Crítica | Magnífica 70 - 2ª Temporada - Exibição Especial

Crítica | Magnífica 70 - 2ª Temporada - Exibição Especial

Além da estreia exclusiva do piloto de Westworld, o Bastidores conferiu o primeiro episódio da segunda temporada de Magnífica 70, uma produção original da HBO Latin America que mostrou-se um dos produtos mais criativos e originais da safra nacional do ano passado. Partindo da premissa empolgante de se ter um agente da Censura levando uma vida dupla como cineasta pornô aspirante, a série

Surpreendendo em seus minutos iniciais, o episódio traz um súbito salto de 18 meses, levando o espectador para um momento distinto onde encontramos os personagens em situações diferentes. Vicente (Marcos Winter) trabalha no roteiro e direção de dois filmes: uma produção ufanista sob ordem do comitê da censura e um longa com pretensões mais artísticas; um serviço tão pesado que discutir consigo mesmo é um hábito comum para o sujeito. Seu sócio Manolo (Adriano Garib) também continua na produção de longas ao lado de Vicente na Magnífica 70, dessa vez lidando com a chegada de seu filho indesejado e um romance com Isabel (Maria Luísa Mendonça). Por fim, temos o retorno de Dora Dumar (Simone Spoladore), que surge viciada em drogas e totalmente desequilibrada para espionar a produção sob chantagem dos militares.

É uma estratégia interessante e moderna que deixa o espectador propositalmente confuso, à medida em que vai se acostumando ao novo setting da série e as situações estranhas de seus protagonistas. O arco de Vicente, em especial, promete trilhar uma jornada de conflito interno semelhante à de Birdman ou as comédias existenciais de Charlie Kauffman, e Winter mantém sua performance sólida e ganha material interessante para trabalhar; sua longa cabeleira agora substitui o cabelo lambido da primeira, e isso por si só já diz muito sobre o personagem e sua constante evolução.

Sua interação com Manolo e Isabel continua divertida, especialmente pelo timing certeiro de Garib e a nova persona que Mendonça traz para Isabel, que surge aqui muito mais forte e interessante. Claro que a trama de Dora quanto a sua chantagem para espionar seus ex-colegas soa um pouco artificial, mas traz um bom vislumbre do que pode tornar-se nos próximos episódios - e Spoladare se sai muitíssimo bem em traçar um retrato decadente, ainda que inevitavelmente magnético, de Dora. A subtrama que envolve o irmão e a chegada da "família" de Manolo soam mais como um filler destoante do que algo realmente construtivo, mas é absolutamente divertido acompanhar as cenas em que todos os núcleos se misturam no set de filmagem, ponto alto da série até então.

Assim como na temporada anterior, deve-se reconhecer o capricho da produção. A direção de arte segue criativa e eficiente em sua recriação dos anos 70, mantendo a estética colorida e vibrante que vimos em longas como Boogie Nights e até mesmo o recente Vício Inerente. A direção de fotografia também abraça o ruído e imperfeição da película para uma experiência que soa nostálgica e de época, tudo novamente sob o comando do diretor Claudio Torres e da produtora Maria Angela de Jesus. Uma série plasticamente perfeita, e acima do padrão de produções nacionais.

Magnífica 70 tem um bom início de temporada e promete manter a mesma linha de eficiência e diversão que sua anterior, levando seus carismáticos personagens a cantos misteriosos e curiosos.

A segunda temporada de Magnífica 70 estreia em 2 de Outubro na HBO, às 22h.


Crítica | Black Mirror - Temporadas 1 e 2

Crítica | Black Mirror - Temporadas 1 e 2

O formato da antologia é uma das formas de narrativa mais vantajosas e eficientes do meio audiovisual. Às vezes, uma história é longa demais para um formato mais curto, ou simples demais para algo que transcenda a definição de longa-metragem ou múltiplas temporadas. Além da Imaginação foi o ápice dessa coleção de histórias, onde cada episódio apresentava uma trama fechada que mantinha a assinatura de Rod Serling ao longo de suas reviravoltas e personagens marcantes.

Agora, ainda que o formato tenha se espalhado por diversas produções da televisão mundial (notavelmente, por Ryan Murphy e seu American Horror Story), a série que carrega o manto de Serling mais honradamente e serve como a definitiva versão contemporânea de sua obra prima é Black Mirror, do britânico Charlie Brooker. O título da série vem da esperta sacada com aparelhos eletrônicos, mas especificamente os smartphones e monitores de computador, já assumindo que sua antologia é centrada na influência da tecnologia na sociedade, jogada em um cenário de ficção científica que flerta com a distopia e o cyberpunk.

Tamanho o sucesso da série, a Netflix lançará uma nova temporada este ano, então é o momento perfeito para conhecer pela primeira vez a criação de Brooker.

Aqui, vamos dar uma olhada nos episódios que compoem as duas temporadas.

1ª Temporada

1 - Hino Nacional

O piloto da série apresenta a trama mais "simples" e contemporânea da série, passando longe de grandes inovações tecnológicas ou ficção científica pesada. Aqui, o Primeiro-Ministro Michael Callow (Rory Kinnear, excelente) é chantageado quando a princesa Susannah (Lydia Wilson) é sequestrada por uma figura misteriosa, que ameaça matá-la a menos que o político vá na televisão ao vivo e faça sexo com um porco vivo.

Isso mesmo. Essa ameaça absurda e os vai-e-vem do governo britânico para evitá-la tomam boa parte de Hino Nacional, que concentra-se principalmente no furor midiático e ameaças invisíveis, que garantem um episódio intenso e corrido nesse quesito. É também a primeira amostra do que é Black Mirror: uma sátira perturbadora que não tem medo de explorar decisões extremas e levar seus personagens aos mais obscuros e bizarros cantos de suas mentes, e por essa linha de raciocínio, não é preciso entrar em território de spoilers para descobrir o que acontece no desfecho do episódio.

O que mais importa, porém, é o motivo pelo qual tudo isso ocorre. O sequestrador tem um ponto a provar, algo digno do Coringa de A Piada Mortal e do John Doe de Seven - Os Sete Crimes Capitais, e é realmente desconfortável assistir ao que ocorre, ainda mais quando temos a revelação dos motivos que levam o soturno antagonista a armar esse circo midiático. Todos os roteiros tem a assinatura de Charlie Brooker, e cada uma das histórias mira um elemento tecnológico para desenvolver sua visão perturbadora.

A mídia aqui é o primeiro alvo, mas Brooker ainda iria mais longe nos episódios a seguir.

2 - 15 Milhões de Méritos

A grande distopia da série, 15 Milhões de Méritos abraça o espírito de George Orwell e Aldous Huxley ao nos apresentar a uma sociedade que está sempre pedalando. Seja assistindo aos mesmos programas de televisão ou jogando os mesmos jogos repetitivos de sempre, todas as pessoas nesse ambiente pedalam em bicicletas a fim de gerar créditos pessoais e energia para a instalação, controlada por autoridades nebulosas. Nunca aprendemos nada sobre o mundo exterior ou algo além, mas fica implícito ser uma realidade alternativa.

Nesse cenário, conhecemos Bing (Daniel Kaluuya), um "pedalante" entediado que acaba se interessando por uma colega, Abi (Jessica Brown Findlay), e parece decidido a ajudá-la a ser selecionada pelas autoridades para participar de um show de talentos popular e escapar da rotina das pedaladas.

Pode parecer uma premissa boba, mas basta pensarmos no incidente com o porco para lembrarmo-nos que Black Mirror tem a capacidade de ser incrivelmente sombrio. Aqui, vem na forma de humilhação pública e a obsessão da sociedade do espetáculo, que é bem representada através do show que é um misto de The Voice e Masterchef, com jurados ainda mais sarcásticos e impiedosos do que os da vida real. A jornada de Bing é outra grande virada do texto de Brooker, que brilhantemente vira do avesso suas intenções de tornar-se um símbolo revolucionário após a irônica conclusão, que revela como absolutamente tudo pode tornar-se comerciável.

Em um nível técnico, é a maior produção de todos os episódios, e que ainda assim, surpreende pela simplicidade. O design de produção de Joel Collins e Daniel May aposta em paletas de cor cinza e imagens chapadas, dando espaço certeiro para todas as gigantescas telas de televisão e adereços simplórios, assim com o figurino de Jane Petrie é sábio em apostar em trajes de moletom para todos os "pedalantes". A direção de Euros Lyn também aproveita bem o espaço para criar enquadramentos estranhos e inventivos, como o plongée invertido para as tomadas do elevador ou as luzes ameaçadoras do gigantesco palco do talent show.

3 - Toda a Sua História

Enter the cyberpunk.

Um dos temas no qual Black Mirror se sai excepcionalmente bem é ao misturar tecnologia com relacionamentos (que renderia outra obra-prima, no premiere da segunda temporada), e aqui somos apresentados a um futuro onde a maioria da humanidade registra todos os seus acontecimentos diários com uma câmera instalada em seus globos oculares - uma tecnologia conhecida como Grain - e os armazena em vídeo, podendo literalmente acessar suas memórias instantaneamente e até mostrar projetá-las em televisores e hologramas.

É o setting perfeito para uma trama de suspense, ação e principalmente, espionagem moderna, mas o que torna este episódio tão especial é o fato de nos concentrarmos no mundano e nas situações cotidianas. Nada mais envolvente do que pegar essa premissa cabeluda e lhe inserir no clássico cenário da traição, no caso a suspeita de Liam (Toby Kebbell) de que sua esposa Ffion (Jodie Whittaker) esteja envolvida com um antigo namorado, Jonas (Tom Cullen).

Essa paranóia e obsessão que lentamente se apoderam de Liam são interessantíssimas, sendo um excelente exemplo de drama humano que ganha força extra através do elemento fantástico. O Grain é um mero instrumento que ajuda a tornar a situação mais extrema e desesperadora, ainda mais quando a narrativa nos surpreende com a dimensão que a história alcança, tendo início de uma observação tão minúscula durante um jantar entre amigos. A performance de Toby Kebbell é fantástica ao transmitir a obsessão quase psicopata de Liam, e somos capazes de ficar ao seu lado mesmo durante os momentos mais sombrios e tristes.

A ideia do Grain é outro elemento sensacional. O recurso de acessar memórias para rever tiques faciais em uma entrevista de emprego, mostrar uma festa incrível para amigos ou o deprimente momento em que Liam e Fion transam enquanto revivem memórias de outros eventos são apenas alguns dos momentos que o fabuloso texto de Brooker nos traz aqui. É também, por incrível que pareça, um dos poucos episódios da série que termina com uma catarse otimista e necessária, ainda mais quando percebemos que o abuso do Grain foi um dos grandes responsáveis pelos problemas dos personagens - na lógica da série, a ignorância seria uma benção para o atormentado Liam.

2ª Temporada

1 - Volto Já

Ainda que todos os episódios tenham uma relação próxima, Volto Já é praticamente uma sequência espiritual de Toda a Sua História. A segunda temporada começa com o pé na porta naquele que definitivamente é um dos melhores e mais envolventes episódios de toda a série, com Charlie Brooker já demonstrando um amadurecimento estilístico e temático muito mais forte aqui.

A história começa nos apresentando ao casal Martha (Hayley Atwell) e Ash (Domhnall Gleeson), que vivem bem quando o moço não está totalmente mergulhado em seu smartphone. Após um acidente, Ash é morto e Martha entra em um processo de luto terrível, o que leva sua amiga a lhe apresentar um aplicativo experimental que permite manter o contato com um falecido. Não exatamente, na verdade, já que o aplicativo coleta todas as informações e dados online que a pessoa um dia compartilhou, criando assim uma cópia comportamental, vocal e até física de seu referencial. 

Basicamente, é uma versão mais dark, complexa e corajosa de Ela - e dado o fato de que este episódio foi exibido no começo de 2013, não duvido que Spike Jonze tenha se inspirado aqui para seu romance sci-fi. É o tema mais delicado que Black Mirror toca até então, com a performance sensacional de Hayley Atwell demonstrando as mudanças em Martha e seus sentimentos complicados em aceitar uma cópia virtual de seu falecido namorado. A relação entre a viúva e o que começa como um mero aplicativo de smartphone é fascinante, com diálogos honestos e inteligentes de Brooker e a direção delicada de Owen Harris garantindo uma experiência marcante.

Por tratar-se de Black Mirror, é de se esperar que a situação tome voltas sombrias, e é justamente o que ocorre quando esta nova versão de Ash começa a revelar suas imperfeições, mas matenho a zona livre de spoilers para um maior aproveitamento do espectador. Resta dizer que é uma história importante, bem contada e imprevisível.

Charlie Brooker em sua melhor forma.

2 - Urso Branco

Se as duas temporadas de Black Mirror fossem Game of Thrones, este seria o episódio 9. O mais ambicioso, grandiloquente e épico de todos os episódios, Urso Branco é também um dos mais chocantes. Quanto menos se souber sobre, melhor. Por isso, tentarei descrever o mínimo possível, mas podemos começar dizendo que tem início quando Victoria (Lenora Crichlow) acorda em uma casa bagunçada sem saber o que aconteceu ou quem é, apenas para ser surpreendida na rua por assassinos a perseguindo enquanto multidões de estranhos acompanham a situação fotografando e gravando tudo em seus celulares.

Temos indícios do que parece ser um "apocalipse de smartphones" quando a situação revela ter desolado uma porção da cidade, e agora Victoria precisará descobrir o que diabos está acontecendo. É uma sensação que toma conta do espectador também, dada a natureza bizarra da situação e os flashes de memória que fornecem pequenas pistas para Victoria, que parece ter lembranças fundamentais para a resolução desse ataque que parece um misto de Uma Noite de Crime com os longas de George A. Romero.

Mesmo que perdidos quanto ao significado de tudo isso, já é brilhante a crítica explícita de Brooker à sociedade do espetáculo e de uma população viciada em seus smartphones e a mania de registrar tudo, completamente alheios ao fato de termos pessoas lutando pela vida em um cenário hostil. É um universo verdadeiramente bizarro que Brooker criou neste episódio, e que definitivamente vai chocar o espectador quando enfim revelar a real natureza de suas ações e eventos, que envolve a presença de um paradoxo perturbador.

Não é um episódio perfeito (ainda que chocante, não é a mais original das reviravoltas), mas é certamente o mais ambicioso e desafiador.

3 - Momento Waldo

 

Mesmo que seja o episódio mais fraco da série, ainda é uma obra de qualidade e muito eficiente em sua proposta. É o episódio em que Brooker finalmente resolve falar um pouco de política, apresentando-nos ao personagem de animação Waldo, que é dublado e atuado via motion capture pelo comediante Jamie Salter (Daniel Rigby). Uma mistura entre o ursinho Ted e os personagens de South Park, Waldo ataca candidatos ao Parlamento inglês durante um período de eleição, e seus discursos chulos e apelativos são tão bem sucedidos que ele próprio acaba tornando-se um candidato inesperado à eleição.

É um episódio que carece do ritmo agitado e das ideias mais mirabolantes que Brooker utilizava tão bem com a ficção científica, tendo aqui como principal elemento do gênero, a animação de Waldo. Há uma questão muito bem trabalhada quanto à personalidade dupla de James e Waldo, assim como seu sentimento de vazio por sua maior realização profissional ser um boneco animado que poderia ser controlado por qualquer um, mas é o mais próximo que temos do espírito dos demais episódios - sem mencionar a sensacional cena pós-créditos, claro.

De resto, Momento Waldo é uma eficiente sátira política. A falácia agressiva e apolítica de Waldo garante momentos hilários, ainda mais pelo fato de termos uma animação interagindo grosseiramente com políticos comportados. A forma como a trama se desenrola, com os produtores do programa de TV do Waldo sendo contactados pela CIA, que veem nisso uma oportunidade nebulosa, garante um dos pontos mais altos do episódio.

Especial - Natal Branco

Que sorriso cínico o showrunner Charlie Brooker deve ter esboçado ao ter sido liberado para fazer um especial de Natal de Black Mirror. De todas as séries por aí, essa é a mais improvável para ganhar um especial dedicado a ceias natalinas, reuniões de família e trocas de presente sobre a luz de uma lareira. Fico feliz que isso de fato tenha acontecido, já que Natal Branco é um desfecho absolutamente excepcional para a fase britânica da antologia.

A história começa com dois homens, vividos por Jon Hamm e Rafe Spall, isolados em uma instalação no gelo. Sem contato com o mundo exterior, os dois preparam uma ceia de Natal enquanto começam a compartilhar contos sobre suas vidas passadas. Primeiro, vemos o passado de Hamm como um misterioso analista de relacionamentos, um orientador que acompanha jovens tímidos via transmissão de vídeo enquanto estes vão a festas conhecer garotas e se dar bem nos flertes. Hamm acompanha tudo por vídeo, enquanto transmite a visão de seu "orientado" para um seleto grupo de outros homens.

A segunda história também é centrada no personagem de Hamm, que relata ao colega seu bizarro emprego. Nele, vemos uma tecnologia conhecida como Cookie, que permite criar uma cópia virtual da mente de uma pessoa, com o único propósito de fazê-la cuidar de tarefas domésticas e organizar a agenda de seu empregador, e os métodos utilizados por Hamm nesse "treinamento" são horrorizantes, e essenciais para o desenrolar do restante da trama. 

Por fim, finalmente o personagem de Rafe Spall se abre. Em sua crônica, vemos a melancólica situação em que sua namorada se viu surpreendida por uma gravidez inesperada. Ainda que Spall fique maravilhado com a notícia, ela o rejeita e o bloqueia de sua vida através de um aplicativo chamado Olho Z, que impede que Spall a veje em absolutamente qualquer lugar, seja pessoalmente ou por fotos, vídeos ou qualquer outro meio virtual com sua imagem.

A melhor maneira de descrever Natal Branco seria compará-lo com uma boneca matrioshka. Cada uma dessas histórias é exibida e narrada numa sequência específica que vão deixando diversas pistas sobre o quadro maior da trama; seja pelo comentário aparentemente vago sobre um relógio na parede ou a própria introdução de todas essas diferentes formas de tecnologia, que convergem-se num clímax impressionante que finalmente esclarece ao espectador o contexto no qual os personagens de Hamm e Spall se encontram. Brooker reclica muitas das ideias exploradas anteriormente, especialmente as de Toda Sua História e Urso Branco, mas nunca soa como uma repetição dado o novo contexto e o ponto de vista alternativo aqui.

Sem dúvida, um dos melhores episódios da série.

Através do Espelho Quebrado...

Black Mirror é algo realmente especial. Não só é o perfeito sucessor e a evolução natural de Além da Imaginação, mas é uma das obras audiovisuais que melhor fez uso de conceitos de ficção científica ambiciosos e que oferece um olhar sociológico necessário e assustador sobre o avanço da tecnologia na Humanidade.

As histórias de Charlie Brooker são criativas e originais, e mal posso esperar para explorar mais desse universo quando a nova temporada chegar na Netlix...


Crítica | Demolidor - 2ª Temporada

Crítica | Demolidor - 2ª Temporada

Acredito que nem a própria Marvel ou a Netflix esperavam o gigantesco sucesso de Demolidor. Tendo uma primeira temporada consistente e que injetava uma dose de visceralidade e temas adultos no universo colorido da editora, a série sobre o Demônio Destemido tornou-se uma das mais bem avaliadas e comentadas do ano passado; literalmente todo mundo falava sobre Demolidor. Não por acaso, uma segunda temporada não planejada foi anunciada dois dias após o lançamento em streaming.

Isso sem falar na ideia ambiciosa de lançar Os Defensores, série que uniria o Demolidor com os demais personagens do pacote Marvel-Netflix, que incluem Jessica Jones, Luke Cage e o Punho de Ferro. Tivemos que passar pela estreia de Jessica Jones antes, mas a segunda temporada de Demolidor chegou com tudo em Março deste ano. Sai Drew Goddard, entra Steven S. DeKnight para assumir o cargo de showrunner, novamente contando com 13 capítulos e uma estrutura narrativa quebrada; ainda que mais linear dessa vez.

Na melhor tradição das grandes continuações de adaptações de quadrinhos, esta nova temporada concentra-se em Matt Murdock (Charlie Cox) lutando para balancear sua vida dupla de advogado criminal durante o dia e vigilante mascarado durante à noite. Seu melhor amigo Foggy (Elden Henson) é o único que sabe de seu segredo, enquanto Karen Page (Deborah Ann Wolf) vai cultivando uma relação cada vez mais íntima com Murdock, colocando em dilema seu alter ego. Tudo piora quando um misterioso assassino parece estar massacrando diversas gangues diferentes por cada canto de Hell's Kitchen, atraindo o Demolidor para uma perigosa investigação, que também lida com alguns fantasmas de seu passado, incluindo o retorno de sua imprevisível ex-namorada Elektra Natchios (Elodie Yung).

Caveira Vermelha

É uma série de arcos muito mais complexos e intrincados do que a temporada anterior, porém, quase todos são mais empolgantes. Como todos sabemos, o assassino misterioso mencionado é Frank Castle (Jon Bernthal), o Justiceiro, e sua entrada na série garante diversos momentos memoráveis. Aliás, essa temporada num geral é muito melhor estruturada do que a anterior, já que nos 5 primeiros episódios temos o Justiceiro como principal "ameaça", para logo depois dar espaço à entrada de Elektra e o subsequente núcleo antagonista do Tentáculo e a volta de Stick (Scott Glenn).

Mas vamos por partes. A começar com Frank Castle. Bem, não é nenhum exagero nem a conquista mais difícil do mundo afirmar que Jon Bernthal seja a versão definitiva do personagem, que teve uma árdua trajetória no cinema com 3 adaptações fracassadas que envolveram Dolph Lundgren, Thomas Jane e Ray Stevenson na pele do vigilante. Bernthal se sai melhor ao abraçar a psicopatia do personagem e a brutalidade de suas ações, tornando-se uma figura muito ameaçadora de início. Porém, vemos o brilhantismo do ator e da equipe de roteiristas quando exploram a ternura do personagem e suas motivações nada absurdas em alguns monólogos.

Há uma interessantíssima discussão de Castle com o Demolidor em um terraço, onde divagam sobre as diferenças em seus métodos e o ato de tirar uma vida ou não (sobrando referência para A Piada Mortal e a questão do "um dia ruim"), levada ainda mais além no excelente episódio Guilty as Sin, quase que inteiramente dedicado ao polêmico julgamento de Castle em um tribunal, levantando questões relevantes acerca do vigilantismo e da pena de morte; é um trabalho dificílimo defender Castle, já que este parece ter prazer em matar.

Porém, voltando à justificativa do personagem, o quarto episódio, Penny and Dime, é capaz de arrancar pequenas lágrimas quando nos deparamos com um monólogo arrasador de Castle, onde compartilha com o Demolidor a história da matança de sua esposa e filha criança pelas mãos de gângsteres. A direção de Pete Hoar é certeira e dedica quase que um plano inteiro para todo o monólogo de Castle, que fica ainda mais poderoso graças à sensacional performance de Bernthal. É de uma profundidade emocional que não havíamos encontrado em muitas adaptações de quadrinhos por aí.

Presente de grego

O Justiceiro era apenas uma das grandes promessas da segunda temporada. A outra, claro, residia na forma de Elektra, outra icônica personagem do leque de histórias do Demônio de Hell's Kitchen. Vale lembrar que a assassina já havia ganhado um filme solo com Jennifer Garner em 2005, mas agora vamos esquecer imediatamente daquela bomba e nos concentrar na interpretação de Elodie Yung para a companheira de Murdock. Surgindo no ótimo cliffhanger de Penny and Dime, Elektra surge para requisitar a ajuda de Matt em uma missão nebulosa que está diretamente ligada ao Tentáculo, uma organização ninja milenar que planeja um ataque sem precedentes na cidade de Nova York.

A partir daí, temos encontros e desencontros onde Matt procura evitar o contato com a poderosa femme fatale. Através de flashbacks em Kinbaku e The Dark at the End of the Tunnel, conhecemos o início da relação de Matt e Elektra, assim como o passado amoroso que logo transformou-se em uma situação assombrosa quando o instinto assassino e sádico da jovem grega acaba por afastá-los. A grande coincidência é que, quando criança, Elektra também recebeu treinamento de Stick, o que gera reviravoltas instigantes durante a conclusão da temporada.

No geral, Yung agrada pela sensualidade que confere a Elektra. Seu sotaque exótico e feições mestiças tornam sempre empolgante sua presença em cena, que garante ótimos momentos como uma luta em conjunto com o Demolidor em seu luxuoso apartamento em Kinbaku e, principalmente, o excelente mini arco que se desenrola em Regrets Only, onde Elektra e Matt devem se infiltrar em um baile de gala a fim de invadir um escritório fortemente protegido e roubar arquivos relacionados ao Tentáculo. Sob a direção de Andy Goddard, o episódio traz fortes ecos de Batman - O Retorno e O Cavaleiro das Trevas Ressurge, tanto pelo fato de os heróis trajarem vestimentas de gala ou pela belíssima fotografia amarelada de Martin Ahlgren.

Ninjas, Ninjas, Ninjas...

Com tudo isso, parecia que a segunda temporada de Demolidor poderia ser ainda melhor do que seu já ótimo ano de estreia. Mas é aí que começam os problemas. É no episódio 10, The Man in the Box, que a organização do Tentáculo enfim se assume como o grande antagonista da temporada - em ambos os sentidos, ironicamente. Dessa forma, a série fica presa a uma entediante repetição de temas e oponentes, insistindo em enfiar lutas com ninjas em quase todos os episódios seguintes e até trazer a ridícula ideia de um buraco gigante de onde saem mais ninjas e suas respectivas versões imortais e invencíveis, incluindo a volta de Nobu. É divertido ver uma luta de ninja aqui e ali, mas torna-se maçante e repetitivo, e isso também se deve à nítida queda de qualidade nas cenas de ação, que foram o grande acerto da temporada anterior.

Marcada pela famosa luta em plano sequência do corredor na primeira temporada com Cut Man, os idealizadores se viram na terrível cilada do "maior e melhor" e inventaram uma sequência de briga absurdamente elaborada no episódio New York's Finest, trazendo o Demolidor enfrentando uma série de oponentes em um plano longo falseado que passa por corredores, escadas e portas. É algo que certamente exigiu um trabalho pesado da equipe de dublês, mas que em cena surge completamente over the top e abaixo da simplicidade impressionante do confronto visto no ano passado.

As inúmeras batalhas com ninjas também causam bocejos, ainda mais pelo fato de a fotografia surgir ainda mais escura e a coreografia ser genérica, tendo apenas como exceção a "luta de silhuetas" de Matt e Elektra dentro de uma sala colorida em Regrets Only e, claro, a violentíssima cena em que o Justiceiro encara um corredor inteiro de prisioneiros em uma armadilha na cadeia. Impressiona menos pela coreografia do que pelo valor de imagem: Bernthal com suas roupas brancas completamente ensaguentadas é um dos ícones absolutos desta temporada.

Falta um oponente icônico e imponente como o Rei do Crime de Vincent D'Onofrio, que tem uma curta e memorável participação durante o arco de Castle na cadeia. Basta notar como um aparentemente "inofensivo" Wilson Fisk em sua cela é mais ameaçador do que qualquer outro oponente nebuloso e sem graça que Murdock enfrenta aqui. Justamente por isso, é mais interessante observar suas relações com Foggy e Page. A dualidade de sua vida como vigilante acaba por destruir sua amizade com Foggy, rendendo ótimas cenas entre Charlie Cox e Elden Henson, e também pelo envolvimento romântico entre Murdock e Page, algo que acaba um tanto inconsistente ao longo da temporada, mas que rende bons momentos como o "encontro" em Penny and Dime - sim, é de longe o melhor episódio da temporada, não é à toa que está sendo tão mencionado.

A segunda temporada de Demolidor traz muitos aprimoramentos em relação à primeira, na mesma medida em que traz deméritos. A forma de intercalar as histórias e seus personagens surge infinitamente superior aqui, dando uma boa ênfase no conflito interno do protagonista e o destaque merecido às figuras de Justiceiro e Elektra. Deixa a desejar no quesito de ação e na artificialidade de sua organização antagonista, que acaba fadada a repetir temas e elementos.

Ei Netflix, menos ninjas da próxima, por favor.

Demolidor - 2ª Temporada (Daredevil - Season 2, EUA - 2016)

Showrunner: Steven S. DeKnight
Direção: Pete Hoar, Andy Goddard, Phil Abraham, Stephen Surjik, Ken Girotti, Euros Lyn, Marc Jobst, Floria Sigismondi, Michael Uppendahl
Roteiro: Whit Anderson, Sneha Koorse, Douglas Petrie, Marco Ramirez, Steven S. DeKnight, Lauren Schmidt, John C. Kelley, Mark Verheiden
Elenco: Charlie Cox, Deborah Ann Wolf, Elden Henson, Jon Bernthal, Elodie Yung, Vincent D'Onofrio, Rosario Dawson, Scott Glenn, Peter Shinkoda
Emissora: Netflix
Episódios: 13
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 50 min aprox

https://www.youtube.com/watch?v=-KGftw5LZqM

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Crítica | Preacher - 1ª Temporada

Crítica | Preacher - 1ª Temporada

Nunca li nenhuma edição da popular série de quadrinhos Preacher, criação de Gareth Ennis para o selo Vertigo da DC, mas basta uma espiada na orelha da capa ou um breve sumário da história para se dar conta de que é um material bastante controverso; ainda mais para ganhar uma adaptação audiovisual - e 10 vezes mais se estamos falando de uma para a televisão aberta. Mas é isso que os showrunners Seth Rogen, Evan Goldenberg e Sam Catlin partiram para fazer no final de 2013, e com a primeira temporada da série ganhando vida pela AMC só agora em 2016, temos um dos programas mais únicos e diferentes de toda a grade de programação.

Mesmo não conhecendo bem os quadrinhos, sei o suficiente para ter a noção de que muita coisa foi modificada nesta adaptação, então me manterei centrado apenas na história destes 10 episódios. Ela começa quando a entidade conhecida como Gênesis, o fruto de uma cria proibida entre um Anjo e um Demônio, escapa do Céu e cruza a Terra em busca de um hospedeiro. Ela encontra um na forma de Jesse Custer (Dominic Cooper), um pastor do Texas que busca honrar o legado de seu pai ao tocar a pequena igreja de sua cidadezinha enquanto constantemente luta para apagar seu passado criminoso, que está sempre batendo à porta na figura de sua persistente ex-namorada Tulipa O'Hare (Ruth Negga). Quando o Gênesis entra no corpo de Jesse, ele ganha a misteriosa habilidade de controlar outros a seu redor, que obedecem todas as palavras que saem de sua boca.

Una isso ao fato de termos o vampiro irlandês fanfarrão Cassidy (Joseph Gilgun), a dupla de Anjos Fiore e DeBlanc (Tom Brooke e Anatol Yusef) e o inescrupuloso empresário Odin Quincannon (Jackie Earle Haley) e temos o palco armado para uma narrativa incomum e que constantemente surpreende o espectador com sua inventividade e ideias completamente fora de série. É um leque de personagens tão carismáticos e divertidos que parecem ter saído das mentes de Quentin Tarantino e dos Irmãos Coen; que são mencionados o tempo todo, aliás.

O problema é que essa temporada poderia ter sido resolvida em 5 episódios e o efeito seria o mesmo. A plot que envolve Tulipa desesperadamente tentando convencer Jesse a se juntar a ela e dar cabo em um ex-parceiro que os queimou em um antigo serviço é arrastada e dá voltas e voltas até chegar no mesmo ponto de partida, como bem evidenciado na decepcionante mudança de opinião de Jesse ao final do terceiro episódio. O fato de a trinca de Jesse, Tulipa e Cassidy funcionar tão bem chega a ser irritante pela inabilidade dos produtores em unirem suas histórias, rendendo um tremendo desperdício de potencial; Jesse e Tulipa, Tulipa e Cassidy e Jesse e Cassidy são as combinações, mas nunca temos o trio que, acredito eu, possa tornar-se um dos mais memoráveis da Televisão.

Mas felizmente Preacher consegue entreter, mesmo quando nitidamente preso em uma narrativa que não anda pra frente e sofre com o efeito "enchimento de linguiça". A começar por Jesse Custer, a quem Dominic Cooper fornece uma performance carismática e na medida certa, como um sujeito problemático que reage de formas curiosas aos diversos eventos sobrenaturais que batem a sua porta. A dinâmica do Pastor e sua habilidade do Gênesis rendem ótimas situações, como a antológica cena em que ameaça um agressor no banheiro de um posto de gasolina, o conselho de "abrir o coração" e até a inesperadamente sombria reviravolta em que, acidentalmente, manda um dos personagens ir ao Inferno - para seu azar, o Gênesis não é muito bom com metáforas.

Tudo melhora com os personagens que rodeiam Jesse, a começar pelo mais sensacional vampiro que tive o prazer de conhecer nos últimos anos. Vivido por Joseph Gilgun com intensa ironia e um sotaque acertadíssimo, Cassidy garante momentos de humor negro hilários, desde referências ininterruptas à cultura pop ("O Grande Lebowski é superestimado!"), um talento especialmente notável para a carnificina e hábitos estranhos - genial a ideia deste o tempo todo se esconder do sol com chapéus enormes e protetores solares -, Cassidy é o ponto alto absoluto e rende uma dinâmica fantástica com Cooper.

Já Ruth Negga é prejudicada pelo arco fraquíssimo no qual Tulipa é inserida aqui, que fica no vai e vem de convencer Jesse a lhe ajudar em sua missão - pra se ter ideia, em um episódio a personagem é tão jogada que ela passa todas as cenas cuidando de um cachorro, sem mais nem menos. Isso quase afeta a excelente performance de Negga, que faz de Tulipa uma criança crescida que acabou por tornar-se uma badass, vide sua memorável introdução no primeiro episódio e todas as cenas na qual ela é forçada a interagir com os amigos de igreja de Jesse, o que inclui uma relação de inimizade e ciúmes com a Emily de Lucy Griffiths. Negga é excelente, só queria que ela tivesse mais o que fazer aqui.

Outro personagem coadjuvante que acaba por render algumas das melhores cenas da série é o garoto Eugene Root (Ian Colletti), infamemente apelidado de Cara de Cu, graças à sua horrenda deformação na boca que fora provocada por uma tentativa de suicídio. É um personagem que provoca extrema empatia e dó pelo bullying e agressividade com que sofre constantemente, fruto também da ótima performance de Colletti, que consegue transmitir o medo e insegurança de Eugene mesmo com os quilos de maquigem em seu rosto; cuja voz abafada ganha até mesmo legendas em inglês. Aliás, um dos momentos mais belíssimos da série é quando Eugene passa a ganhar uma redenção por parte das outras crianças da escola (fruto do poder do Gênesis), que o surpreendem com um intimista show de fogos de artifício.

Grande surpresa também a competência de Seth Rogen e Evan Goldenberg. Quem conhece o trabalho da dupla, que é composto majoritariamente de comédias stoner e nonsense, jamais pensaria que seriam capazes de tirar do chapéu uma série com cenas de ação consistentes e uma estética visual que impressiona a cada episódio. Claramente inspirados no trabalho de Vince Gilligan em Breaking Bad (temos referências a Albuquerque, a presença do compositor Dave Porter e até o uso do mesmo cenário do icônico episódio Ozymandias), a dupla impressiona pelas composições criativas e a paleta de cor que privilegia o verde e a temperatura de cor mais quente, algo diretamente relacionado à geografia da série e as misteriosas cenas que envolvem um cowboy que aparentemente não tem nenhuma conexão com o restante da série... Até o NONO episódio nos revelar de forma brilhante qual é seu papel aqui.

Rogen e Goldenberg ainda mostram seu talento para ação em duas sequências do primeiro episódio. Uma delas envolve Jesse enfrentando um grupo de arruaceiros em uma brutal briga de bar, que surpreende justamente por mostrar as até então desconhecidas habilidades de luta do protagonista. A outra, claro, traz o vampiro Cassidy em uma situação que começa como uma festa social em um avião em pleno ar com um bando de estranhos, apenas para que tudo se revele como uma armadilha destes para capturá-lo. O que se segue é uma pancadaria muito bem coreografada e montada, e ainda divertida por contar com a sagacidade de Gilgun.

A série contina a impressionar no quesito quando tivemos a luta entre Cassidy e os Anjos Fiore e DeBlanc dentro de uma igreja em See, que envolve um bizarro ritual e membros sendo decepados por motosserras. Se isso já não fosse o maior gore da série, ela se supera em Sundowner, onde Guillermo Navarro traz toda a sua habilidade sangrenta de Hannibal para um confronto inusitado e completamente ousado entre Jesse, Fiore, DeBlanc, Cassidy e um outro Anjo que é enviado atrás do grupo. Sempre que um dos Anjos morre, outro corpo se manifesta e assim por diante, rendendo uma carnificina inesperadamente divertida e sensacional, ainda mais pelo plano em que Navarro coloca a câmera através de um buraco na parede. O plano final com todos os corpos "descartados" é marcante.

Então, chegamos ao episódio final da temporada. Não quero entrar em spoilers, mas é certo dizer que Rogen, Goldenberg e Caitlin tomaram uma decisão radical que certamente vai irritar muitos e agradar outros. É uma reviravolta narrativa que imeditamente dá um novo início à série, que agora promete seguir uma plot mais similar à da HQ, onde a trinca de Jesse, Cassidy e Tulipa embarcam em uma road trip surreal.

A primeira temporada de Preacher peca pela inconsistência e o ritmo enrolado de seus primeiros episódios, mas torna a visita muito agradável e divertida graças a seu inacreditável leque de personagens e as ideias brilhantes que traz da HQ de Gareth Ennis. Fica a torcida para que a já anunciada 2ª temporada faça um uso ainda melhor e mais satisfatório destes.


Crítica | The Night Of traz retrato cruel e realista sobre sistema penitenciário e jurídico

Crítica | The Night Of traz retrato cruel e realista sobre sistema penitenciário e jurídico

Foi um ano turbulento para a HBO. Claro, a badalada emissora de televisão a cabo teve seus números estratosféricos e a fanbase habitual com a sexta temporada de Game of Thrones, mas sofreu com a decepção de sua caríssima e ousada principal estreia, Vinyl, que acabou cancelada mesmo depois de ser renovada. A ausência da terceira temporada de True Detective, que no momento encontra-se em uma caixa de Schrödinger que parece nunca ser aberta, também deixou a HBO com algo a mais faltando. Ainda há a estreia da promissora adaptação de Westworld para Outubro, mas até o dia chegar, a minissérie The Night Of surge para salvar a programação e oferecer uma das mais eficientes e inteligentes peças audiovisuais de 2016.

Inspirado na minissérie britânica Criminal Justice, a história começa com o estudante paquistanês Nasir Khan (Riz Ahmed), que certa noite pega escondido o táxi de seu pai para uma festa. No percurso, dá carona para a jovem Andrea (Sofia Black-D'Elia), com quem acaba eventualmente saindo para um passeio e acaba em uma noite de sexo e drogas. Algumas horas depois, Nasir acorda e a garota está morta, e ele não tem lembrança alguma do que aconteceu, sendo preso com a arma do crime e embarcando em uma longa e tortuosa jornada pelo sistema judiciário americano.

É uma narrativa que explora minuciosamente cada etapa do processo, desde a prisão de Nasir até a condenação, os exames, transferências, julgamentos e custódias. É normalmente a porção de histórias que seriados de "caso da semana" e filmes policiais costumam eliminar por elipses e passagens temporais, e são elementos que definitivamente podem cair na monotonia caso não executados de forma engajante. Felizmente, temos o guru Steven Zaillian como diretor da maioria dos episódios e Richard Price na função de roteirista. Juntos, a dupla também é responsável por tocar o barco no setor criativo da série; em outras palavras, showrunners.

Zaillian, nome que normalmente associaríamos a um cargo de roteiro, é responsável pela direção de 7 dos 8 episódios (o outro crédito vai para James Marsh, que comandou o 4º episódio), e eu sinceramente espero que ele mantenha atuação no ofício. A mise em scene de Zaillian é clássica e elegante, com um uso mínimo de câmera na mão e uma abundância de planos longos onde encontramos o fundo desfocado para concentrarmo-nos em seus personagens. A paleta de cores frias e cinzenta da fotografia de Frederick Elmes, Igor Martinov e o grande Robert Elswit (que fotografou o primeiro episódio) é eficiente também em transportar o espectador para esta Nova York claustrofóbica e opressora.

Todos os episódios foram escritos por Price, cuja prosa é inteligente e envolvente, trazendo um trabalho de criação e desenvolvimento de personagens virtualmente perfeitos. A começar por Naz, que protagoniza o arco mais transformador da narrativa. De garoto assustado e ingênuo, o processo criminal o faz esperar o julgamento em uma prisão, onde o ambiente e as diferentes figuras ali acabam forçando-o a adaptar-se para sobreviver, fazendo com que aquela figura frígida e indefesa de Naz no início da série torne-se algo mais ameaçador e durão. Aliás, essa metamorfose é pivotal para o grande senso de dúvida que a série provoca no espectador: nem nós nem o próprio Naz têm certeza de sua inocência. Tudo o que havíamos visto até então apontava para um caso de injustiça, mas as mudanças físicas e psicológicas do personagem revelam uma natureza interior muito diferente e perigosa. 

Todo esse núcleo na cadeia transformam The Night Of em uma série diferente. Quase uma variante de Oz, tais cenas revelam o incrível talento de Riz Ahmed, ator britânico com origem muçulmana que rapidamente vai conquistando espaço em Hollywood (começou como o assistente de Jake Gyllenhaal em O Abutre e agora é um dos rebeldes de Rogue One: Uma História Star Wars). Seu Naz é uma figura cativante e pela qual é fácil de se torcer, mas a transformação na cadeia que provoca a ambiguidade no espectador é o principal mérito do ator, favorecido pelas tatuagens e a cabeça raspada. Porém, mesmo diante das suspeitas, Ahmed nunca permite que Naz torne-se um monstro, e nunca paramos de torcer para que o personagem seja de fato inocente.

E então chegamos a John Torturro. Depois de se submeter a participações hediondas nos Transformers de Michael Bay e algumas comédias não muito memoráveis, o ator ganha um personagem sensacional e repleto de camadas para explorar. Jack Stone é um advogado de porta de cadeia que ganha a vida negociando para o menor tempo de pena possível para seus clientes - que em 90% dos casos são culpados. Mas eis que Stone acredita na inocência de Naz e acaba por torná-lo o caso mais importante de sua carreira, e a performance de Torturro é impecável ao balancear a determinação e, ao mesmo tempo, melancolia do personagem. O fato de este passar toda a temporada enfrentando uma infecção nos pés - forçando-o a usar sandálias nada atraentes - é um fator importante para diminuir sua estima, além de ser uma subtrama que constantemente reflete seu progresso no caso; como uma súbita melhora ou uma crise de coceira terrível.

O elenco de apoio não decepciona. Bill Camp explode como o sargento Box, responsável pela investigação de Naz. Descrito pelo próprio como "uma fera sutil", Camp é eficaz ao explorar os anos de experiência e o cansaço de Box, mas também seu compromisso ininterrupto com o senso de justiça, que o mantém ativo na investigação mesmo após sua inevitável aposentadoria. Quem ganha o rótulo de fera sutil é Box, mas não tenho dúvidas de que a figura mais afiada e ácida ali seja a da promotora testa-de-ferro Helen Weiss. Jeannie Berlin lhe injeta muito sarcasmo e uma segurança quanta a facilidade de seu caso (reparem como ela nunca se exalta e jamais parece cogitar a possibilidade de sua derrota) que chegam a provocar pavor pelo destino de Naz. E, novamente, Weiss também não é reduzida a um mero estereótipo antagônico - sua ação durante o final do julgamento é absolutamente brilhante, além de provocar um irônico paralelo com o arco de Jack Stone.

Temos ainda a surpreendente Amara Karan, atriz novata que interpreta a igualmente novata advogada Chandra Kapoor, designada como advogada de defesa para Naz ao lado de Stone. Se a Weiss de Jeannie Berlin traz toda a segurança de forma natural, vemos nas expressões delicadas de Kapoor seu esforço para manter-se à altura de seus colegas de trabalho e sua determinação para triunfar no caso, em um trabalho realmente memorável de Karan. E ainda que tenham papéis menores, Peyman Moaadi e Poorna Jagannathan têm ótima presença como os pais de Naz, que ganham um tempo considerável para desenvolverem seus pequenos dramas - a mãe com o medo de seu filho ser culpado, o pai com a preocupação de garantir a estabilidade da família após uma onde de ataques racistas.

Por fim, um pouco sobre um dos melhores e mais complexos personagens da série: o Freddy de Michael Kenneth Williams. Líder de uma das gangues mais poderosas da penitenciária Rinkers, Freddy logo acolhe Naz e o guia para tornar-se um de seus companheiros e ajudá-lo a sobreviver em um ambiente hostil. Freddy é uma figura sábia e inteligente, sempre trazendo citações de obras como A Arte da Guerra e oferecendo pequenas palavras de sabedoria que ajudam a envolver o espectador durante o arco da prisão. Definitivamente um personagem que gostaria de rever, e a performance de Williams é chave para que Freddy torne-se uma figura tão fascinante.

The Night Of funciona como um longo e eficiente longa-metragem de 8 horas. Há um desenvolvimento narrativo e estrutura de atos essencialmente cinematográficos, beneficiando-se de um elenco inspirado, personagens marcantes e um cuidado estético impressionante.


Review | Batman Begins: O Jogo

Review | Batman Begins: O Jogo

Quando Batman: Arkham Asylum deu início à excelente franquia de games da Rocksteady, um dos grandes elogios da aventura stealth do homem-morcego era o de que finalmente era lançado um jogo decente baseado no personagem. E ainda que a série definitivamente seja o melhor material da área baseado em propriedades da DC, é injusto que a adaptação da EA Games de Batman Begins para Playstation 2, GameCube, PC e Xbox seja tão pouco lembrada, dado seu notável nível de qualidade e a forma como foi crucial para o nascimento da franquia Arkham.

O jogo segue uma estrutura simples de fases e chefões, sem a possibilidade de mundo aberto. As missões expandem os acontecimentos de Batman Begins mas preservam a mesma história, trazendo até mesmo grande maioria do elenco original do filme para as funções de dublagem. São sete fases que incluem jogabilidade com Batman e Bruce Wayne em 3ª pessoa e outras duas que deixam o espectador brincar com o poderoso e veloz batmóvel Tumbler apresentado na mitologia de Christopher Nolan.

Assim como a narrativa do filme, o grande aprendizado do jogador é a manipulação do medo nos inimigos a fim de derrotá-los e bolar estratégias baseadas no modo stealth, grande herança que o game deixaria para a vindoura série Arkham. Durante diversos momentos nos deparamos com situações em que inimigos armados tornam o combate direto mais difícil (mas não impossível, se stealth não é muito a sua praia), então o jogador tem a opção de explorar o ambiente a seu redor para encontrar uma forma de desarmá-lo e apavorá-lo; aliás, a reputação de Batman e o medo provocado por este na área são duas barrinhas de energia que vão preenchendo-se ao longo das missões.

Olhando agora em 2016, obviamente os gráficos sofreram um envelhecimento notável, mas ainda assim é possível encontrar um trabalho decente ali, ainda mais se estivermos analisando dentro do contexto de 2005, quando o game fora lançado. As faces digitais de Christian Bale, Liam Neeson, Michael Caine, Cillian Murphy e todos os diversos outros capangas e coadjuvantes são convincentes e certamente de ótimo nível para algo de mais de uma década. Todos mantém um trabalho consistente com suas respectivas performances no filme, e é sempre bom ter mais da voz grossa e ameaçadora de Bale como o Cavaleiro das Trevas.

O que ainda impressiona, porém, é o nítido esforço dos departamentos de arte para a criação dos diversos cenários por onde o game passa. Seguindo de perto a paleta de cores do diretor de fotografia Wally Pfister (pasmem, que tem uma divertida cameo dentro do jogo) e do designer de produção Nathan Crowley, a equipe da EA abraça o aspecto sujo e perigoso dessa Gotham City moderna e realista, permanecendo ainda imersiva a atmosfera fria e as cores amareladas do skyline da cidade, dando um bem-vindo passo além ao expressionismo daquele mundo criado em 2005. Locações como o Himalaia na fase de treinamento e as corridas noturnas com o Batmóvel são hábeis em simular um mundo expansivo que não existe, mas o grande destaque fica para os diferentes locais criados na fase Gotham City (que colocam Batman em um luxuoso hotel da Máfia, museus abandonados e muitas áreas de construção) e o incrível nível de detalhes para o Asilo Arkham, que ganha uma expansão muito envolvente e surge palpável e realista, respeitando as regras do universo.

Quanto à jogabilidade, é uma mecânica simples, mas eficiente. Os combates são simples e não exigem tanto do jogador (ainda que o modo Challenge seja consideravelmente complicado nesse quesito), e é bacana observar como os animadores criaram os movimentos e golpes baseando-se em ações de lutadores reais, sendo possível identificar estilos de luta distintos ali. É uma pena que os combos acabem sendo repetitivos e limitados, e o modo de intimidação do personagem acabe tornando-se cansativo após certo ponto. O game também carece de boas batalhas com chefões de fase, já que tanto Ra's Al Ghul quanto o Espantalho revelam-se adversários tão descartáveis quanto seus capangas.

Já as duas fases com o Batmóvel nos dão a sensação de um mundo aberto sandbox, mas o veículo segue firmemente uma rota já estabelecida pelo sistema. Porém, o carro é divertido de ser operado e os roteiristas são capazes de inventar boas missões durante as fases, que incluem perseguir e interceptar caminhões e carros da Máfia, fugir de luzes de helicópteros policiais e algumas missões de tempo que são facilitadas pelos muitos ativadores de boost espalhados pelo mapa. Só é estapafúrdio que o jogo nos faça acreditar que usar o Batmóvel como arma para estraçalhar carros não provoque diversas vítimas por aí, mas isso deixo pro Batfleck responder...

Tendo derrotado o jogo em uma campanha de aproximadamente 8 horas, não há muito o que se explorar. O game libera 3 diferentes trajes do Batman que podem ser utilizados em novas campanhas, trechos do filme que servem como cutscenes, duas missões extras com o Batmóvel (que também ganha uma nova variante, no caso a do protótipo) e um informativo making of em 6 partes que nos leva para o desenvolvimento e criação do game. Há também a chamada "Galeria do Medo", onde vemos todos os principais antagonistas do jogo confinados em celas do Asilo Arkham, na qual podemos visitar e recolher informações sobre cada um

Batman Begins é um jogo divertido e que garante ao jogador bons momentos na roupa do Cavaleiro das Trevas, sendo um importante precursor para a série Arkham e que definitivamente merece ser lembrado e até revisitado


Crítica | Demolidor - 1ª Temporada

Crítica | Demolidor - 1ª Temporada

Depois de conquistar os cinemas com seu universo cinematográfico que culminava em Os Vingadores, a Marvel Studios começava a expandir seus horizontes no audiovisual. Já tendo a iniciado a regular série Agents of S.H.I.E.L.D. e o projeto do que viria a se tornar Agent Carter na emissora americana ABC, a Casa das Ideias agora miraria na cada vez mais poderosa Netflix, que assinava um contrato de no mínimo 4 séries com o estúdio de quadrinhos.

Um conteúdo que divergiria bastante daquele que acompanhávamos nas aventuras coloridas e bem humoradas do cinema, que adotariam um tom soturno e realista no serviço de streaming, ainda que interconectadas com o quadro geral idealizado por Kevin Feige. A primeira série desse contrato seria um reboot de Demolidor, personagem cujos direitos enfim retornavam à Marvel Studios após a tentativa fracassada da Fox de lançar uma franquia com Ben Affleck e Jennifer Garner em 2003.

A chave para ressuscitar o personagem toma muita inspiração do processo que Christopher Nolan realizou com maestria com o Cavaleiro das Trevas em Batman Begins: sombrio e realista. A série de 13 episódios trouxe Drew Goddard para atuar como showrunner e apostou em uma abordagem adulta e que ecoa a fase em que o personagem passou pelas mãos de Frank Miller, a começar pelo uniforme ninja e o tom mais violento que acabou mais adequado à Netflix do que o cinema - ainda que não seja algo digno de uma censura de 18 anos, seu conteúdo é consideravelmente mais gráfico do que aquele que vemos no cinema do gênero.

Assim, a trama da série nos apresenta aos primeiros dias de Matt Murdock (Charlie Cox) em sua identidade vigilante no bairro de Hell's Kitchen, Nova York. Nos primeiros minutos já conhecemos a origem de sua cegueira e a manifestação de suas habilidades aguçadas em breves flashbacks, que acabam se alongando pelo restante da temporada, e seu humilde começo como advogado na firma que inicia com seu melhor amigo, Foggy Nelson (Elden Henson) e o caso inicial que os une com sua futura sócia, Karen Page (Deborah Ann Wolf). À noite, Murdock atua como um vigilante mascarado que vai pouco a pouco caçando criminosos e limpando a cidade de atividades ilícitas, seguindo uma trilha perigosa que o leva de encontro ao maior gângster da região: Wilson Fisk (Vincent D'Onofrio), o Rei do Crime.

É uma história de origens, mas cujo formato se difere um tanto pelo constante uso de flashbacks (chegaremos neles em breve), algo que pode ser justificado pelo próprio formato de narrativa seriada; um piloto de TV certamente exige que vejamos o herói uniformizado logo de início, o que adianta de certa forma os eventos e acelera algumas relações introdutórias de personagens - especialmente pela entrada de Page, logo no início.

Mas as decisões de Goddard aqui são quase todas acertadas. A influência do trabalho de Nolan é sentida fortemente aqui, desde a abordagem realista para introduzir seus personagens e conduzir as cenas de ação até o visual que abraça a escuridão e tons pastéis mais alaranjados - decisão que pode tornar-se um demérito graças ao trabalho demasiado escuro dos diretores de fotografia, que iluminam algumas cenas a ponto de tornarem-se incompreensíveis. Porém, isso garante uma atmosfera dark que é muito interessante de se mergulhar e explorar, tornando um lado diferente de Nova York que revela-se propício a seus habitantes nada simpáticos.

A escolha de Charlie Cox para Matt Murdock é brilhante. A começar pelo incrível trabalho do ator inglês em fazer um sotaque americano absolutamente impecável e seu desempenho formidável como um sujeito cego, o que exige sutilezas em seus músculos faciais dignas de reconhecimento. A dualidade do personagem também traz uma fúria impressionante do ator, que surge ameaçador na roupa preta inicial do Demolidor, ao mesmo tempo em que a doçura e leveza de Murdock nas cenas com Foggy e Page criam um interessante contraponto.

Mas talvez seja na figura do vilão que reside o grande ponto alto da série. Wilson Fisk pode muito bem ser o melhor antagonista que qualquer produção com o selo da Marvel já transportou para o audiovisual, criando um sujeito que é capaz de provocar genuíno pavor com sua brutalidade e a impecável performance de Vincent D'Onofrio. Os tiques faciais e a voz grave de D'Onofrio sugerem um homem que parece prestes a explodir de nervoso - e pavor - a cada segundo, sendo chocante ver os momentos em que o personagem enfim sucumbe a seus instintos violentos. Por outro lado, a série é inteligente por lhe garantir uma subtrama amorosa visceral e bem contada, além de um episódio de origem que corajosamente explora a infância perturbadora de Fisk com eventos e imagens realmente memoráveis. Um acerto gigantesco, sem dúvida.

Outro fator pelo qual a série ficou marcada é a qualidade de suas cenas de ação, que oferecem momentos que nunca havíamos visto no gênero antes. Tomando inspiração do estilo de luta adotado em produções como Operação Invasão, a pancadaria de Demolidor é visceral e convincente, apostando em combates corpo a corpo críveis e até alguns confrontos com ninja que mantém o pé no chão mesmo apostando em elementos mais fantásticos; como um terno incapaz de ser cortado por lâminas samurai. Mas o ponto alto no quesito é certamente a já icônica cena do corredor que finaliza o episódio Cut Man, onde um inacreditável plano sequência de 9 minutos nos leva em um embate do protagonista com um número muito maior de inimigos em um apertado corredor. É uma cena incrível que traz fortes ecos de Oldboy, ao mostrar seus lutadores cansados, cambaleando e até dando pequenas "pausas" antes de voltarem à porrada. Aplausos merecidos para a direção primorosa de Phil Abraham.

Outras sequências que definitivamente merecem destaque incluem outro plano longo envolvendo panorâmicas, dessa vez quando estamos no interior de um táxi acompanhando um chinês cego cantando, enquanto vemos a figura soturna do Demolidor surgir e arrebentar com criminosos ao passo em que a câmera vai girando e a cantoria serene do chinês dá o tom ideal. Temos também a excelente sequência em que Matt persegue um carro correndo pelos telhados da cidade, enquanto sua audição requintada vai lhe indicando o caminho, em The Ones We Leave Behind e a sangrenta luta contra o ninja Nobu em Speak of the Devil, onde temos um trabalho quase invisível de efeitos visuais tornando o embate possível.

E então, temos os flashbacks. Pessoalmente, acho que a história tem o ritmo gravemente danificado pela constante inserção dessas digressões temporais, especialmente todo o tempo dedicado ao jovem Matt e seu pai boxeador. É um recurso que ganha mais força em episódios específicos, como Stick, onde acompanhamos o treinamento de Matt com seu enigmático mestre vivido por Scott Glenn e Nelson v. Murdock, onde a narrativa mergulha fundo na relação entre Matt e Foggy, em um bom contraponto à situação agravante na qual encontram-se no presente.

Algumas subtramas também não são das mais empolgantes, sendo um desperdício de tempo e um claro filler das 13 horas de duração total. Tudo o que envolve Foggy e Page investigando uma moradora afetada por uma situação estranha na vizinhança e a cruzada do jornalista Ben Urich acabam tornando-se entediantes, ainda que rendam bons momentos de desenvolvimento de seus personagens e as relações entre estes; sem falar que as performances de Henson e Wolf são ótimas e naturais. Porém, a série daria a eles um papel muito mais proveitoso em sua segunda temporada, mas isso é assunto pra outro dia...

Ainda que traga algumas inconsistências em sua longa temporada de 13 episódios, Demolidor é uma grande surpresa e uma das melhores adaptações do selo Marvel já feitas no audiovisual. A série da Netflix impressiona pela abordagem dark e visceral, impressionando pela ação e o cuidado com seus excelentes personagens. Um começo memorável para uma parceria que promete continuar surpreendendo.

Demolidor - 1ª Temporada (Daredevil - Season 1, EUA - 2015)

Showrunner: Drew Goddard
Direção: Drew Goddard, Phil Abraham, Stephen Surjik, Ken Girotti, Euros Lyn, Steven S. DeKnight, Guy Ferland, Nick Gomez, Adam Kane, Nelson McCormick, Brad Turner
Roteiro: Christos N. Gage, Ruth Fletcher, Douglas Petrie, Marco Ramirez, Steven S. DeKnight, Joe Pokaski
Elenco: Charlie Cox, Deborah Ann Wolf, Elden Henson, Vincent D’Onofrio, Rosario Dawson, Scott Glenn, Peter Shinkoda, Matt Gerald, Ayelet Zurer
Emissora: Netflix
Episódios: 13
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 50 min aprox

https://www.youtube.com/watch?v=y3GkQ6yoAA4

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Crítica | A Freira 2 por pouco é melhor do que o primeiro

Marcando dez anos desde o lançamento de seu filme original, a franquia Invocação do Mal se transformou em uma das marcas mais valiosas e empolgantes da Hollywood contemporânea. Com um primeiro filme dirigido por James Wan para a New Line Cinema e Warner Bros, a saga sobrenatural sobre o casal Ed e Lorraine Warren também gerou uma série de derivados sobre o infinito leque de criaturas e espíritos - fictícios ou não.

Um dos mais icônicos nasceu no segundo filme de 2016, quando a freira demoníaca de Bonnie Aarons rapidamente roubou a cena. Um derivado sobre a criatura foi anunciado, e Corin Hardy dirigiu o prelúdio de 2018, que apesar de ser um dos piores exemplares da franquia, garantiu um sucesso comercial estrondoso - o que garantiu o tardio, mas inevitável, A Freira 2.

A trama do filme se passa alguns anos após os eventos do original, voltando a seguir a Irmã Irene (Taissa Farmiga), que é novamente convocada pela Igreja quando uma série de assassinatos envolvendo freiras e padres começa a assolar a Europa. Em sua investigação, Irene descobre que o espírito demoníaco Valak (Bonnie Aarons) está de volta, agora usando o corpo de seu amigo Maurice (Jonas Bloquet) em um internato na França.

Com um primeiro filme que desperdiça o grande potencial iconográfico de sua antagonista, A Freira 2 aposta em uma narrativa radicalmente diferente. Escrito por Akela Cooper, Richard Naing e Ian Goldberg, o roteiro do novo filme coloca a Irene de Farmiga em uma trama muito mais derivativa dos suspenses de Robert Langdon do que um exemplar da franquia Invocação do Mal, inventando até mesmo um artefato de grande poder que despertaria o interesse do próprio Indiana Jones. É uma narrativa divertida, mas que exige muito da capacidade de suspensão de descrença do espectador, especialmente de uma franquia que por anos se vendeu no "baseado em uma história real".

Mas o real problema consiste na sobrecarga de personagens e núcleos narrativos da trama, que equilibra sua caçada ao tesouro sagrado com uma inchada subtrama com Maurice e as garotas do colégio interno francês. Há todo um microcosmo dramático ali, que infelizmente o texto e o elenco são incapazes de tornar interessante - definitivamente não há o mesmo envolvimento emocional poderoso que circula o casal Warren de Patrick Wilson e Vera Farmiga nos filmes originais.

Não bastasse a composição dramática enfadonha, A Freira 2 ainda decepciona no principal elemento de um filme de terror: a direção. Michael Chaves nunca chega a ser desastroso, mas sua condução carece de boa atmosfera e construção, apelando para sustos baratos e jump scares previsíveis. O próprio clímax deixa a figura de Bonnie Aarons de lado para apostar em novas (e ridículas) invenções monstruosas para a mitologia da franquia.

A única grande ideia de Chaves como diretor vem em uma sequência totalmente explorada pelo material promocional. Absolutamente inspirado, o momento mostra Irene vendo a silhueta da Freira se formando através de revistas e papéis em uma banca de jornal francesa, resultando em uma das concepções visuais mais originais e inventivas que o gênero de terror hollywoodiano viu em anos.

No mais, A Freira 2 traz uma esquisita combinação de caçada ao tesouro, assombração em colégio e até mesmo um grande clímax de ação. Apesar de ambiciosa, a trama se torna enfadonha, e sobram poucas ideias realmente inspiradas para Michael Chaves explorar. Mas ao menos... é melhor do que o primeiro.

A Freira 2 (The Nun II, EUA - 2023)

Direção: Michael Chaves
Roteiro: Akela Cooper, Richard Naing e Ian Goldberg
Elenco: Taissa Farmiga, Storm Reid, Jonas Bloquet, Bonnie Aarons, Anna Popplewell, Katelyn Rose Dawson, Suzanne Bertish, Léontine d'Oncieu, Peter Hudson
Gênero: Terror
Duração: 111 min

https://www.youtube.com/watch?v=yyUmpkGR7gs&t


Crítica | Drácula: A Última Viagem do Deméter perde o potencial

Publicado originalmente em 1897, Drácula, do autor Bram Stoker, lançou um dos maiores personagens da história da cultura pop. Séculos depois, o grande vampiro foi adaptado e interpretado das mais diferentes formas possíveis no cinema e na TV. Só em 2023, o Conde Drácula foi até imaginado como parte de um relacionamento tóxico, na comédia Renfield: Dando Sangue Pelo Chefe.

Ainda sob o selo da Universal Pictures, a criatura de Stoker ganha uma adaptação diferente com Drácula: A Última Viagem do Deméter, que opta por levar para as telas apenas um capítulo do livro de Stoker, que serve como epístola para uma passagem de eventos. Uma ideia absolutamente inspirada, mas que infelizmente só é aproveitada pela metade no filme de André Øvredal.

A trama acompanha o médico Clemens (Corey Hawkins), que se junta à tripulação do navio Deméter, programado para transportar uma carga valiosa da Romênia para Londres. Ao longo da viagem, mortes estranhas começam a acontecer na embarcação, e a tripulação descobre estar transportando o mortal vampiro Drácula (Javier Botet).

Com mais de 30 anos em desenvolvimento, a ideia de adaptar apenas um capítulo de Drácula é formidável. Não só oferece um escape interessante para uma passagem do livro que nunca foi especificada nos cinemas (sendo literalmente uma transição no filme de Francis Ford Coppola), mas também o potencial de um filme de terror claustrofóbico e ambientado em alto mar; com os realizadores comparando o projeto com Alien: O Oitavo Passageiro. A ideia também garante uma visão radicalmente diferente de Drácula, aqui inteiramente em sua forma bestial e monstruosa, bem representada pelo porte físico único do ator Javier Botet; cuja performance e caracterização miram bem mais em Max Schreck do que Bela Lugosi.

Durante a primeira metade, o cineasta André Øvredal compreende e aproveita seu grande potencial de terror. O Deméter é atmosférico e bem valorizado pelas sombras, e Øvredal é inteligente em constantemente enquadrar seus personagens em planos plongée opressores e em close, sempre dando a impressão de que a tripulação está sendo constantemente vigiada por uma força superior - sustentando a incômoda noção de que todos se tornarão vítimas em breve, algo que o assustador prólogo do longa deixa bem claro.

Infelizmente, A Última Viagem do Deméter se transforma em um filme completamente diferente a partir de sua segunda metade. O terror cautelosamente construído dá espaço a um projeto de ação e espetáculo CGI que simplesmente não empolga, descartando a presença física arrepiante de Botet por um Drácula borrachudo e voador, que parece mais adequado no Van Helsing de Stephen Sommers. E por mais habilidoso que seja com o terror, Øvredal não consegue tornar o espetáculo tão interessante, deixando suas batalhas e confrontos perdidos em uma fotografia escura e sem graça - culminando em um desfecho absurdo que ousa promover uma continuação, e não estou me referindo aos capítulos restantes de Bram Stoker.

A gênese de Drácula: A Última Viagem do Deméter é inspirada e compreende suas ambições, limitando-se a apenas um capítulo do livro. O resultado seria melhor se a produção estivesse na mesma página, apostando em uma duração menor e definitivamente um orçamento mais controlado.

Drácula: A Última Viagem do Deméter (The Last Voyage of the Demeter, EUA) - 2023

Direção: André Øvredal
Roteiro: Bragi Schut Jr. e Zak Olkewicz, baseado na obra de Bram Stoker
Elenco: Corey Hawkins, Liam Cunningham, Aisling Franciosi, David Dastmalchian, Woody Norman, Chris Walley, Jon Jon Briones, Stefan Kapicic, Javier Botet
Gênero: Terror
Duração: 118 min

https://youtu.be/Ehs8cr2HKhY


Crítica | Megatubarão 2 só abraça o ridículo quando é tarde demais

Sucesso surpresa da Warner Bros em 2018, Megatubarão marcava uma tentativa séria do estúdio em levar o fator trash de franquias como Sharknado com a escala gigantesca de um blockbuster milionário. A empreitada garantiu uma rara colaboração entre um estúdio americano com produtoras chinesas, e uma nova franquia teve início, levando como base a extensa série de livros de Steve Alten.

Seis anos depois, a Warner inesperada resolve voltar para o oceano e com suas criaturas pré-históricas para Megatubarão 2, que mantém a proposta absurda de seu anterior, mas infelizmente não encontra muito o que fazer com suas (limitadas) novas ideias.

A trama volta a acompanhar o mergulhador Jonas Taylor (Jason Statham), que segue trabalhando para o Instituto Oceânico na exploração de uma fenda localizado  quilômetros abaixo do mar. Durante a expedição mais recente, a equipe de Jonas é sabotada por espiões, que acabam por liberar novas classes de tubarões megalodontes para a superfície.

Assim como seu anterior, Megatubarão 2 tenta andar na corda bamba de um filme "sério" enquanto promete as artimanhas de um grande festival trash. O problema é que, mesmo quando o longa aposta em uma trama risível pautada em espionagem industrial, empresárias maquiavélicas e até mesmo mercenários espanhóis com vendetas pessoais com o protagonista (!), é difícil levar a sério. Não ajuda que o roteiro assinado por Dean Georgaris e a dupla Erich e Jon Hoeber seja inchado e patético, apresentando um material que parece destinado à porção narrativa de filmes pornográficos, mas tratados com a seriedade de um Tubarão, de Steven Spielberg, pela direção de Ben Wheatley.

Wheatley, por sinal, é uma escolha inesperada para comandar Megatubarão 2. Substituindo Jon Turteltaub (A Lenda do Tesouro Perdido). Tendo dirigido produções de "prestígio" como Free Fire: O Tiroteio e No Topo do Poder, o cineasta britânico faz um trabalho competente e bem superior à qualidade do roteiro. Ao lado do diretor de fotografia Haris Zambarloukos, Wheatley aproveita os valores de produção de sets, cenários e até mesmo de paisagens submarinas, garantindo uma sequência impressionante de caminhada na fossa oceânica - perfeitamente iluminada pelos trajes coloridos dos personagens.

O trabalho de câmera de Wheatley também é formidável, mesmo quando esteja voando para acompanhar reviravoltas novelescas ou encontrar ângulos criativos para as mais banais trocas de diálogos. Wheatley, curiosamente, só não traz essa mesma inspiração no ponto em que Megatubarão 2 deveria triunfar: o terceiro ato que abandona qualquer senso de realismo e "seriedade" para se entregar ao pastelão, seguindo as peripécias de três tubarões megalodontes e um polvo gigante em meio a uma ilha de turistas. É uma cópia maior e mais complexa do clímax do anterior, mas que acaba perdendo o carismático Jason Statham (incapaz de entrar na brincadeira) para o super star chinês Wu Jing - garantindo alguns dos momentos mais embaraçosos do cinema hollywoodiano em 2023.

Finalmente respondendo a pergunta de como seria um filme de Tommy Wiseau com orçamento de US$140 milhões, Megatubarão 2 é uma experiência absolutamente ridícula, mas que só se dá conta disso durante seus minutos finais. No que diz respeito ao trash 100% assumido, Sharknado ainda é a opção mais divertida.

Megatubarão 2 (Meg 2: The Trench, EUA/China - 2023)

Direção: Ben Wheatley
Roteiro: Dean Georgaris, Erich Hoeber e Jon Hoeber, baseado na obra de Steve Alten
Elenco: Jason Statham, Wu Jing, Sienna Guillory, Cliff Curtis, Page Kennedy, Skyler Samuels, Sergio Peris-Mencheta, Shuya Sophia Cai
Gênero: Aventura, Ação
Duração: 116 min

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