Rever um dos maiores clássicos de sua história foi um desafio para a Disney ao converter Branca de Neve e os Sete Anões, de 1937, num live action adaptado ao gosto e expectativas do público de 2025. A proeza foi iniciada de maneira atabalhoada, e desde o princípio a questão do elenco causou polêmica.
A primeira decisão a ser tomada seria o que fazer com os “sete anões”, uma vez que a declaração egoísta de Peter Dinklage – desestimulando que sete outros atores como ele pudessem ter a oportunidade de mostrar seu talento numa grande produção – imediatamente colocou o estúdio numa saia justa. A decisão de converter os personagens originais em criaturas puramente fantasiosas limitou toda a interação da protagonista com atores reais em uma parcela significativa da projeção. Se ela cantasse e dançasse em meio a outros sete atores humanos, o resultado teria sido mais interessante que cantar e dançar para uma simulação matemática? A resposta parece óbvia se continuarmos vendo no gênero humano a melhor expressão do talento artístico. Ponto negativo logo de saída.
A segunda decisão sobre o elenco seria quem escalar nos dois papeis principais e, mais uma vez, a decisão dos produtores revelou-se bastante problemática: era preciso dosar com inteligência a “batalha de carismas” entre Branca de Neve e a Rainha Má. Quem conhece o enredo original sabe que a segunda inveja a primeira, mas isso faz sentido na tela com Gal Gadot invejando Rachel Zegler? Sem entrar no mérito de um concurso de beleza, a ideia não funciona – a ponto de o filme ter que “esconder” Gadot a maior parte do tempo, porque sempre que ambas dividem a tela a questão retorna e o cinema não costuma dar margem a dúvidas nesse sentido. Poderia Zegler ao menos vencer um concurso de simpatia diante de Gadot? Não parece ser este, tampouco, o caso, de modo que o problema na escalação errada vai dominar a projeção por quase 100 minutos.
Comparação óbvia com Wicked não ajuda o filme
A trama de Branca de Neve é uma das mais bem reconhecidas da história do cinema e permanece por quase 100 anos no imaginário da audiência. Branca de Neve (Rachel Zegler) é a princesa convertida em prisioneira em seu próprio reino depois que a Rainha Má (Gal Gadot) conspira para assassinar o rei e dar sumiço na própria, o que não acontece porque o responsável pelo seu assassinato permite que ela fuja. Sozinha na floresta, Branca acaba por interagir com um grupo de rebeldes que se esconde do exército da Rainha Má, além de se hospedar na casa dos “anões” que trabalham numa mina.
Se o desenho animado tem pontos altos dos quais é difícil se esquecer (a cena da maçã envenenada, por exemplo), o filme opta por reconfigurar a trama, alternando números musicais com um conflito mais localizado – por exemplo, na subtrama romântica entre Branca e o rebelde pelo qual ela se apaixona (Andrew Burnap). Se a floresta era um espaço sombrio no original de 1937, aqui os perigos parecem diluídos numa atmosfera mais para Robin Hood, “opressores contra oprimidos” e humor despreocupado.
A comparação mais óbvia e imediata para Branca de Neves é com o também musical de fantasia (e também releitura de um cânone de Hollywood) Wicked, e tal comparação é muito desfavorável ao filme dirigido por Marc Webb (de (500) Dias com Ela, entre outros). Enquanto Wicked tem números musicais arrebatadores, uma integração bem mais natural entre atores reais e CGI e uma trama onde os conflitos são bem explorados, Branca de Neve parece transitar o tempo todo entre um filme infantil e uma releitura “amadurecida” para as infantilidades da história original, de modo que em momento algum o espectador está bem posicionado diante da tela: nem a contraposição entre a princesa e a madrasta prevalece, nem o ambiente de “fantasia pura” representado pelos “anões”, ficando o enredo pendurado entre ser uma coisa e outra, acabando por não ser exatamente coisa alguma.
A releitura não passa vergonha, mas dificilmente se equipara ao filme original
É difícil ignorar que o conflito central da história original e que desencadeia a crise de inveja da Rainha contra Branca simplesmente não funciona aqui. Se Zegler fosse substituída por Ariana Grande, por exemplo, a despretensão e simpatia da protagonista diluiriam a exuberância de Gadot, mas não é o caso: Rachel é uma atriz que, tal qual Zendaya, parece contrariada em cena o tempo todo. Se no caso de Zendaya esse “temperamento” – ou, para sermos mais claros, a cara de que alguém “roubou seu biscoito” – acaba contribuindo para os personagens que ela escolhe interpretar, aqui o prejuízo é evidente porque Branca deveria ser uma presença encantadora, o que dificilmente acontece. Enquanto, por outro lado, Gadot acaba parecendo mais simpática mesmo quando faz coisas terríveis, e isso conduz a trama a uma problemática suspensão de descrença – e a escalação de Burnap não ajuda.
Nada disso significa que o filme não tenha suas qualidades: é ligeiro, bem editado e não se perde em divagações. Embora toque temas sensíveis, nenhum deles predomina de modo a tirar atenção da história original, que permanece acontecendo, embora sem o brilho e os pontos altos tão marcantes do desenho original. O clímax está provavelmente na cena em que a rainha se transforma em bruxa (como, de fato, era o caso no filme de 1937), em que os efeitos visuais casam exemplarmente com a atuação de Gadot. Este é um indício do que poderia ter sido o filme se a produção houvesse optado por escalar sete atores para os papeis dos “anões” e como seria mais interessante assistir a sete presenças humanas com as inumeráveis possibilidades de vozes e expressões (ainda que aprimoradas pelos efeitos visuais).
Com a maior parte das polêmicas fora da tela e antes de o filme ser lançado, Branca de Neve é uma releitura sem brilho (mas também sem vexame) de uma das histórias mais exemplares da velha Hollywood, adaptada cuidadosamente para a nova Hollywood – que aparentemente também se rendeu a um beijo (roubado) tímido do “príncipe”, sem ofender a plateia nem tampouco entusiasmá-la. Vale levar as crianças para ver a versão nova no cinema – e imediatamente rever a antiga (e assustadora, e fascinante, e insuperada) versão de 1937.