Este é o tipo de filme que consegue dividir a audiência antes mesmo de sua estreia por estar diretamente relacionado a uma polarização da realidade política (no caso, entre progressistas e conservadores sobre Trump). Claro que, em termos cinematográficos, isso prejudica a forma como a produção é vista, para o bem e para mal: quem não gosta do personagem retratado tende a minimizar os defeitos do filme, enquanto quem é seu admirador irá no sentido oposto.

O fato é que O Aprendiz não parece muito interessado em ser fiel à realidade dos fatos. Há um aviso que abre o filme e explica isso, mas não só: seu diretor (Ali Abbasi, de Holy Spider) deixa isso muito claro quando declara que pretendia “fazer uma versão ‘punk rock’ de um filme histórico, o que significa que tínhamos que manter um pouco da energia, uma certa ideia [e não] sermos minuciosos demais sobre os detalhes e o que é verdadeiro ou falso”, conforme ele esclareceu à Vanity Fair em Cannes.

Claro que quando você se refere a um personagem que não apenas existe, como está concorrendo ao cargo mais importante do mundo (a presidência dos Estados Unidos) é preciso ser muito ingênuo para aceitar a alegação do cineasta. O fato agrava-se porque o filme é lançado não seis meses antes, tampouco um mês depois, mas precisamente um mês antes de as próprias eleições em que ele concorre acontecerem. É “punk rock” demais para um filme só.

Narrativa sobre Trump muda de tom no meio da projeção

O enredo concentra-se num período específico da vida do milionário Donald Trump, a partir do momento em que ele tenta alavancar sua própria carreira no mundo dos negócios e troca o círculo de influência do pai (uma figura depreciativa) pela do advogado e lobista de bastidor Roy Cohn (já retratado no documentário Bully. Covarde. Vítima – A História de Roy Cohn, um original HBO). Cohn funciona como figura mefistotélica até a metade da trama, quando os papéis se transformam e também quando o filme desiste da linha que seguia até então.

A primeira metade é um retrato frenético das transformações sofridas por Nova York na passagem entre uma cidade decadente e deteriorada por uma nova paisagem, cujos edifícios erguidos por Trump funcionam como símbolo de revitalização mas também de ferocidade contra as políticas públicas progressistas até então adotadas. É também quando o jovem Trump conhece Ivana, uma modelo do leste europeu que acaba seduzida pelo assédio do empresário e a promessa de uma vida luxuosa.

Até determinado ponto, o roteiro trabalha bem as contradições e fraquezas de personagens multidimensionais e evita a saída fácil de eleger mocinhos e vilões. Mas é como se o diretor lembrasse de repente que, bem, este não é um filme qualquer, ele será lançado semanas antes da eleição e há um “recado” que deve ser dado. O que eram conflitos humanos convertem-se num retrato caricatural das figuras reais envolvidas e a escolha pela fantasia prevalece, inclusive com passagens que já foram amplamente refutadas pelos envolvidos e encenadas aqui como reais.

Se a lenda é mais interessante que a realidade, filma-se a lenda

Embora a ambientação do filme seja rica e os personagens despertem real interesse por serem figuras que ainda hoje ressoam na mente dos espectadores, não dá pra ignorar o fato de que a dupla de atores central carrega o filme até o fim (especialmente depois que ele vira uma história em quadrinhos vagabunda). Sebastian Stan replica perfeitamente as manias corporais de Trump – embora ele funcione melhor no retrato cômico do que no desfecho, em que ele se converte no Mefisto por si mesmo – mas é Jeremy Strong (o ator excepcional da série Sucessão) quem rouba a cena, num desempenho comovente, minucioso e que consegue emocionar mesmo depois que o filme desistiu de ser uma obra cinematográfica para virar mais um instrumento de proselitismo mesmo que o “espirito do tempo” exige.

Caso mantivesse até o final a ambiguidade e a ironia mais fina com que inicia seu filme, Abbasi superaria a polarização irritante e reducionista que impera no debate cultural. No final, o que resta é a demonização sobre uma personalidade da vida real que pouco ajuda a compreender o contexto e o momento histórico em que esse grupo de figuras públicas esteve e continua a estar inserido. Sempre que o cinema torna-se mero instrumento de doutrinação política -e isso vale para ambos os lados, visto que também os conservadores ridicularizados aqui são especialistas em reduzir o fenômeno artístico ao discurso ideológico que lhes convém – é como se houvesse uma eleição em que todos perdem ao mesmo tempo.

Mostrar menosContinuar lendo

Daniel Moreno

Cineasta, roteirista e colaborador esporádico de publicações na área, diretor do documentário “O Diário de Lidwina” (disponível no Amazon Prime e ClaroTV), entre outros.

Mais posts deste autor