Crítica | 3%
Cuidado: crítica contém spoilers.
Distopias e utopias são representações simbólicas de um futuro remoto. Enquanto essas se referem a uma idealização completa e paradisíaca de como a raça humana se portará no futuro, aquela traz uma visão pessimista, onde temas como opressão e desigualdade social são recorrentes e a segregação de classes é levada ao extremo. As mais famosas obras distópicas que conhecemos, tanto no cinema quanto na literatura, são 1984 e Admirável Mundo Novo, romances de George Orwell e Aldous Huxley, respectivamente, e Metrópolis, de Fritz Lang - um dos filmes pioneiros da ficção científica.
Desde então, tivemos diversas releituras desse tema que culminaram em franquias muito populares entre os jovens e que introduziram alguns temas polêmicos de forma muitas vezes didáticas, como a futilidade, o conceito de meritocracia e outros, citando aqui Jogos Vorazes e Divergente, as quais trouxeram consigo um ótimo conceito, mas que por vezes não se concretizou da melhor forma possível.
O tema entrou em decadência, do mesmo modo que a estética em found footage. E então, em 2015, a gigante do serviço de streaming, Netflix, anunciou que adaptaria um piloto de baixo orçamento lançado em 2011, 3%, para uma produção original de oito episódios, seguindo o ritmo semelhante de outras séries distópicas, como o sucesso Black Mirror. Tal notícia se espalhou pelos quatros do Brasil de forma a causar bastante fervor, visto que seria o primeiro show nacional a entrar para extenso catálogo do serviço supracitado. E eu, como todos os outros apaixonados por entretenimento, não fiquei de fora. O que realmente me incomodava era a narrativa: uma mistura dos ideais meritocráticos defendidos pelos teóricos do século XVI com tecnologia - e mais uma vez o que suas trágicas consequências causariam na sociedade.
O grande problema foram as expectativas: conhecemos o nível Netflix de produção. Sabemos as mágicas que eles conseguem transportar das páginas do roteiro para a tela de diversos aparatos tecnológicos. E assim comecei a assistir a esta série, confesso que fiquei relativamente decepcionado.
Primeiramente, devemos entender que a tentativa de diversos realizadores - tanto de cinema quanto de televisão - brasileiro tenta trazer elementos da cultura estrangeira e adaptá-los para a realidade, sem se esquecerem de que esse simulacro na maioria das vezes cai no absurdo. Apenas nas últimas semanas, tivemos Sob Pressão chegando às telonas, uma cópia barata da soap opera Grey’s Anatomy, e SuperMax, uma tentativa de transformar a famosa antologia American Horror Story em subtramas brasileiras que tinham como único indício de nacionalidade sua localidade. Felizmente, 3% sucede de forma exímia no quesito identidade: já no episódio piloto, vemos a caracterização de uma comunidade no extremo norte da Floresta Amazônica fadada ao descaso e à mortandade que não se relaciona de forma alguma com as distopias europeias ou norte-americanas. Até a paleta de cores contribui para essa unificação: tons de vermelho, verde e azul contrastam entre si para criar um clima brasileiro e estranhamente onírico.
A história é até bem simples de ser resumida: em um futuro remoto, a sociedade foi dividida em duas - aquela pertencente ao Mar Alto e aquela que se limita aos prédios destroçados de uma favela e de uma sociedade cuja escassez se mostra como símbolo. A cada ano, os jovens que completam seu vigésimo aniversário podem participar do Processo, uma série de provas psicológicas e físicas que selecionará apenas 3% dos candidatos para serem transportados a um novo e melhor mundo. O conceito se mostra bem interessante: mas os deslizes vêm com sua execução.
Em Cubos, o primeiro episódio, César Charlone encabeça a direção geral e usa e abusa de planos holandeses e composições mais fechadas com a câmera na mão, relembrando de sua estética no longa Cidade de Deus, no qual trabalhou como diretor de fotografia. Aqui, a opção por um trabalho mais intimista logo dá lugar a vícios de linguagem monótonos que varrem conceitos muito interessantes para debaixo do tapete. A inclinação dos planos supracitados entra como símbolo para o desequilíbrio e para uma estética mais onírica e irracional, mas aqui é tão mal executada que chega a incomodar. Vale ressaltar que em alguns capítulos, como Água, a utilização dessa estética combina perfeitamente com o tom de flashback da narrativa, onde o roteiro procura analisar o passado do antagonista Ezequiel (João Miguel) e o faz de forma bem construída, mas de forma geral não harmoniza e inclusive desvia a atenção dos espectadores para possíveis metáforas.
Michele (Bianca Comparato), Fernando (Michel Gomes), Rafael (Rodolfo Valente), Joana (Vaneza Oliveira) e Marco (Rafael Lozano) são os protagonistas da primeira temporada, e decidir colocá-los como pertencentes a uma mesma massa foi um tiro saído pela culatra. Mais uma vez, a execução pelo roteiro deixou a desejar - e pior: deixou-os sem personalidade até mais ou menos a metade da série. Vez ou outra era possível perceber nuances em alguns dos personagens, mas colocando-os um do lado do outro, apenas conseguimos pensar que todos eram rebeldes de sua própria maneira, com ressalvas para Joana, que mostrou-se como uma das melhores criações e cujo arco ajudou a conexão entre personagem e público. E aqui, o deslize continua: a química do elenco parece inexistente até os quarenta e cinco minutos do segundo tempo. Michele e Fernando desenvolvem uma relação amorosa ao acaso e sem precedentes, impedindo qualquer compaixão quando os dois se separam no season finale, Botão, sem dizer que Comparato traz pouquíssima expressão para as telas.
Vale lembrar que todos estes erros se desenvolvem no episódio piloto e se alastram para dois episódios consecutivos. Assim que nos acostumamos ao ritmo frenético e não balanceado de uma montagem completamente irregular, os personagens parecem criar uma personalidade e começam a conversar com o público, trazendo-o para a realidade em que vivem, mas infelizmente não permitindo que mergulhemos em suas preocupações. Falando em termos geométricos, nenhum deles realiza uma parábola completa na primeira temporada, mantendo-se na linearidade total.
Um dos pontos positivos reside sobre a paleta de cores, como supracitado. Dentro da instalação do projeto, que aparenta sem bem menor por dentro do que por fora, somos apresentados a contraposição entre o neutro utópico do branco e às cores quentes próprias de uma irracionalidade exacerbada e condenável. Neste momento, estamos no ponto de vista dos antagonistas: do chefe do processo interpretado por Miguel, da chefe da segurança Cássia (Luciana Paes) e da nova secretária-sênior Aline (Viviane Porto), bem como seus inúmeros funcionários: todos eles veem os participantes como bárbaros animalescos que pertencem a uma classe inferior até serem purificados - e nós passamos a vê-los deste modo. A partir do quinto episódio, os tons de azul tornam-se predominantes, talvez indicando uma possível ameaça e angústia para a “sociedade perfeita”, mas que também não se mostra tão presente assim.
As provas deveriam ter cunho psicológico e físico, mas em sua maior parte permanecem no psicológico. Resgatando elementos de Admirável Mundo Novo, os habitantes do Mar Alto não se expressam com tanta facilidade como nós e se assemelham a máquinas pneumáticas: quando o fazem, estão em desequilíbrio, e tudo o que ameaça a paz da suposta utopia brasileira devem ser ignorados - neste caso, são internados no Centro de Tratamento. Os testes têm a intenção de levá-los ao extremo da barbárie para depois ascenderem a um plano quase transcendental de pureza.
Falando deste modo, dá-se a entender que as diversas tramas e subtramas de 3% se desenrolam de forma bem abrangente, mas infelizmente não é isso que acontece. O tema que se supera e que é altamente explorado é a pressão e o transtorno psicológico decorrente da própria escolha individualista inerente ao ser humano - e a melhor representação disso na série emerge na caracterização da personagem de Julia (Mel Fronckowiak), uma das grandes surpresas da série inteira. Seu arco transparece de forma tal maravilhosa que traz mais peso aos ideais medíocres de Ezequiel e que nunca se postam de forma plena em toda a primeira temporada. Enquanto isso: temas como desigualdade são construídas de forma por vezes escrachada, e não metáfora. Talvez se Pedro Aguilera, o idealizador e criador original de 3%, optasse por diálogos menos autoexplicativos e que trouxessem um real significado arquetípico para cena, as coisas tivessem saído de forma diferente; não é difícil criar várias linhas narrativas, o problema é equilibrá-las.
Infelizmente, para uma distopia, a utilização do verborrágico funciona em partes. Mas para que haja um equilíbrio, faz-se necessário também a ação - e 3% simplesmente não tem nada do tipo. As poucas cenas viscerais são mal coreografadas e servem como catalisadoras para sequências futuras e que nos fazem esquecer do passado. Entretanto, a morte de Marco - uma das composições mais belas de toda a série - trouxe certo ressentimento por parte de seu personagem, o qual mostrou-se como conservador e reacionário durante todo o Processo apenas para cair no jogo corruptível do poder e do comando tirânicos.
Em suma, a primeira série original Netflix brasileira é um ótimo início para futuras criações. E apesar de divertir, não podemos deixar de sentir uma pontada de decepção ao vermos tantos conceitos interessantes jogados ao mar. 3% não chega a ser um simulacro de Jogos Vorazes, por exemplo, por ser identitário, mas tem muito a melhorar - e com uma possível segunda temporada já confirmada, Charlone e Aguilera podem e devem ousar mais.
Crítica | Rainha de Katwe
Os estúdios Disney têm um passado sombrio quando falamos da retratação de outras culturas além da norte-americana. Em diversos longas, sejam em live-action ou de animação, o comportamento das personagens segue os estereótipos construídos ao longo do tempo, os quais reforçam o conceito equivocado de soberania racial e ideológica de um povo em relação a outro, relembrando-nos inclusive da vertente eurocentrista de outrora. Entretanto, Rainha de Katwe representa um avanço considerável para a companhia, podendo ser considerada uma das obras de maior identidade dos últimos anos.
A história gira em torno de Phiona Mutesi, uma jovem garota da periferia da Uganda cujas capacidades e habilidades para o xadrez a transforaram em uma das mestras mais jovens do esporte - e não é por menos: sua rápida mente, ainda que destoe da educação recebida por crianças mais ricas, pode prever oito jogadas adversárias. Infelizmente, essa capacidade não se restringe à protagonista, e o público também pode prever os acontecimentos do filme apenas pela sinopse. Afinal, histórias de superação normalmente seguem certos padrões narrativos, e o modo de contá-las deve ser o mais original possível para desviar a atenção do espectador de supostos clichês. Entretanto, a direção de Mira Nair, marcada pelo senso vívido de espaço, e as atuações impecáveis de David Oyelowo e Lupita Nyong'o nos encantam de forma sem precedentes. Até mesmo a aparição da novata Madina Nalwanga nos afasta das predições certeiras, tornando Rainha de Katwe um filme agradável e satisfatório em suas próprias medidas.
Como diversas narrativas de superação, o longa de Nair segue o processo formulaico, apresentando-nos a uma protagonista às margens da sociedade que consegue superar obstáculos impossíveis para alcançar seu objetivo e retornar de forma completamente diferente para suas origens. Neste caso, o incidente incitante que a move é o xadrez. E já aqui podemos esperar que o roteiro de William Wheeler, baseado no livro homônimo de Tim Crothers, usará e abusará de todas as metáforas possíveis envolvendo este jogo milenar. Vivendo na pobre comunidade de Katwe, Phiona (Nalwanga) envolve-se de um modo previsível com este esporte: ao seguir o irmão através das ruas superlotadas da cidade, descobre que ele e outras crianças estão se encontrando com o professor Robert Katende (Oyelowo) para treinarem. Após ser rechaçada pela maior parte das crianças, acaba cedendo aos encantamentos do xadrez e apaixona-se pelas peças de madeira - apaixona-se não; torna-se obcecada (de uma forma positiva).
Acontece que Phiona tem tarefas a cumprir e responsabilidades a manter dentro de uma família comandada por sua mãe Harriet (Nyong’o), cujas desgraças que marcaram seu passado insistem em retornar até nas relações com seus vizinhos, e sua personalidade austera sempre age de forma a proteger, além da garota, seus outros três filhos: Brian, Night e Benjamin, os quais constantemente contradizem as escolhas da matriarca e sustentam os breves momentos de tensão da trama. Mas o foco aqui é como a preocupação exacerbada de Harriet impacta inclusive nos desejos da protagonista. Phiona encontra no xadrez uma salvação, um motivo para deixar sua vida consideravelmente “confortável” - no sentido de acostumada - e ampliar suas fronteiras e sua visão de mundo.
A garota de apenas onze anos logo se torna um prodígio, derrotando o campeão da turma - intitulada Os Pioneiros (nome muito apropriado para o estilo da história) - e atraindo a atenção do professor, que a vê como a principal “arma” para alguma mudança naquela comunidade. A partir daqui, já é muito fácil entender o que vai acontecer: Phiona desenvolve suas habilidades, começando a demonstrar táticas e estratégicas que relembram os estilos dos grandes mestres mundiais do esporte e a quebrar paradigmas tanto de gênero quanto de raça e educação - pelo simples fato dela ser mulher, negra e não saber ler. Sua inteligência e sua capacidade de compreensão sempre estiveram dentro de si, e apenas precisavam de um “empurrãozinho”, um gatilho para atingirem a potencialidade máxima. Assim, começa a participar de torneios regionais, nacionais e internacionais, até chegar a um ponto em que toda a confiança que cultivara dentro de si é utilizada contra ela no campeonato russo, no qual se sente tão pressionada que acaba perdendo de se frustrando a ponto de desistir de seus sonhos.
Obviamente, sabemos que tudo dará certo no final. Os clichês existem por todos os lados, mas não posso negar que Rainha de Katwe ousa além de filmes semelhantes. Cada personagem tem o seu próprio arco muito bem desenvolvido, e eles se complementam como podem. Até mesmo a mercadora e o construtor de chaminés, cujas aparições são ínfimas, mostram-se importantes ao estabelecer contrastes de personalidade com os protagonistas. E essa composição antitética é desenvolvida de forma livre de estereótipos: a disparidade de classes sociais existe até entre os ugandenses mais ricos e os mais pobres. As pessoas em cena são reais e não criações de um imaginário preconceituoso e racista - e o mais incrível é que esses temas são tratados de forma fluida, afastando-se completamente da vertente panfletária.
Outro ponto positivo, como já citei, é a sua identidade: o longa é essencialmente africano. E apesar da produção se equiparar a outras obras hollywoodianas, não há nenhum indício do toque norte-americano na narrativa ou na técnica. A trilha sonora de Alex Heffes é colorida, instigante e entoa perfeitamente com o filme, enquanto a paleta de cores chega a ser musical: uma paleta quente e vibrante que resgata o melhor da cultura a qual somos apresentados. Até a fotografia de Sean Bobbitt afasta-se da construção publicitária - o famigerado “cartão-postal” - e opta por planos mais intimistas e que reflitam a relação entre Phiona e o xadrez, por exemplo, Harriet e seus tecidos (única lembrança do marido e da mãe), Katende e os livros, entre outros.
Entretanto, o filme peca nos diálogos, principalmente em cenas-chave: em uma das sequências primordiais, Wheeler parece admitir que o público não tem capacidade de entender as metáforas com o xadrez e opta por falar autoexplicativas que tiram toda a magia do texto. Entendemos que a ascendência da protagonista correlaciona com o peão se transformando em rainha. Tudo bem, a obtenção de consciência pelas crianças - cuja caracterização é semblante de uma sociedade patriarcal e hereditária - justifica comentários óbvios, mas ainda sim causa estranhamento. Esse seja o deslize mais grave e que persiste ao longo de seus 124 minutos.
Em suma, Rainha de Katwe consegue se afastar de narrativas semelhantes e é capaz de nos fornecer uma perspectiva nova da cultura africana. Mas sem qualquer sombra de dúvida o maior mérito recai sobre a química do elenco e a transgressão dos estereótipos raciais que marcaram de forma negativa os estúdios Disney por tantos anos.
Crítica | Harry Potter e a Pedra Filosofal
Harry Potter e a Pedra Filosofal é um dos mais fortes e bem trabalhados filmes de aventura, transbordando com atmosfera, pincelado com o macabro e o sublime – e surpreendentemente fiel à sua fonte original. Muitos erros poderiam ter sido cometidos, mas nenhum deles se concretizou: a firme direção de Chris Columbus tornou-se um clássico encantador que faz jus à estória. O romance escrito por J.K. Rowling é vívido e diversas vezes esbarra no visceral, e sua adaptação para os cinemas poderia tornar as coisas um tanto quando fofas e confortáveis.
Mas não foi isso que aconteceu.
Mostrando-se como um Indiana Jones para um público mais jovem, o longa conta uma história de aventuras sobrenaturais e emocionantes, onde personagens multicoloridos e excêntricos alternam a vez em cena com criaturas assustadoras – um cão de três cabeças, uma infestação de visgos assassinos e um ser imortal de duas cabeças que bebe sangue de unicórnio. Assustador, sim, mas não tanto como você pode pensar – o suficiente.
Três jovens espirituosos são o centro do filme. Daniel Radcliffe interpreta Harry Potter, com óculos de aro redondos e um pouco mais velho do que o imaginei quando li o livro pela primeira vez. À época, o ator já havia dado vida a David Copperfield no filme homônimo da BBC, e se Harry será o herói de sua própria vivência nesta história, ainda não fica claro nos primeiros minutos.
Deixado quando ainda era bebê na frente de uma casa suburbana, Harry é criado por sua tia e seu tio numa relação não-mútua e pobre, por assim dizer, até ser convocado por uma revoada de cartas para estudar na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts – uma Oxford para bruxos, mas na qual você até pode dizer a palavra “maldito” sem ter problemas. Na escola, Harry aprende sobre a arte das poções, dos feitiços, e do manejo da vassoura. Ele é resguardado de perto pelo diretor Alvo Dumbledore: um velho – e alto – bruxo de longas barbas branco-pérola, interpretado por Richard Harris, cuja habitual presença de cena se encaixa perfeitamente com o tom da obra. Harris é assistido pela austera e amante da disciplina Minerva McGonagall, Professora e Vice-Diretora: uma performance à la Jean Brodie de Maggie Smith. Ian Hart é o tímido e introspectivo Professor Quirrell, e Alan Rickman dá vida ao soberbamente sinistro Severo Snape, proferindo suas falas de forma praticamente estática e aterrorizante.
Mas Harry não está sozinho nessa jornada. Já nos primeiros momentos em Hogwarts, se torna amigo do desastrado alívio cômico da franquia, Rony Weasley, um Jack Wild para Mark Lester interpretado por Rupert Grint, e Emma Watson como a magnífica Hermione Granger: imperiosa, impetuosa e extremamente leal a seus valores.
Os efeitos especiais para este filme são simplesmente estonteantes: a direção de fotografia de John Seale e o design de Stuart Craig atraem-se de forma indescritível. Fiquei boquiaberto aos incríveis planos do saguão de entrada de Hogwarts, com suas escadas movediças e quadros falantes e animados. A cena principal de Quadribol, um excêntrico esporte que se joga voando em vassouras, é surpreendentemente emocionante.
E aquelas casas! É sério que em 2001 crianças de Amersham até Zâmbia podem realmente se importar para qual casa os protagonistas serão selecionados? A resposta é sim. Os novatos, em seu primeiro dia, passam por um teste de “livre-arbítrio”, por assim dizer, no qual sentam-se num banquinho e sobre suas cabeças é colocado o aparentemente temível Chapéu Seletos. Obviamente, esta sequência nos relembra do discurso em Carruagens de Fogo (1981) feito pelo diretor, no qual os calouros de Cambridge descobrem que ser um homem de Caius é muito melhor que ser, por exemplo, um Trinity. Mas a diferença não chega aos pés daquela existente entre Sonserina, a casa dos talentosos e sedentos por poder, e Lufa-Lufa, a casa dos nerds e risonhos.
Columbus lida com toda a fantasia de forma direta – tanto quanto possível – e felizmente nunca sucumbe à tentação de distorcer a história para agrado dos adultos ou para impor uma dose extra de “surrealismo” obtuso, o que seria horrivelmente errado e condescendente. É interessante especular o que teria acontecido caso Terry Gilliam fosse contratado para dirigir Harry Potter – talvez se tornaria uma obra multicolorida recheada com camadas de paternalismo e círculos narrativos. Ou então uma adaptação natalina de Alice no País das Maravilhas. O filme de Columbus, embora preso em total fidelidade ao livro, nunca desaponta tanto sua fonte original quanto seu público-alvo.
É um investimento de seriedade, o qual é ressarcido quando chegamos ao clímax catártico da narrativa, muito mais importante que a batalha de Harry para reaver a Pedra Filosofal – um plot levemente desapontador tanto nas telonas quanto nas páginas. O ponto de virada ocorre quando o protagonista tem uma visão de seus falecidos pais no lendário Espelho de Ojesed, um objeto encantado que tem a capacidade de refletir nossos desejos mais íntimos. A história de Harry Potter – sua opressão pela família “trouxa” e então seu empoderamento através da magia – não faz sentido sem o fato da morte de seus pais. É algo que se relaciona às fantasias mais inerentes a qualquer criança: o medo do abandono misturado com o gostinho de liberdade.
O pai de Harry é uma versão um pouco mais calva e mais sorridente dele mesmo. Sua mãe é – bem, alta, com cabelos escuros, olhos cândidos, assim como a filha da autora. Eles são seraficamente calmos, e sua presença heroica os torna muito semelhantes aos pais biológicos do Super-Homem, Jor-el e Lara, os quais colocaram seu bebê indefensível dentro de uma nave e o mandaram para um lugar onde ficaria a salvo, antes de explodirem em seu planeta-natal Krypton. Certamente, a figura paternalista de Harry é efetivamente substituída por Dumbledore – uma representação quase divina. E o filme não esconde a presença diabólica de Voldemort (dublado originalmente por Richard Bremmer), que desafiou a autoridade e caiu dos céus e, agora, deixando um rastro de sofrimento por onde passa, convence seus seguidores que não há o bem e o mal: há apenas o “poder”.
Nada poderia ter mais ares de uma série épica que essa. Há pernas. Há asas. Há até vassouras voadoras. A ótima saga Harry Potter, à época em que estreou, competiu com os próprios filmes de James Bond. E Harry envelheceu com o passar dos anos, levando seus fãs com ele através dos caminhos tortuosos da adolescência e da própria vida adulta. Obviamente, vemos muito da fórmula da jornada do herói, tanto nos livros quanto nos longas-metragens, aludindo a outras franquias de sucesso como Star Wars. Mas o formulaico existe para ser quebrado; afinal, todas as histórias já foram contadas – agora é necessário descobrir novos métodos de narrá-las, e é isso que a saga criada por Rowling faz.
Ao final de fantásticos e divertidos 152 minutos, a velha frase “deixá-los querendo mais” ficou piscando na minha cabeça. Acho que nunca vi essas palavras fazerem tanto sentido.
Harry Potter e a Pedra Filosofal (Harry Potter and the Sorcerer's Stone, EUA – 2001)
Direção: Chris Columbus
Roteiro: Steve Kloves, J.K. Rowling
Elenco: Daniel Radcliffe, Emma Watson, Rupert Grint, Adrian Rawlins, Alan Rickman, Alfie Enoch
Gênero: Aventura, Família, Fantasia
Duração: 125 min
https://www.youtube.com/watch?v=CLJv2Qi98jU&ab_channel=L.G.R
Crítica | A Luz Entre Oceanos
Uma história de romance costuma ser previsível. Dois indivíduos completamente diferentes entre si que acabam se conhecendo e, depois de certo tempo, tornam-se perdidamente apaixonados um pelo outro. Claro, obstáculos se colocam entre eles, impedindo que o "felizes para sempre" venha com facilidade, mas o final é bem conhecido: tudo dá certo. Essa é, de forma resumida, a base na qual se finca A Luz Entre Oceanos, filme de Derek Cianfrance, baseado no livro homônimo de M.L. Stedman. Claro que a linha narrativa não se restringiria a territórios tão bem explorados por obras escritas, cinematográficas e televisivas: algumas viradas impressionantes aguardam o público dentro de seus aproximados 120 minutos. Mas quando a tempestade de reviravoltas passa, vem a calmaria - e não digo isso de forma positiva, infelizmente.
Michael Fassbender é um dos protagonistas no filme. Aqui, ele encarna o inexpressivo e amargurado Tom Sherbourne, um veterano de guerra que se torna totalmente mergulhado em emoções destrutivas após perceber a capacidade bélica e derradeira do ser humano. Sabemos que aqueles que conseguem retornar da guerra - principalmente uma tão horrenda quanto a I Guerra Mundial - não voltam como eram. Distúrbios, traumas, sequelas e outros começam a permear suas próprias personalidades, e o ator consegue encarnar todos estes problemas sem cair na tentação do melodramático. Sherbourne viaja até a longínqua cidade de Janus Rock, localizada na Austrália, onde deseja recomeçar sua vida. Para tanto, precisa se afastar daquilo que considera o mal primordial: o próprio homem. Ele aceita o emprego de faroleiro e irá trabalhar na ilha homônima, localizada em alto-mar, na qual receberá visitas a cada três semanas e não terá contato com mais ninguém além de suas memórias e de seus escritos.
Mas antes que possa ser definitivamente efetivado, Sherbourne é convidado por uma família local para almoçar e, chegando lá, com seu rosto nos dizendo que está em constante dor e que tenta ao máximo reprimi-la, ele encontra a sedutora Isabel Greysmark (Alicia Vikander), seu completo oposto. Enquanto Tom é um cara mais reservado e é bombardeado constantemente com lembranças da recém-finalizada guerra, Isabel parece ter vivido à parte disso. Quer dizer, ela tem consciência do que ocorreu mundo afora, mas seu jeito de ser nos parece imutável: ela é crua, carnal, quase primitiva, além de trazer uma doce altivez à cena que contrasta com seu companheiro de cena.
A química entre Vikander e Fassbender é imediata. É quase possível enxergar as fagulhas de um futuro romance incendiando uma belíssima cena de jantar no qual eles trocam olhares silenciosos. Palavras não são necessárias, e talvez esta escolha do elenco seja o ponto mais alto do filme. A narrativa pode até ser clichê, mas vale a pena assistir ao filme pela simples presença comovente e cativante de ambos os protagonistas.
Obviamente o amor não ocorre à primeira vista. A Luz Entre Oceanos, apesar das saídas formulaicas de narrativas do gênero, não é um conto de fadas. Entendemos a fascinação de Isabel por Tom, a qual é a pura simbologia da atração dos opostos. Mas ainda sim, este não deseja se abrir para outra pessoa por medo - e talvez por uma leve repulsa que provém de suas experiências no campo de batalha. Como já dito, a diferença entre os dois é notável: enquanto um traz uma certa escuridão e uma neutralidade para as sequência, o outro brilha em sua vivacidade quase estoica, com tons mais vibrantes e que algumas vezes soam artificiais - não desmerecendo o incrível trabalho de direção de arte de Karen Murphy, que resgata uma época quase anacrônica.
Em dado momento da narrativa, o casal acaba firmando o relacionamento e ambos contraem matrimônio. Tom leva Isabel para morar consigo na ilha, onde ambos viverão numa confortável casa com vista para a imensidão quase assustadora de um oceano. Não há mais ninguém lá e, durante grande parte do segundo ato, os dois vivem em uma felicidade utópica. Até que decidem aumentar a família e encontrar um modo de preencher um vazio incomodante que se alastra pelos quatro cantos daquele território. E é aí que os obstáculos finalmente chovem sobre os dois.
Acontece que Isabel tem dois abortos espontâneos dentro de duas tentativas de ter um filho. A primeira cena é construída de forma magnífica, com ela avançando tortuosamente por entre uma tempestade, caminhando e sendo castigada pela chuva e pelo vento, tentando alcançar o local de trabalho de seu marido. Ele não a ouve, e ela não pode fazer mais nada além de se deitar às portas do farol e esperar que Tom a encontre. Cada segundo transborda pura aflição e angústia, e não sabemos o que acontecerá. Nem mesmo a trilha composta por Alexandre Desplat consegue nos auxiliar neste trabalho, com um épico arquitetado com violinos e violoncelos em uma composição tonal nos arrastando para dentro do mesmo caos dos personagens. A segunda vez em que isso acontece, Isabel está confiante de que tudo dará certo: e num piscar de olhos, ela vê o seu vestido manchado de sangue e logo depois deitada numa relva desbotada olhando para o túmulo de seu filho não nascido.
Até aqui, a narrativa se desenrola de forma dinâmica e atraente. Temos uma linha narrativa, dois personagens muito diferentes marcando uma presença inefável numa imensa ilha. A opção por planos mais fechados para retratar a perda de esperança do casal principal entra em contraste com construções imagéticas mais abertas a fim de mostrar a majestosidade do cenário. Adam Arkapaw faz um trabalho invejável ao dançar com a câmera, navegando pela fumaça dos navios ou pelas ondas da praia, transpondo barreiras para acompanhar movimentos enérgicos e quase irracionais.
E então, como se não bastasse, a própria ilha recebe uma visita inesperada: uma canoa encalha nas praias brancas, com um corpo de um marinheiro jazendo lá dentro e um pequeno bebê chorando de fome em busca de alguma esperança. O casal encontra os dois, enterrando o cadáver numa parte inóspita de Janus Rock, com o devido "funeral", por assim dizer. E já é de se esperar o que acontece depois: Tom, permanecendo fiel a suas responsabilidades, deveria reportar as autoridades o ocorrido, mas em vez disso adota a criança - uma linda menina loura -, tornando realidade o sonho de sua mulher. A partir daqui, a composição das cenas é quase angelical: tudo vai de acordo com as regras das histórias de romance, e observamos o crescimento do bebê em cortes ritmados - cujas mesclas entre tons verdejantes e dourados contribuem para o tom pacífico do final do segundo ato.
A Luz Entre Oceanos poderia ter acabado desse jeito? É claro. Os obstáculos já haviam sido apresentados, apesar de poucos, e os personagens já alcançaram a tão desejada paz. Entretanto - e isso é um problema do próprio romance -, a narrativa resolve explorar as consequências de decisões imorais e antiéticas, adentrando um território antropológico e quase filosófico da irracionalidade humana. Tudo bem, estes conceitos emergem com os protagonistas, incluindo a dualidade entre o primitivo e o progressista, o traumático e o sã. Mas esta nova subtrama teria que ser muito bem pensada para funcionar com o tom novelesco do filme - e não é isso o que acontece.
O próximo obstáculo a ser enfrentado vem personificado por Hannah (Rachel Weisz, em talvez uma de suas atuações mais verdadeiras e mais contidas), uma mulher em completo desespero que perdeu a filha e o marido para os perigos do mar, peregrinando todas as manhãs de sua casa no centro comercial de Janus até o cemitério onde duas lápides simbólicas marcam a perda dos seus entes queridos. E é aí que o choque entre o que é certo e o que é justo mais uma vez pincela a narrativa principal: Tom acaba cedendo a seu lado moralista e envia cartas para esta mulher, dizendo que a criança está a salvo - um ato nobre, diga-se de passagem, mas que desperta uma fúria sem precedentes em Isabel. Querendo ou não, Lucy (Florence Clery) foi criada pelo casal, apesar de ser filha biológica de Hannah.
O longa, em determinado momento, não sabe mais por que caminho seguir. Nem mesmo a química entre o elenco consegue ofuscar a saturação exacerbada do roteiro, que mistura tantos gêneros fílmicos a ponto de se transformar numa mixórdia mal-resolvida. A quebra do voto de fidelidade entre Tom e Isabel se funde com o passado conturbado e com a falta de expectativas para o futuro de Hannah. Tudo isso corrobora a profusa saída que o roteiro encontra para finalizar - mais de uma vez - uma história cansativa. Temos três pontas distintas de um mesmo triângulo que lutam pelos holofotes e acabam destoando de maneira trágica.
A Luz Entre Oceanos funciona em partes. Até o final de seu segundo ato, a maestria com a qual Cianfrance conduz as lamentações e as aspirações dos personagens é admirável. Mas a narrativa deixa a desejar quando o maior dos antagonistas - a consciência - aparece em cena e acaba sujando de forma espalhafatosa um verdadeiro romance psicológico.
Crítica | Pânico (1996)
Pânico, de Wes Craven, viola uma das regras mais antigas da história cinematográfica: a narrativa é sobre personagens que vão ao cinema. Eles até já ouviram falar das celebridades. Eles se referem por nome a Tom Cruise, Richard Gere, Jamie Lee Curtis. Eles analisam motivações (“Norman Bates tinha motivo? Hannibal Lecter tinha uma razão para querer comer pessoas?”). OK, os personagens também vão ao cinema em A Última Sessão e os heróis de Os Balconistas trabalham numa locadora.
Até mesmo Bonnie e Clyde mergulhavam nessa metalinguagem. Mas esses filmes focavam no ato de ir ao cinema. Pânico é sobre o conhecimento: os protagonistas estão dentro de uma trama de terror, e devido ao fato de terem assistido a várias obras, sabem o que fazer e o que não fazer. “Não diga ‘volto em breve’”, um dos adolescentes avisa aos outros, “porque sempre que alguém diz isso, ele nunca volta”. De um modo, o plot mostra-se inevitável. Muito do modernismo presente em Pânico recai sobre a desconstrução dos clichês, significando que todos sabem sobre eles na teoria, mas na verdade ninguém consegue entendê-los. Pânico se auto-desconstrói; é como uma daquelas latas de sopa que se esquentam.
Em vez de deixar para o público antecipar os clichês de terror, os personagens conversam sobre eles de forma aberta. “Filmes do gênero são sempre sobre alguma loira de peitos grandes que corre para cima para o assassino encurralá-la”, diz um dos protagonistas. “Odeio quando eles são estúpidos assim”. O longa começa, obviamente, com uma jovem garota (Drew Barrymore) sozinha em sua casa. Ela recebe uma ligação ameaçadora de alguém com ares de Jack Nicholson. Ela está do lado de fora, fitando a escuridão da noite. Ela entra numa cozinha onde vemos muitas facas. Você conhece o procedimento.
Momentos depois, conhecemos outra jovem (Neve Campbell). Seu pai saiu da cidade pelo final de semana. Sua mãe foi assassinada... Bem, exatamente um ano atrás! Seu namorado escala através das trepadeiras e chega à janela de seu quarto. Na escola, rumores sobre cultos de assassinato circulam entre os alunos. O serial killer veste uma fantasia de Halloween intitulada “Pai da Morte”. Mais ligações, mais ataques. Os suspeitos incluem o namorado, o pai, e muitas outras pessoas. Um bom toque: o diretor da escola é o Fonz.
Tudo isso faz parte do plot principal. Pânico não é sobre o tema. É sobre si próprio. Em outras palavras, é sobre personagens que “sabem” que estão numa narrativa. Essas criações leem a revista Fangoria. Eles até utilizam diálogos próprios de filmes: “Fui atacado e quase cortado em pedaços ontem à noite”. A heroína vem rejeitando os avanços de seu par romântico, e bem a tempo de outro personagem comentar que “virgens nunca são as vítimas de filmes de terror. Apenas meninos e meninas maus sofrem as consequências”. Ao perceberem que entraram num loop metalinguístico, outro deles diz: “me vejo sendo interpretada por Meg Ryan. Mas, com sorte, Tori Spelling conseguiria o papel”. A obra em si já é irônica à medida em que o suspense dá lugar ao tragicômico e então volta para o terror. O macabro e o sangrento é usado tanto como uma originalidade quanto como clichê.
Uma das velhas esperas é a cena na qual um deles inesperadamente entra em cena, assustando a heroína, enquanto um acorde sinistro explode na trilha sonora. Amo essas sequências, porque (a) o som carrega uma mensagem de perigo, mas (b) é claro que a pessoa que entra é inofensiva e (c) apesar de não a vermos devido ao estreito enquadramento, no mundo real o personagem assustado conseguiria vê-la o tempo todo.
O filme também nos informa com precisão o modo como os repórteres de TV são retratados em obras do gênero. A jornalista, no caso, é Gale Weathers (Courteney Cox), que faz diversas perguntas interessantes, dentre as quais posso citar, “Como se sente quase sendo a vítima de um serial killer?”. Apesar de ser esperta e cínica, sugere ao xerife local que ambos vão até uma estrada deserta e isolada na qual a noite parece perfeita para se fazer uma caminhada – ao mesmo tempo em que um assassino está à solta.
Craven sempre foi considerado um dos mestres do suspense - e não é por acaso: clássicos do suspense como Quadrilha de Sádicos e O Monstro do Pântano envelhecem de forma misteriosamente maravilhosa a cada ano, além de criarem personagens icônicos que são lidos e relidos pela cultura pop contemporânea como homenagem e idolatria. Muitos dizem que seu ápice reside na franquia A Hora do Pesadelo, tanto pela abordagem de um tema psicológico de forma distorcida - e com a presença do animalesco Freddy Krueger - e recheado com ironias, mas creio que Pânico se firma com a convergência de todos esses elementos. Tanto as piadas internas quanto o auto-conhecimento dos personagens contribui para a construção de uma atmosfera irônica, perigosa e divertidamente defasada. Craven se superou aqui: o filme comenta sobre si próprio.
Infelizmente, o diretor veio a falecer em 2015, mas não em vão: seu gigantesco legado será lembrado por décadas a fio, cujas releituras e adaptações firmarão suas ideias como algumas das mais transgressoras e revolucionárias de todos os tempos.
Pânico (Scream, EUA – 1996)
Direção: Wes Craven
Roteiro: Kevin Williamson
Elenco: Drew Barrymore, Neve Campbell, David Arquette, Courtney Cox Arquette, Mathew Lillard, Skeet Ulrich, Rose McGowan, Jamie Kennedy, Linda Blair
Duração: 111 min.
Crítica | A Nona Vida de Louis Drax
A Nona Vida de Louis Drax é um daqueles ambiciosos filmes com viradas espetaculares que prometem muito, conseguem cumprir razoavelmente suas metas, mas perde o brilho e a identidade no meio do caminho. O diretor francês Alexandre Aja nos entrega uma narrativa um tanto quanto metafórica, seguindo o mesmo formato de predecessores do gênero e utilizando a fantasia para discorrer sobre temas sociais e psíquicos. De certa forma, a perspectiva infantil adotada no filme funciona, mas não é recorrente de forma completa - sendo este o principal motivo da disparidade que afeta seu fechamento.
O protagonista é o personagem-título Louis (interpretado pelo novato Aiden Longworth), o qual é dotado de uma característica incomum: a de ser um chamariz para desastres. O longa abre com uma sequência dele caindo do penhasco e logo nos transporta em um flashback dinâmico no qual vemos os acontecimentos sombrios e estranhamente cômicos que o acompanham, como o fato de um ventilador cair sobre ele quando ainda bebê, suas dezenas de intoxicações alimentares e sua infortuna aventura envolvendo um garfo e uma tomada.
Voltamos para o penhasco. Em uma narração muito bem detalhada e metafórica, Louis vê sua vida passar diante dos seus olhos antes de finalmente cair do penhasco e entrar num súbito coma. Ao que tudo indica, o garoto foi empurrado pelo pai (Aaron Paul) e todos os detalhes da tragédia estão sendo relatados por uma mãe superprotetora e aparente mocinha da história (Sarah Gadon). Enquanto isso, numa realidade onírica paralela própria da psique infantil e bombardeada com narrativas de ficção, ele conversa com um monstro intangível e dotado de características subaquáticas - pedras, mariscos e algas que se fundem com uma pele murcha e enrugada - sobre... A vida.
Além disso, temos a presença de outros personagens importantes para as tramas e as subtramas, incluindo o psiquiatra de Louis (Oliver Platt), que foi contratado para cuidar da antissociabilidade do protagonista, e o pediatra Allan Pascal (Jamie Dornan), que monitora a possível evolução corporal do menino em coma enquanto tenta lidar com uma desesperada Natalie (Gadon) e com a chefe da polícia local, a Detetive Dalton (Molly Parker), cujo time ainda procura pelo pai desaparecido, apontado como principal suspeito, mas sem qualquer evidência concreta além do depoimento da mãe.
Sim, as linhas narrativas são muitas - e eu nem cheguei na melhor parte: depois de longas investigações, descobrimos que na verdade Peter (Paul) também sofreu o acidente no penhasco e foi encontrado boiando num dos canais do rio, completamente castigado pelas intempéries naturais e possivelmente concluindo o crime. Mas conforme as conversas metafísicas e intimistas se desenvolvem, somos apresentados a um ramo na neurociência que se mistura de forma híbrida com as possíveis conexões do além-vida e... Bem, a coisa fica ainda mais complexa e saturada.
O grande problema de A Nona Vida é justamente este: querer contar muitas coisas sem saber como. A obra perpassa por diversos gêneros, oscilando entre o thriller psicológico para o dramalhão conjugal para a aventura fantástica, sem saber onde se fixar. O que começou como uma narrativa contada a partir dos olhos de uma criança "incomum" aos olhos da sociedade - dotada de um amadurecimento notável e com um potencial exploratório incrível - terminou com uma mixórdia desequilibrada pontuada com cenas de sexo à la Cinquenta Tons de Cinza (sim, Dornan de novo) e diálogos extremamente mal-estruturados e clichês.
A estética assemelha-se a produções anacrônicas e com uma cronologia não-linear, como O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, mas sem o mesmo refinamento estético. A própria cenografia contraria as normas do bom senso - e apesar disso, nossa atenção é um pouco desviada destes deslizes pela tétrica trilha sonora que combina com o "tom" do filme e pela direção de arte, cujos tons de verde, marrom e azul-escuro fazem parte da paleta de cores. A justaposição de cores complementares também é presente e funciona brevemente, ao colocar Gadon dentro de um arco místico cujo figurino preza pelo vermelho em contraposição ao verde.
A fotografia confusa e a montagem em cortes bruscos não contribui em nada para desviar a atenção de um roteiro cheio de furos. Talvez um dos únicos pontos altos é a chegada da Violet, avó de Louis, interpretada pela sempre ótima Barbara Hershey. Sua presença traz peso à cena e ajuda a elevar um pouco o nível do filme. O clímax principal, apesar de não explorado, vem sem precedentes e consegue arrancar alguns suspiros de surpresa dos espectadores.
Em suma, A Nona Vida de Louis Drax é um filme com potencial desperdiçado, principalmente no tocante ao elenco. Nem mesmo os visuais de Paul como o monstro (spoiler alert) são capazes de satisfazer um público que anseia pelo fantástico e pelo novo.