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Crítica | O Mecanismo: 1ª Temporada – A Lava Jato pelas lentes de José Padilha

Não é nenhum segredo que os recentes acontecimentos políticos do Brasil poderiam ser abordados em incontáveis filmes, o que já gerou algumas brincadeiras envolvendo House of Cards, até por parte da Netflix. A Lava Jato, claro, é um desses recentes desenvolvimentos em nosso país que imediatamente ganhou a atenção de realizadores, um deles sendo Marcelo Antunez, que no ano passado nos trouxe o problemático Polícia Federal – A Lei É Para Todos, que não sabia muito bem se fazia propaganda política ou contava uma história. Outro realizador foi José Padilha, que ainda no auge do alcance midiático da operação declarou seu interesse em realizar uma série sobre a tal operação. Eis que surge O Mecanismo.

Não é tarefa fácil, no entanto, criar algo inspirado em uma investigação pautada em dados financeiros, afinal, números não são assim tão atrativos quanto ações de narcotraficantes, para referenciar outra recente produção de Padilha, Narcos. A grande tarefa dessa adaptação do livro Lava Jato, de Vladimir Netto, portanto, seria transformar todas as transações e afins em algo que pudesse entreter o público. Entram aí, claro, as necessárias e bem-vindas liberdades criativas tomadas por Padilha e Elena Soarez, que escreveram o roteiro do seriado, que transformam algo potencialmente maçante em uma tensa narrativa investigativa.

Aqui já abro um adendo para aqueles que esperam “aprender” ou algo similar enquanto assistem a série. Essa é uma obra de ficção, isso é deixado bem claro através do texto que aparece na tela antes de todos os capítulos. Dito isso, em momento algum o texto tem a obrigação ou sequer o dever ético de representar os fatos como eles são. Portanto se vão reclamar de que algo não ocorreu exatamente da maneira como foi apresentada em O Mecanismo, então sugiro que vistam completamente o manto da ignorância e vão perseguir obras como Amadeus, Gladiador, Ben-Hur, dentre centenas outras do Cinema. Assim sendo, podemos mergulhar nesse seriado de investigação meramente baseado em fatos.

Noir à brasileira

O seriado acompanha os agentes da Polícia Federal (ou Federativa, na série), Marco Ruffo (Selton Mello) e Verena Cardoni (Caroline Abras), que investigam o doleiro Roberto Ibrahim (Enrique Díaz), apenas para descobrir que essa investigação os levaria a patamares muito superiores no Brasil, envolvendo grandes empreiteiras, empresas estatais e o próprio governo em si. Após sua aposentadoria forçada, cortesia daqueles que o queriam silenciar, Ruffo continua investigando secretamente, enquanto Verena, com o passar dos anos, se torna delegada e lidera a Operação Lava Jato, com ajuda de outros dois agentes da PF.

A intenção de Padilha em criar uma atmosfera noir é bem clara. O diretor já havia brincado com o gênero anteriormente (mas nem sempre o abraçando totalmente), em obras como Tropa de Elite e Narcos e novamente aqui assume o ponto de vista policial através de sua narrativa, fazendo da Operação praticamente a protagonista da obra, permitindo que efetivamente nos importemos com seu sucesso ou fracasso – a derrota desses agentes, portanto, significaria a morte de um personagem, que aprendemos a apreciar desde os minutos iniciais.

O tom noir aparece através, principalmente, de Ruffo, que é retratado, principalmente, em ambientes escuros, ocasionalmente tragando seu cigarro. A narração em off, claro, desempenha um grande papel para a construção dessa atmosfera, que somente tem a ganhar com a voz rouca de Selton Mello, que encarna a figura do investigador privado mais durão, claramente desgastado pelo sistema que o envolve. Vem como deslize, pois, a intercalação entre o voice-over desse personagem e o de Caroline Abras. Ainda que Verena tenha uma personalidade tão envolvente quanto seu mentor, principalmente em razão de sua implacabilidade, soa estranho ouvir os dois tecendo comentários sobre o que ocorre na trama, como se o texto não se decidisse bem em quem focar. Curiosamente, o ponto de vista, a ideologia, de ambos é praticamente o mesmo, deixando bem claro que o roteiro de Soarez e Padilha poderia ter escolhido apenas um deles para narrar essa história.

Esse vai e vem acaba gerando um dos mais expressivos problemas de O Mecanismo: a superexposição. Sim, algumas explicações sobre o que está acontecendo são mais do que necessárias para nosso entendimento do quadro geral, mas, muitas vezes, a intrusão dessas vozes fora da imagem acabam falando mais do que deveriam, sendo completamente dispensáveis. Bom exemplo disso é o levantamento de suspeita em relação a um dos agentes da equipe de Verena, o que tira qualquer resquício de surpresa, mesmo que a intenção aqui, ironicamente, tivesse sido a de criar o suspense. Em todo caso, trata-se de um problema menor, que incomoda, mas não acaba com nosso aproveitamento do seriado.

Devaneios

Essa imersão é mais que garantida pela forma como esses personagens são construídos, permitindo que vibremos a cada prisão (ou tentativa de) e fiquemos irritados a cada vez que alguém sai impune. A ágil estrutura assumida pela narrativa, claro, ajuda nesse quesito, ao passo que, a cada episódio, testemunhamos eventos importantes, sem o costumeiro lenga-lenga das séries originais da Netflix (seriados da Marvel, estou olhando para vocês). Isso sem falar na constante sensação de corrida contra o tempo transmitida pela narrativa – em todo momento sentimos que algo pode dar errado e que eles, de fato, precisam correr para conseguir prender alguém. Há, portanto, muito a ser absorvido em cada capítulo, o que acaba renovando nosso interesse em uma base constante.

Para que possamos conhecer cada um desses personagens é apenas natural que o texto faça uso de algumas subtramas (com em qualquer série) para poder desenvolvê-los mais a fundo – afinal, a investigação em si é apresentada com bastante objetividade, tendo como foco os obstáculos e a reação desses personagens a eles. Já as subtramas levam esses indivíduos para caminhos mais pessoais e dentre elas temos o caso de Verena com alguém do Ministério Público, a relação familiar de Ruffo, dentre outras.

Em primeiro momento, eles soam mais como meros devaneios, que, aparentemente, não irão levar a nada. Conforme a série progride, felizmente, vemos essas linhas narrativas paralelas caminhando para um mesmo lugar, permitindo que saiamos da mesmice e que barreiras, anteriormente intransponíveis (em termos de história), sejam quebradas. Assim sendo, a narrativa da série segue de maneira bastante orgânica, ainda que, em dados momentos, adquira uma leve lentidão, como algumas cenas de sexo, que acabam sendo justificadas no fim, embora uma ou outra ainda pudesse ter sido cortada.

Por outro lado, a dedicação de todo o elenco principal mais que compensa esses breves tropeços da história, em especial de Selton Mello e Caroline Abras, que já havia se destacado em sua breve participação em Gabriel e a Montanha. Ambos trazem figuras implacáveis e bastante plurais, nas quais conseguimos verdadeiramente acreditar. Vemos ali pessoas e não ícones infalíveis, o que muito contribui para o necessário realismo da obra.

A Corrupção como antagonista

Ajuda, também, nosso aproveitamento do seriado, a visão mais neutra assumida por Padilha. Ainda que governos sejam criticados, a obra deixa bem claro que existe corrupção em ambos os lados (direita e esquerda) e mesmo dentro da Polícia Federal. Os agentes principais são livrados de qualquer questionamento ligado à corrupção, mas são exibidos como pessoas que enfrentam seus problemas particulares, não sendo colocados, portanto, em pedestais. Eles meramente tentam fazer seus trabalhos e o comportamento de Verena é perfeitamente justificado pela mentoria de Ruffo, que, por si só, é uma pessoa bastante instável.

Com isso tudo, cria-se uma narrativa na qual o principal antagonista é a corrupção em si e não uma pessoa em específico. O líder da empreiteira Brecht é pintado como um dos grandes por trás de todo esse mecanismo, mas ele é apenas mais uma peça. Dito isso, ninguém é livrado de sua culpabilidade, o que condiz com a visão do seriado, que, como já dito, tem como protagonista a investigação em si.

Para possibilitar isso, a direção de arte é certeira na forma como retrata a disparidade entre os investigados e os investigadores. Enquanto de um lado temos moradas suntuosas, carros topo de linha e roupas de aparência mais cara (quase sempre estão de terno), do outro vemos uma situação mais humilde, bom exemplo disso é o caso de Ruffo, que mora em uma casa praticamente caindo aos pedaços, ponto que é ampliado pelo armazém no qual ele continua a investigação. O simples fato de Padilha mostrar os investigados principalmente em tomadas diurnas amplia essa nossa percepção, aumentando a nossa sensação dessa fortuna desviada dos cofres públicos.

Um Mecanismo que se autoalimenta

O seriado nos deixa, então, como aquele gosto agridoce na boca. Temos a nítida percepção de que esse ciclo de corrupção dificilmente irá acabar, mas não por isso os personagens principais irão deixar de investigar. Com um grande cliffhanger Padilha deixa as portas para uma segunda temporada abertas e sabiamente mantém nossa curiosidade em alta em relação a algumas das subtramas iniciadas nesse ano inaugural. Sabendo parar na hora certa, o realizador também permite que os eventos da vida real se desenvolvam, gerando automaticamente mais material que possa ser utilizado em sua série fictícia.

O Mecanismo, no fim, vem como um grande acerto para a Netflix. Trata-se de uma série que sabe mergulhar naquilo que importa, sem ter medo de atacar os dois lados da moeda. Com personagens carismáticos e uma atmosfera tensa, com toques de noir, José Padilha já nos deixa ansiando por uma segunda dose de sua mais nova obra, por mais que seja difícil enxergar um final feliz para qualquer um desses personagens, levando em conta a nossa trágica realidade brasileira.

O Mecanismo – 1ª Temporada (Brasil, 2018)

Showrunner: José Padilha
Direção: José Padilha, Felipe Prado, Marcos Prado, Daniel Rezende 
Roteiro: José Padilha, Elena Soarez (baseado no livro de Vladimir Netto)
Elenco: Selton Mello, Caroline Abras, Alessandra Colassanti, Enrique Diaz, Jonathan Haagensen, Leonardo Medeiros, Otto Jr., Suzana Ribeiro, Antonio Saboia
Episódios: 8
Duração: aprox. 45 min. cada episódio

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Publicado por Guilherme Coral

Refugiado de uma galáxia muito muito distante, caí neste planeta do setor 2814 por engano. Fui levado, graças à paixão por filmes ao ramo do Cinema e Audiovisual, onde atualmente me aventuro. Mas minha louca obsessão pelo entretenimento desta Terra não se limita à tela grande - literatura, séries, games são todos partes imprescindíveis do itinerário dessa longa viagem.

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