Entre os diretores de cinema sul coreanos que alcançaram maior projeção nas últimas décadas (representantes da era de ouro do cinema do país), Bong Joon Ho não só é aquele que garantiu um lugar de maior destaque na indústria, como também é o que parece mais bem ter compreendido a noção de espetáculo que se exige de grandes produções que possam alcançar a base do público espectador.
Diferente do falecido Kim Ki-duk (e seu estilo espiritualizado e mais “oriental”), de Lee Chang-dong (cheio de meios-tons e ambiguidades jamais resolvidas), de Park Chan-wook (violento e graficamente exuberante) e de Hong Sang-soo (minimalista e algo “bressoniano”), o cinema de Bong Joon transita entre gêneros e aposta num olhar mais caricatural, quase burlesco, sobre temas sociais.
Se observarmos a carreira de Bong Joon, é possível diferenciar dois tipos de filmes: aqueles em que o cineasta parece deter-se nos meandros da sociedade sul coreana através de uma observação mais intimista (casos de Parasita, Mother: A Busca pela Verdade e Memórias de um Assassino) e aqueles em que ele se abre para o mercado internacional e pratica um cinema mais de gênero (como em O Hospedeiro, Expresso do Amanhã e Okja). Apesar disso, seu estilo está sempre presente e tende inevitavelmente à sátira. Para infelicidade do público, Mickey 17 pertence ao segundo grupo de filmes, bem menos interessante e original que o primeiro.
Ficção científica tenta manter o tom em meio a uma sucessão de cenas cômicas
Na trama futurista, Mickey Barnes (Robert Pattinson) e Timo (Steven Yeun) são dois sócios num empreendimento de doces na Terra que terminam por se endividar junto a um perigoso criminoso. Com medo de serem mortos e sem dinheiro para saldar a dívida, ambos se aventuram numa viagem espacial patrocinada pelo magnata e político derrotado Kenneth Marshall (Mark Ruffalo), que por sua vez pretende iniciar uma colonização fora do planeta com pretensões religiosas (que na verdade jamais ficam claras pelo roteiro). Mickey opta por assumir a função de “dispensável”, um funcionário descartável que é seguidamente clonado para nascer e servir a experiências médicas até renascer num novo corpo mantendo sua psique (talvez nem tanto…) e memórias. Conforme a história avança e os exploradores planetários são confrontados com uma estranha espécie animal no novo planeta, a experiência com Mickey sai de controle e ele se vê às voltas com duas personalidades conflitantes e vivendo paralelamente.
Se num filme como Parasita, seu grande sucesso, a trama se sobrepõe ao registro quase cartunesco dos personagens e a absurdidade das situações, em Mickey 17 o caráter gratuito e cabotino na encenação ajuda o filme a despencar, especialmente num epílogo alongado que enfileira dois ou três falsos desfechos – desapontando seguidamente o público em cada um deles. O enredo morre e renasce como seu protagonista, e cada novo ciclo parece menos interessante que o anterior.
Realizador de sucesso, Bong Joon conta com o melhor da indústria a sua disposição e, embora ambientação e efeitos estejam no nível (esperado, diga-se de passagem) da pura excelência, é o elenco bem escolhido que segura o filme. Pattinson hoje é um ator bastante versátil; Ruffalo praticamente repete o histrionismo de seu personagem em Pobres Criaturas (mas o efeito cômico continua funcionando); Toni Collette é uma atriz rotineiramente maravilhosa; e Naomi Ackie modula melhor seus trejeitos que em Pisque Duas Vezes, apresentando uma performance cativante na tela.
Um filme, contudo, é um todo de significado, e não apenas um conjunto específico de boas atuações. Mickey 17 tem extrema dificuldade em manter viva a sátira, a trama e o desenrolar por intermináveis duas horas e 17 minutos. Caso fosse ligeiramente menos pretensioso em sua grandiloquente mistura de interesses e gêneros (comédia, Sci-Fi, crônica social, visão distópica do futuro, filme de gângster) e se aprofundasse em um ou dois interesses no máximo, o resultado seria mais leve e reflexivo. Como em toda adaptação literária (aqui, da obra de Edward Ashton), o filme ganha a vantagem de contar com material dramático além do que um filme necessita (podendo optar pelas melhores partes e cortar tudo que é supérfluo), mas hesitar em escolher o que é realmente importante (como parece ser aqui o caso) trabalha contra o enredo e o resultado pesa na tela.
Crítica social sobrevive à ação desenfreada e gratuita do epílogo
Como acontecera anteriormente em O Hospedeiro e Okja – nos quais o cineasta voltava sua mordacidade para a indústria química e a alimentícia, respectivamente – , em Mickey 17 o alvo de Bong Joon é a ciência médica e seu arsenal interminável de horrores instrumentalizados (tendo aqui por alvo o indefeso Barnes). O olhar do cineasta para a profunda desumanização envolvida na industrialização da vida humana e na relação desta com outras espécies é o ponto digno do filme, que peca como espetáculo para se manter de pé como crítica social.
Mickey 17 está longe de ser um grande filme, funcionando ora como comédia, ora como crítica social, sem contudo se decidir muito bem entre um e outro (um equilíbrio que o diretor encontrou com o Parasita, embora também lá ele não estivesse a salvo de uma tendência irrefreável a pesar a mão na encenação). Mas nada funciona tão mal quanto o clímax de coloração épica e que pouco se comunica com o tom espontâneo do restante do filme, um conjunto de tentativas dramatúrgicas algo desconexas de um realizador talentoso e bem-sucedido