A primeira pergunta que o espectador do Coringa de 2019 dirigido por Todd Phillips se faz é por que motivo ele decidiu que a continuação, Coringa: Delírio a Dois, seria um musical. Essa pergunta permanece sem resposta convincente pelas mais de duas horas de projeção, e o estranhamento (aqui, no mau sentido do termo) é acentuado pelo fato de que todos os números musicais poderiam ser retirados da edição sem que nada da narrativa fosse prejudicado. O novo filme seria mais curto, mais ágil e mais realista – como o primeiro. Não que qualquer dos números seja embaraçoso, ou que as canções sejam ruins, mas elas parecem realmente enxertadas num conjunto que, sem elas, funcionaria melhor.

Talvez a melhor explicação seja que, assustado com a repercussão do primeiro filme e com a seriedade com a qual o personagem-título havia sido rapidamente incorporado à cultura popular na interpretação de Joaquin Phoenix, Phillips quisesse com as canções e o também gratuito desenho animado que abre o espetáculo, tirar do enredo o peso de realidade e a crueza (que eram por acaso as maiores qualidades do filme original). É como se ele passasse este segundo filme o tempo inteiro avisando a plateia: “Veja, não leve tão a sério! É apenas um delírio! Não se trata da realidade! Veja: eles começaram a cantar!”. E assim por diante.

Na nova trama, Arthur Fleck (Phoenix) está encarcerado no Hospital Arkham enquanto aguarda o julgamento pelos cinco assassinatos cometidos por ele no primeiro filme. Então conhece uma outra paciente, Lee Quinzel  (Lady Gaga), uma “Arlequina” vacilante, que viverá com ele um caso de amor, mas também de manipulação psicológica que se inverte no decorrer do enredo.

Se o Coringa do primeiro filme tem um arco perfeitamente construído, e tudo que lhe acontece e tudo que ele faz acontecer parece ter sentido ainda que de forma mórbida, aqui a aparente conturbação da direção supera a do protagonista: ora o Coringa volta a ser a figura ambígua pela qual a cultura popular tornou-se fascinada, ora se converte numa espécie de “terceiro personagem” (nem Fleck, nem Joker), que comenta o que está acontecendo consigo mesmo, como se pedisse desculpas pela fama conquistada por maus motivos. E os números musicais funcionam como uma espécie de espelho desse “novo personagem”, que aqui não passa de um menino crescido e arrependido de suas violentas malcriações.

Sem invenções ou viradas mirabolantes, sem multiversos ou escudos mágicos, o roteiro do filme de 2019 trazia para a dura realidade de uma metrópole digna de Taxi Driver um personagem saído do universo escalafobético das histórias em quadrinhos, e essa contraposição entre o suposto vilão saído de um filme de heróis e o drama humano, arrebatador, da solidão e do desespero de um anônimo da metrópole, capturou com precisão o “espírito do tempo”, de modo que o público abraçou o personagem antes de condená-lo por seus crimes. Se ele fosse mais um mero vilão de HQ, o sucesso teria sido menor e a própria versão do personagem, esquecida.

Nesta continuação, em 2024, Phillips poderia ter convertido o “drama de rua” do original em um drama de hospital (ao estilo Um Estranho no Ninho, para manter o universo de referências na Nova Hollywood) ou mesmo num drama de tribunal. Sem dúvida, a saída confusa (para não dizer medrosa) foi a de fazer um musical e derrubar o castelo todo que ele havia construído de uma vez. Então, aqui não há mais muito espaço para as ambiguidades de Fleck: ele é enfim um maluco com tendências homicidas que descola uma namorada manipuladora para, de maneira incerta, tentar conduzir a opinião pública, com resultados duvidosos tanto para eles mesmos quanto para quem assiste.

Algumas qualidades do primeiro filme resistem, como a excelente fotografia, a ambientação caprichada e mais uma performance poderosa, incômoda, de Phoenix. Lady Gaga está contida, tanto atuando, quanto cantando, e a verdade é que o filme perderia pouco se, em seu lugar, estivesse outra atriz, eliminando também toda a parte musical dispensável. Como balanço, a continuação acrescenta quase nada ao universo proposto em 2019 (para não dizer que o destrói por inteiro) e dificilmente terá o sucesso ou deixará marca na cultura popular como aconteceu da primeira vez. Se o “espirito da época” continua o mesmo de cinco anos atrás, o primeiro Coringa continua sendo a síntese perfeita; se, por outro lado, já se modificou, não será em Coringa: Delírio a Dois que seremos capazes de identificá-lo.

 

 

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Daniel Moreno

Cineasta, roteirista e colaborador esporádico de publicações na área, diretor do documentário “O Diário de Lidwina” (disponível no Amazon Prime e ClaroTV), entre outros.

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