Na crescente onda de novas realizadoras dentro da indústria, a francesa Coralie Fargeat (do anterior e nem tão conhecido Vingança, de 2017) conquistou grande reconhecimento em Cannes este ano ao levar o prêmio de melhor roteiro por A Substância, que chega agora aos cinemas brasileiros. Seu filme é uma mistura provocativa (mas também apelativa) de ficção científica, horror e comedia de humor negro.

Na trama, Elisabeth Sparkle (Demi Moore) é uma estrela de TV decadente que, após perder seu emprego como apresentadora, decide utilizar uma terapia experimental e secreta que replica suas células de modo a criar um clone mais jovem de si mesma (Margaret Qualley) e que pode ser usado sob condições e prazos muito específicos. Quando as circunstâncias levam a uma repetida infração das regras do experimento, as consequências são devastadoras para a paciente.

Por que o filme tem chamado tanta atenção

Embora se alongue demais – especialmente num clímax exagerado e escatológico – o filme consegue divertir e, ao mesmo tempo, propor uma reflexão superficial a respeito do culto à juventude e à aparência (especialmente feminina), uma exigência constante e estimulada pelos meios de comunicação de massa. A atuação de Moore é particularmente comovente (porque ela literalmente é “desmontada” na tela), mas o filme dificilmente funcionaria tão bem se seu contraponto não fosse interpretado por uma radiante Margaret Qualley.

A pretensão de “crítica social” de A Substância perde força por apostar completamente na caricatura e em soluções esquemáticas de roteiro. Todos os homens no enredo são figuras patéticas e desprezíveis, o que reduz a observação sociológica ao nível do desenho animado. Além disso, a fixação em mostrar imagens “chocantes” (sangue, vísceras, ferimentos) soa infantil e apelativa, deixando pouco espaço para a sutileza e a imaginação da plateia.

Outra deficiência do filme está em soluções de roteiro que desprezam completamente a lógica interna, como quando Elisabeth se transforma magicamente numa marceneira profissional ou quando, já bastante debilitada fisicamente, consegue correr e carregar peso com extrema facilidade. A aposta na “ficção científica” muitas vezes é entendida de maneira cartunesca, o que coloca o filme muito abaixo de clássicos do gênero (que respeitam a verossimilhança mesmo dentro de premissas fantásticas).

Mais um filme repleto de referências

A Substância se nutre de diferentes fontes para construir seu universo imaginário e visual, que aliás é bastante poderoso e um dos seus pontos altos. A mais evidente delas é o cinema de David Cronemberg, mas também ficam bastante explícitas as citações a Stanley Kubrick (especialmente com Laranja Mecânica e O Iluminado), não só em detalhes do cenário e direção de arte de modo geral (repare no carpete do estúdio e nas paredes vermelhas), no figurino de Harvey (Dennis Quaid), como também na composição geométrica de muitos quadros e no uso de lentes mais curtas. Ao final, Fargeat não se contém e chega a usar “Assim Falava Zaratustra” de Richard Strauss para sua apoteose.

Outras referências estão nos clipes musicais dos anos 1990 (como os de Benny Benassi, uma evidente fonte de inspiração para as coreografias do show de Sue) e o clássico de horror B dos anos 1970, Nasce um Monstro.

É difícil ser indiferente ao filme, mas…

Ao escolher o choque e não a sutileza e deixar pouquíssimo espaço para o juízo do espectador, A Substância não permite que a plateia fique indiferente, provocando ora repulsa, ora riso nervoso. Mas acidentes de carro, quebras bancárias e velórios de crianças tampouco deixariam a mesma plateia indiferente (e nem de longe são coisas boas). Se apostasse menos no horror visceral e mais na intensa presença e no jogo de cena de sua dupla de talentosas atrizes, o filme fatalmente sobreviveria melhor ao tempo. Veremos quantos cinéfilos ainda se lembrarão dele daqui a 10 anos.

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