainda é acompanhada pela escalada da violência da obra, com trechos que soam fora do lugar, como o tiroteio que atinge inúmeras pessoas inocentes.
Evidente que a intenção era fazer de Prendegast o completo oposto de D-Fens - ambos foram “sacaneados” pela vida, perderam pessoas importantes, não atingiram seus sonhos e mais. Dito isso, enquanto um sai em uma jornada destrutiva, o outro simplesmente opta por se aposentar e se mudar para o interior com sua esposa. Assim sendo, de uma hora para a outra, o texto parece deixar de querer nos entreter com as sandices de Bill e opta por criar o suspense, a tensão, através da possibilidade de Prendegast ser morto no seu último dia - questão levantada repetidas vezes durante a obra.
O problema, aqui, portanto, não está na escolha em si e sim na forma como o filme parece não se decidir o que, de fato, quer ser. São criadas, dessa forma, constantes hesitações, como um irritante soluço, ao longo da narrativa, a tal ponto que torcemos para que o foco, enfim, seja escolhido. Tudo isso faz soar como se um dos lados do filme fosse plenamente artificial e aqui depende da identificação do espectador - pessoalmente gostaria de ver Prendegast ainda mais na retaguarda, abrindo mais espaço para o desenvolvimento de Bill, que vai ganhando maior profundidade apenas nos trechos finais do longa, à parte das ligações para sua ex-esposa, claro.
Essa indecisão por parte do texto e, claro, do próprio diretor, que transmite maior urgência conforme o longa progride, saindo da ironia que permeia os minutos iniciais, felizmente, é contrabalanceada pelos excelentes trabalhos de Michael Douglas e Robert Duvall, ambos perfeitamente à vontade em seus papéis. Graças aos esforços da dupla que o longa realmente funciona, a tal ponto que sentimos como se eles entendessem mais a proposta que os próprios diretor e roteirista, sabendo o que funciona e o que não casa tão bem com a narrativa do longa.
Douglas encarna o retrato perfeito do mental breakdown, mas não da maneira que esperaríamos. Ele não simplesmente demonstra ira em cada ação - demonstra-se até bastante controlado, sendo educado e sorrindo (no auge do sarcasmo) para certas pessoas. Ele é a figura do trabalhador que se sente injustiçado pelo Sistema, da pessoa que foi abandonada pelo Sonho Americano e percebeu que tudo não passa de mera fantasia. Como caísse repentinamente em um pesadelo, ele, de certa forma, exerce controle sobre esse caos, enquanto o ator transmite um ar onírico à toda a narrativa, através de uma interpretação precisamente “aérea”, como se, de fato, ele não ligasse mais para nada.
Já Duvall está no espectro completamente oposto, vive o sujeito preocupado, não só consigo mesmo e com esse término de sua carreira, como com aqueles ao seu redor. Mesmo nesse último dia de trabalho de seu personagem, ele é dedicado e corre atrás do caso que somente ele parece enxergar a solução. Não há como olhar para o rosto de Duvall e não enxergar uma nítida bondade, que grita oposição em relação aos outros policiais, em geral mal-educados, à exceção de sua antiga parceira. Através desse dedicado trabalho do ator conseguimos nos importar com ele, mesmo com todos os deslizes do texto, que fragmenta a narrativa consideravelmente, tornando-a bastante cansativa, especialmente nos minutos finais.
O que começou como humor negro, pois, termina como drama, enquanto uma atmosfera mais melancólica toma controle da narrativa, especialmente quando descobrimos mais do passado de Bill e como ele agiu durante trechos de sua vida enquanto casado. Por essa razão, a obra acaba soando um tanto hesitante, indecisa, como já foi falado. O peso da história se torna muito maior no ato final e somos levados para um desfecho para lá de previsível, dispensando as deliciosas doses do inesperado que ganhamos nas primeiras cenas do filme.
Do retrato da ira desgovernada, da manifestação daquelas pequenas raivas que sentimos com questões mundanas de nosso dia a dia, passamos para um drama que não exatamente cumpre seu papel, nos deixando no meio do caminho, sem, de fato, concluir a jornada que começamos quando Bill saiu de seu carro. Somos deixados com uma sensação de vazio, enquanto contemplamos a possibilidade desse filme ser muito mais do que ele, de fato, é - nesse ponto, já quase esquecendo daquelas perguntas sobre as irritantes situações pelas quais passamos ao longo da estressante vida moderna.
Não por isso, contudo, quer dizer que Um Dia de Fúria seja dispensável, ou até mesmo perto disso - ainda é uma obra capaz de nos envolver, por mais que enxerguemos seu potencial desperdiçado. Afinal, não podemos desperdiçar a chance de ver Michael Douglas e Robert Duvall, perfeitos em seus papéis, juntos.
Um Dia de Fúria (Falling Down - EUA/ Reino Unido/ França, 1993)
Direção: Joel Schumacher
Roteiro: Ebbe Roe Smith
Elenco: Michael Douglas, Robert Duvall, Barbara Hershey, Rachel Ticotin, Tuesday Weld, Frederic Forrest, Lois Smith, Joey Hope Singer, Ebbe Roe Smith, Michael Paul Chan
Gênero: Drama, Comédia
Duração: 113 min.
Crítica | Constantine - Adaptação falha das HQs da Vertigo
Criado por Alan Moore, na revista Swamp Thing, em 1985, John Constantine ganhou seus quadrinhos solo, Hellblazer, em 1988, também pelo selo Vertigo da DC Comics. Em 2005, o diretor Francis Lawrence, que anos após trabalharia no ótimo Jogos Vorazes: Em Chamas, tomou rédeas do projeto de adaptação desses quadrinhos. Constantine, não Hellblazer, o filme passou a se chamar, já denotando um possível distanciamento do material original. De fato, o filme, em geral, não é conhecido por ser uma adaptação de quadrinhos, não só pela maior obscuridade da Vertigo, como pela sua linguagem completamente diferente do que vimos nas obras da Marvel ou DC.
Constantine (Keanu Reeves) é uma espécie de exorcista/ caçador de demônios, que preza pelo equilíbrio entre Céu e Inferno na Terra. Sua tarefa é enviar de volta as criaturas que perturbam essa balança, seja através do exorcismo ou de velhos truques envolvendo armas com água benta e crucifixos. A narrativa já nos coloca em um ponto de ruptura do personagem: ele está à beira da morte graças ao seu vício pelo cigarro (que o filme deixa claro desde os primeiros planos). Em meio a tal problema o filho do Diabo busca ganhar passagem para o nosso plano através de uma médium Angela Dodson (Rachel Weisz).
A história foi baseada no arco Hábitos Perigosos dos quadrinhos(#41-46), mas o longa-metragem progride de maneira bastante orgânica, não requisitando do espectador um conhecimento prévio da obra original. Os personagens são inseridos de forma natural, mas sem soar extremamente didática, característica que se mantém ao longo da projeção. O protagonista é um claro exemplo do strong and silent type, um homem taciturno e antipático que prefere se manter alienado das outras pessoas. Reeves consegue transmitir essa ideia sem dificuldade, mas acaba pecando pelo exagero: sua interpretação beira a caricatura, soando extremamente irreal. Trata-se de uma figura que não consegue nos atrair e o que deveria ser uma constante e aparente apatia se transforma em um personagem devoto de emoção, impedindo qualquer identificação com o espectador.
Rachel Weisz, por sua vez, nos entrega uma mulher forte, ainda que em posição de vítima. Conseguimos, nela, observar um convite ao público, um elemento que, enfim, consegue tornar essa narrativa crível. Além disso, é através dela que nos inserimos nesse universo de conflito entre anjos e demônios e o diretor Francis Lawrence a utiliza para construir suas explicações – como dito anteriormente, nada soa didático e a personagem Angela é central para a obtenção dessa característica. A relação entre esses dois indivíduos acaba oscilando entre o desconforto e a proximidade, mas, dificilmente, consegue nos fazer acreditar nela – mais uma vez voltamos à não-atuação de Keanu e a ausência de uma mão mais firme na direção.
Diante dessa evidente quebra de imersão, temos alguns pontos que conseguem nos prender à projeção. O primeiro deles é o sólido trabalho da arte tanto nas ambientações quanto na retratação de cada um dos personagens. Embora tenhamos um uso constante (e algumas vezes excessivo) da computação gráfica, tanto o “mundo real” quanto o Inferno se encaixam perfeitamente no tom da obra, especialmente levando em consideração as tonalidades amarelo-esverdeadas da fotografia. Temos a sensação de uma evidente decadência que muito bem resume o conceito de tanto o Céu quanto o Inferno estarem presentes na Terra. Somado a isso, temos a precisa contratação de Tilda Swinton, que nos entrega um Gabriel, no conceito de androginia dos anjos, que conseguimos acreditar. Infelizmente o cuidado não se estende para o roteiro, que faz mal uso da personagem, gerando um desfecho que soa apressado, finalizando com um plano final politicamente correto que soa nada menos que ridículo.
Constantine conta com seus inúmeros deslizes, que vão de atuações, passando por direção e terminando em um singelo exagero do CGI, ainda assim trata-se de uma obra que diverte o espectador que sabe o que esperar. Pode não ser a adaptação mais fiel dos quadrinhos, mas conta com elementos positivos o suficiente para nos manter presos à narrativa. Por mais que Reeves desaponte no papel principal, o elenco de apoio mais do que dá conta do recado, trazendo uma instigante mistura de ação, noir e terror.
Constantine (idem – EUA, 2005)
Direção: Francis Lawrence
Roteiro: Kevin Brodbin, Frank A. Cappello
Elenco: Keanu Reeves, Rachel Weisz, Tilda Swinton, Djimon Hounsou, Shia LaBeouf, Max Baker, Pruitt Taylor Vince, Gavin Rossdale
Gênero: Drama, Fantasia, Terror
Duração: 121 min.
Crítica | Amantes Eternos - Um Filme Para Ser Sentido
Presentes na história do cinema desde sua origem, a figura do vampiro já passou por inúmeras visões que alteram não só sua forma como o próprio tom de cada obra. Do terror, com Nosferatu, passando por uma abordagem mais intimista como em Quando Chega a Escuridão, até produções mais teen como Academia de Vampiros, os sugadores de sangue parecem ter oferecido tudo o que podiam, gerando uma temática que soa exaurida. Felizmente, vez ou outra, nos pegamos diante de uma obra que nos prova o contrário, exibindo a velha figura vampiresca, mas ainda assim cativando. Este é o caso de Amantes Eternos.
Um plano zenital, com movimentos espiralados, nos joga na história íntima de Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton), mimetizando o movimento de um vinil sendo reproduzido. Essa narrativa de dois amantes, criaturas da noite, já soa caótico desde os segundos iniciais, mas há uma estranha calma dentro de todo esse caos que nos força a uma contemplação imediata. Não há um grande enredo que nos mantenha atento e sim uma atmosfera singular criada pelo trabalho da direção de Jim Jarmusch aliado ao seu elenco cuidadosamente escolhido. Tom encarna a perfeita figura depressiva, um homem fora de seu tempo que não só vê, como se refere à humanidade como “zumbis”, refletindo sua completa separação deste grupo. Do outro lado, temos Tilda na pele de Eve, que visivelmente se vê desconcertada pela falta de motivação de seu companheiro, por mais que, de fato, jamais coloque isso em palavras. Ao longo da obra, porém, se torna praticamente impossível separar ambas as partes, ao passo que constituem uma única peça fundamental dentro da narrativa.
Com diálogos bem escritos, o roteiro, também de Jarmusch, brinca com a figura do vampiro, ao mesmo tempo que constrói as personalidades de seus dois protagonistas. Para tal, utiliza figuras históricas, como Byron e Shelley para definir tão bem o personagem que é Adam, que parece ter sido tirado diretamente das páginas de um ultrarromântico. É o mal-do-século se fazendo novamente presente. Tal depressão, contudo, funciona somente para aproximar os dois amantes seculares, revelando até mesmo um caráter cíclico em suas vidas, um padrão que culmina neste ponto exato onde somos inseridos. Mais uma vez os trabalhos de Hiddleston e Swinton se destacam, nos trazendo uma relação íntima que sustenta o longa-metragem por inteiro. Tanto nos momentos de silêncio, pontuados pela trilha de Jozef van Wissen, quanto nos diálogos, conseguimos nos identificar com ambas as criaturas, passando a partilhar suas angústias tão bem ilustradas na tela.
Com isso em mente, fica impossível não nos remetermos, automaticamente, à obra de Anne Rice, a quem o filme muito deve. Por mais que estejamos diante de vampiros, esta é uma narrativa humana, que foca neste mal-estar constante, chegando a tendências suicidas. A tristeza representada por Adam facilmente nos lembra a de Louis em Entrevista com o Vampiro, cujo constante dilema é tão bem trabalhado durante o livro. As semelhanças, porém, vão além do personagem, se estendendo para o forte tom de solidão presente em ambas as obras. Para solidificar tal característica, a direção de Jarmusch oscila entre planos gerais e closes quando nas ruas, tornando clara a separação entre esses seres da noite e os dois protagonistas. Quando estão juntos, contudo, vemos enquadramentos que captam os dois, fazendo uso de sutis movimentos para não separá-los com os cortes dos comuns planos e contra-planos, que se fazem presentes em pouca quantidade.
Mais uma vez a música ocupa um papel central, nos mergulhando no tão visível afastamento do restante da sociedade. O que mais chama a atenção, porém, é sua aparente diegese, fazendo parecer como se os próprios personagens também escutassem aquelas notas emitidas de um instrumento solitário, em geral do alaúde. Aqui se torna importante ressaltar o paralelo criado – Adam não só exibe uma forte paixão pela música, como é também um músico, tocando em diversas sequências o violão, guitarra e, é claro, o alaúde. A cuidadosa atmosfera, portanto, ganha ainda mais força e, na metade da projeção, já nos submergiu por completo, nos mantendo presos até os segundos finais.
Quando os créditos, enfim, começam a rolar, nos vemos presos em um distinto transe que nos impede de realizar qualquer movimento. Paramos e escutamos aquelas notas da tão pungente trilha, nos recusando a deixar de lado Adam e Eve, duas figuras tão distintas, mas que se tornam um só quando estão próximos. Amantes Eternos é um filme para se sentir, para respirar e ouvir, preferencialmente no escuro. A experiência de assisti-lo sozinho é válida e recomendada, ao passo que permite a ainda maior imersão que a obra provoca, provando, mais uma vez, que os vampiros continuam tão fascinantes quanto nas origens do cinema.
Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive – Reino Unido/ Alemanha/ Grécia, 2013)
Direção: Jim Jarmusch
Roteiro: Jim Jarmusch
Elenco: Tilda Swinton, Tom Hiddleston, Mia Wasikowska, John Hurt, Anton Yelchin, Jeffrey Wright
Gênero: Drama
Duração: 123 min.