A continuação de Wicked que chega agora aos cinemas é mais uma bem-sucedida mistura de musical e filme de fantasia, tocada pelo habilidoso diretor Jon M. Chu num fôlego único do início ao fim. Com menos exposição e mais ação que a primeira parte, o novo filme reafirma sua disposição de funcionar como um conto de fadas para um público mais maduro – e é aí que residem tanto sua mais notável característica como sua limitação enquanto produto.

Acostumado a uma abordagem bastante superficial do universo fantástico em outros filmes recentes, Wicked: Parte II propõe e exige do espectador uma leitura mais atenta em relação a suas camadas de significado, bem como à teia de papeis que a trama arquiteta cuidadosamente – muitos dos personagens ora agindo como heróis, ora como vilões, o que lhes confere uma dimensionalidade bastante rara no gênero. Embora, ao mesmo tempo e exatamente por isso, possa afastar a audiência infantojuvenil.

O enredo aprofunda conflitos que costumam vir diluídos em outros blockbusters

Sem necessariamente abrir mão do componente fantástico que está na essência do universo criado por L. Frank Baum e já conhecido dentro da história do cinema, o filme joga ganchos variados a respeito de temas com ressonância fora da tela – isso, sem em momento algum se tornar didático ou proselitista, o que é uma inegável qualidade. Há pouco discurso e isso ajuda a conduzir a ação: as preocupações que o enredo traz à tona, entretanto, estão presentes, e servem como pano de fundo (e motor) à ação. É extremamente interessante (por que não dizer, sofisticado) como o roteiro trabalha com as expectativas que ele mesmo cria para, constantemente, lançar o público num jogo provocativo de frustração e recompensa. Todos os protagonistas funcionam de diferentes maneiras, dependendo do ponto de vista assumido pela narrativa. Não há vilanias ou heroísmos fáceis – e isso não é pouco para o atual cinema de entretenimento, mas por outro lado exige da audiência um nível de atenção acima da média do formato.

Na trama, o trio de personagens composto por Elphaba (Cynthia Erivo), Glinda (Ariana Grande) e Fiyero (Jonathan Bailey) move-se num jogo de aparências e contradições que é notadamente social: tudo que fazem ou deixam de fazer é observado pela população de Oz, que por sua vez é manipulada por motivos “certos” e “errados” na direção pretendida pelos protagonistas. Enquanto Elphaba vê sua fama de má crescer, Glinda tem de enfrentar conflitos internos e a luta por um amor eventualmente não-correspondido. Enquanto o trio se move e troca de lugares numa progressão vertiginosa (e bem audaciosa para um filme de fantasia), seus coadjuvantes não deixam de demonstrar um comportamento humanizado e que pouco lembra outras produções do gênero. Mesmo o Mágico (Jeff Goldblum) é confuso e hesitante, nada lembrando o habitual “mestre do crime” que costuma ocupar o papel de “vilão” num filme como este. Tudo em Wicked: Parte II tende à dúvida e a um sentimento de “incompletude” que vende muito caras as respostas e cujas soluções nunca são fáceis.

Os tópicos de interesse do enredo pulsam num segundo plano: aceitação e preconceito, autoimagem, segregação e tirania, opinião pública e vida privada, liberdade de expressão e convivência entre diferentes. Em vez de atravancar a narrativa, tais temas lhe dão suporte e estão bem integrados à trama, novamente não apelando a respostas excessivamente simplificadas ou discursos artificiais, num equilíbrio notável.

Poucas crianças vão realmente “compreender” este filme

Por ser muitas vezes mais “complicado” do que sua proposta pode fazer crer, Wicked: Parte II tem a dura missão de ser um “blockbuster de nicho”. É natural nós fazermos a pergunta: qual público a produção encontra disposto a participar de um espetáculo que é inegavelmente complexo para um mero filme de fantasia? Para crianças pequenas, sua proposta é quase intransponível, e mesmo para o público infantojuvenil a abordagem que ele faz de tópicos como tirania, papéis sociais e perseguição étnica é difícil de digerir. O romance tampouco é resolvido banalmente, e sua abordagem é provocativa, quase atrevida demais para crianças. É quando nos damos conta de que a pequena saga Wicked é uma fantasia que – enfim – mira o público adulto jovem, que enxerga na tela conflitos que lhe são bastante familiares quando transpostos para sua rotina social. Não é um filme colorido e sonoro para qualquer espectador, porque suas matizes são elaboradas e até mesmo confusas em seus conflitos bem humanizados.

O filme consolida-se, enfim, como um duelo afetuoso entre as duas protagonistas e, embora Cynthia Erivo seja uma atriz maravilhosa, Wicked: Parte II é propriedade emocional de Ariana Grande: seu papel é o mais ingrato e, mesmo assim, ela encontra a leveza e a autoironia que não desfaz dos próprios conflitos nem sabota a própria humanidade. Conforme os dois filmes nobremente fizeram.

Daniel Moreno

Cineasta, roteirista e colaborador esporádico de publicações na área, diretor do documentário “O Diário de Lidwina” (disponível no Amazon Prime e ClaroTV), entre outros.

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