Assim como o nacional vencedor do Oscar Ainda Estou Aqui, Meu Nome é Maria é o tipo de filme difícil de ser ignorado. Ambos partem de um relato verídico e ultrajante: o rapto seguido de assassinato de um dissidente político, no primeiro caso, e a agressão sexual de uma atriz recém-saída da adolescência durante a filmagem de um clássico do cinema no segundo.
Partir de histórias reais para construir enredos tem sido um expediente cada dia mais usado pela indústria como uma espécie de “carimbo” de respeitabilidade, o que, como se sabe, praticamente força a comunidade e a imprensa especializada a se debruçar sobre a produção – como se ignorá-la fosse ignorar também um tópico social importante. Na era das redes sociais, em que tudo é motivo de mobilização pública, filmes com personagens reais têm furado a fila e passado na frente de argumentos originalmente ficcionais.
Tanto no caso do filme brasileiro, quanto aqui, as produções têm sustentação cinematográfica que vai além do mero registro de um fato real, o que é fundamental para que o filme não se reduza a um panfleto ou mesmo a um documentário encenado. O que não invalida o fato de que o principal plot de Meu Nome é Maria permaneça como um dos mais ultrajantes abusos cometidos contra uma atriz em set de filmagem de uma produção “respeitável” e “artística”.
Bertolucci era um dos mais festejados cineastas da época
A trama acompanha o início precoce, um auge ligeiro e a alongada decadência de Maria Schneider (Anamaria Vartolomei), a adolescente filha de um ator francês que, ao ser expulsa de casa por uma mãe ciumenta, se vê obrigada a tentar carreira na indústria cinematográfica. Não demora muito para que a protagonista tenha, aos 19 anos, a grande chance de contracenar com Marlon Brando (Matt Dillon) no novo filme do então prestigiado diretor italiano Bernardo Bertolucci (Giuseppe Maggio), à época já festejado como militante comunista em obras como O Conformista e A Estratégia da Aranha.
Numa das cenas de O Último Tango em Paris, Maria é surpreendida por Brando com um ataque sexual totalmente desleal, combinado entre ele e Bertolucci para conferir “maior realismo” à encenação. Aquele momento é determinante na vida da jovem, que fica injustamente marcada como atriz pornográfica, é julgada em seu país e fora dele, e entra numa espiral de autodestruição e drogas por não conseguir se recuperar do trauma.
Para o público de 2025, acostumado a cancelamentos motivados por meras publicações em rede social, soa absolutamente irreal que um estupro tenha sido durante tanto tempo reconhecido silenciosamente pela indústria, de modo que Bertolucci tenha durante décadas continuado uma carreira laureada e lucrativa como se nada tivesse acontecido. Não é, no entanto, um caso isolado: a “história das filmagens” (um ramo dentro da história do cinema mais ampla) tem sido um contínuo laboratório de abusos consentidos dentro do jogo de poder largamente tolerado pela própria comunidade cinematográfica, que enxerga na figura do diretor de cinema um semideus com carta branca para manipular pessoas e recursos conforme sua vontade em nome da liberdade artística. Foram décadas seguidas de violência não apenas contra mulheres, mas também contra técnicos de escala inferior, animais, crianças, recursos naturais, uma herança incômoda que ainda hoje não teve seu balanço bem compreendido nem tampouco reparado.
Filme faz um retrato delicado da alma ferida de Schneider
É reconfortante de algum modo reconhecer que, se o filme de Bertolucci resiste como obra de arte apesar de seu infame procedimento – e que de modo algum é apagado como violência pela qualidade do filme – a trajetória de Maria Schneider é um retrato também bastante honesto e bem conduzido pela diretora Jessica Palud (que por acaso – ou não – trabalhou com o cineasta italiano em Os Sonhadores). Anamaria Vartolomei é uma atriz excelente (conforme já havia demonstrado em O Conde de Monte Cristo e no difícil de engolir Mickey 17) e Dillon está discreto mas convincente como um Brando fatalista que, aparentemente levado por indiferença e egoísmo, embarca na agressão sugerida por Bertolucci como um guardinha de campo de concentração que “cumpre ordens”. Nunca é demais lembrar que estamos falando de dois ícones da contracultura, do progressismo e da revolução dos costumes da década de 1960…
Válido como registro de uma evento revoltante, mas também comovente como filme sem apelar ao sensacionalismo, Meu Nome é Maria presta um discreto tributo a Maria Schneider, que provavelmente não tivesse precisado passar pelo que passou com Bertolucci e teria sido um ser humano mais feliz – mesmo em sua carreira – se só tivesse filmado, depois, com Antonioni e Rivette, por exemplo. Há males que vêm para mal mesmo, e O Último Tango em Paris foi um mal terrível para aquela jovem atriz.