Zoë Kravitz junta-se em 2024 ao seleto grupo de atrizes famosas que viraram diretoras nos últimos anos, como Olivia Wilde, Elizabeth Banks e Greta Gerwig. Seu novo filme, “Pisque Duas Vezes”, revisita alguns clássicos e outros sucessos recentes (veja no final do texto) para mexer com temas quentes do noticiário, paranoia e cinema de gênero, com um resultado provocativo, mas irregular.
Na trama, Frida (interpretada por uma Naomi Ackie muitos tons acima do necessário) é uma garçonete que cai nas graças do bilionário Slater (Channing Tatum, ator de uma fisionomia só) e é convidada para passar uma temporada em sua ilha particular. Frida viaja acompanhada pela amiga Jess (Alia Shawkat, que rivaliza com Naomi no histrionismo) e começa a conviver com um grupo de mulheres e outros desocupados privilegiados. Aos poucos, a garçonete passa a desconfiar que a rotina dos visitantes não é exatamente o que parece e briga com a própria memória para tentar entender o que está acontecendo.
Não demora muito para o espectador se dar conta de que os temores de Frida são fundados e algo de muito errado acontece naquela ilha. Kravitz tenta construir suspense, mas esbarra na própria abordagem maneirista das cenas (o excesso de planos fechados que resume a narração a uma sucessão de rostos, ombros e nucas, não aproveita o espaço nem permite que os atores “respirem” na tela, um cacoete da geração de cineastas formada assistindo a vídeos nas telas de celular), o que por sua vez obriga a edição a exagerar nos cortes e efeitos sonoros para construir “tensão”. Este é o ponto fraco do filme.
Kravitz: provocar sem aborrecer nem se aprofundar
Por outro lado, quando se assume como crônica social, o filme mostra ser provocativo ao limite, expondo uma realidade que hoje é conhecida do noticiário policial e que faz referência a uma famosa “ilha da fantasia” bizarra para onde celebridades e políticos costumavam se dirigir, em busca de diversão descompromissada (e muitas vezes, abusiva) com garotas de pouca idade.
Como sutileza não é o forte nem do roteiro (da própria Kravitz e de E.T. Feigenbaum, oriundo da TV), nem de Naomi Ackie, o filme irá transitar durante uma hora e meia entre a espera pela “revelação” do mistério e a atmosfera satírica do grupo de amigos, no qual os personagens masculinos reduzem-se aos estereótipos esperados (o bonitão lacônico, o tiozinho beberrão, o gordinho atrapalhado, o adolescente sem nada na cabeça, o ex-militar de cara fechada, etc.). Ao optar pela caricatura, o filme perde a oportunidade de realmente discutir a “questão social” sobre a qual quer se debruçar, e o que sobra é pouco mais que pantomima e correria. O destaque fica por conta de Adria Arjona, capaz de ser ambígua e divertida em cena sem parecer que vai começar a cantar a qualquer momento (como a dupla de protagonistas).
Por mais que se admire a recente onda de mulheres na direção, é sempre bom lembrar que a aventura feminina na realização não começou com a atual geração de cineastas-celebridades, constituindo uma longa e gloriosa jornada que remete não só a diretoras (como Ida Lupino, Agnès Varda, Chantal Akerman, Lina Wertmüller, Nora Ephron, Kathryn Bigelow, Liliana Cavani, Jane Campion, Barbra Streisand, Nadine Labaki, etc.) como a produtoras igualmente importantes (desde a pioneira Mary Pickford até Kathleen Kennedy, Debra Hill, Gale Anne Hurd e tantas outras). Isso sem contar uma infinidade de profissionais atuantes em outras funções, como roteiristas, figurinistas, montadoras e diretoras de arte. É impossível falar da história do cinema sem lembrar nomes como de Milena Canonero, Thelma Schoonmaker, Verna Fields, Polly Platt e por aí vai…
Como toda obra de arte “engajada”, “Pisque Duas Vezes” precisa se equilibrar entre os temas nos quais tem interesse (notadamente “esquecimento” e “perdão”, a relação entre homens e mulheres, mas também relações de poder econômico e luta de classes) e outros que seriam igualmente relevantes, mas que o filme precisa deixar de lado para não se perder no enredo (por exemplo, por que motivo os “nativos” da ilha comunicam-se apenas por balbucios ou expressões faciais, como se não dominassem idioma algum). “Engajamento” tem limite, né, Zoë?
No final das contas, a estreia da filha de Lenny Kravitz mostra-se um entretenimento descompromissado, que toca superficialmente temas delicados do convívio social sem se aprofundar. Não ofende nem aborrece, mas será facilmente esquecido.
Referências a um clássico e outros filmes recentes
No parágrafo seguinte, não haverá nenhuma revelação a respeito da trama, mas sim referência a outros filmes que influenciaram “Pisque Duas Vezes” e que, por isso, poderão dar spoilers indiretos. Se você não quer saber absolutamente nada sobre o enredo, pare de ler agora.
Como praticamente todo novo filme desde os primórdios é um jogo de espelho com filmes anteriores, aqui não seria diferente. Kravitz divide com Olivia Wilde (em “Não Se Preocupe, Querida”) uma referência comum no clássico dos anos 1970 “As Esposas de Stepford”, misturando um pouco a misandria do best-seller de Ira Levin com o clima “Twilight Zone” de Jordan Peele no brilhante “Corra!”. Além dessas duas referências, “Pisque Duas Vezes” mistura elementos já vistos em filmes como “O Círculo” (2017) e “Piscina Infinita” (2023), sendo mais provocativo e original que o primeiro, mas menos apelativo que o segundo. Se você ainda não entendeu a qual “ilha real” a “ilha fictícia” remete, procure por “Jeffrey Epstein” no noticiário policial.
A ironia final fica por conta da trilha musical (excelente, por sinal), que inclui ao menos duas canções de James Brown, não conhecido exatamente por sua correção no trato com mulheres. Kravitz não sabia disso, não deu importância ou quis ser novamente provocativa?