Crítica | Pisque Duas Vezes reduz crítica social a entretenimento descompromissado
Zoë Kravitz junta-se em 2024 ao seleto grupo de atrizes famosas que viraram diretoras nos últimos anos, como Olivia Wilde, Elizabeth Banks e Greta Gerwig. Seu novo filme, “Pisque Duas Vezes”, revisita alguns clássicos e outros sucessos recentes (veja no final do texto) para mexer com temas quentes do noticiário, paranoia e cinema de gênero, com um resultado provocativo, mas irregular.
Na trama, Frida (interpretada por uma Naomi Ackie muitos tons acima do necessário) é uma garçonete que cai nas graças do bilionário Slater (Channing Tatum, ator de uma fisionomia só) e é convidada para passar uma temporada em sua ilha particular. Frida viaja acompanhada pela amiga Jess (Alia Shawkat, que rivaliza com Naomi no histrionismo) e começa a conviver com um grupo de mulheres e outros desocupados privilegiados. Aos poucos, a garçonete passa a desconfiar que a rotina dos visitantes não é exatamente o que parece e briga com a própria memória para tentar entender o que está acontecendo.
Não demora muito para o espectador se dar conta de que os temores de Frida são fundados e algo de muito errado acontece naquela ilha. Kravitz tenta construir suspense, mas esbarra na própria abordagem maneirista das cenas (o excesso de planos fechados que resume a narração a uma sucessão de rostos, ombros e nucas, não aproveita o espaço nem permite que os atores “respirem” na tela, um cacoete da geração de cineastas formada assistindo a vídeos nas telas de celular), o que por sua vez obriga a edição a exagerar nos cortes e efeitos sonoros para construir “tensão”. Este é o ponto fraco do filme.
Kravitz: provocar sem aborrecer nem se aprofundar
Por outro lado, quando se assume como crônica social, o filme mostra ser provocativo ao limite, expondo uma realidade que hoje é conhecida do noticiário policial e que faz referência a uma famosa “ilha da fantasia” bizarra para onde celebridades e políticos costumavam se dirigir, em busca de diversão descompromissada (e muitas vezes, abusiva) com garotas de pouca idade.
Como sutileza não é o forte nem do roteiro (da própria Kravitz e de E.T. Feigenbaum, oriundo da TV), nem de Naomi Ackie, o filme irá transitar durante uma hora e meia entre a espera pela “revelação” do mistério e a atmosfera satírica do grupo de amigos, no qual os personagens masculinos reduzem-se aos estereótipos esperados (o bonitão lacônico, o tiozinho beberrão, o gordinho atrapalhado, o adolescente sem nada na cabeça, o ex-militar de cara fechada, etc.). Ao optar pela caricatura, o filme perde a oportunidade de realmente discutir a “questão social” sobre a qual quer se debruçar, e o que sobra é pouco mais que pantomima e correria. O destaque fica por conta de Adria Arjona, capaz de ser ambígua e divertida em cena sem parecer que vai começar a cantar a qualquer momento (como a dupla de protagonistas).
Por mais que se admire a recente onda de mulheres na direção, é sempre bom lembrar que a aventura feminina na realização não começou com a atual geração de cineastas-celebridades, constituindo uma longa e gloriosa jornada que remete não só a diretoras (como Ida Lupino, Agnès Varda, Chantal Akerman, Lina Wertmüller, Nora Ephron, Kathryn Bigelow, Liliana Cavani, Jane Campion, Barbra Streisand, Nadine Labaki, etc.) como a produtoras igualmente importantes (desde a pioneira Mary Pickford até Kathleen Kennedy, Debra Hill, Gale Anne Hurd e tantas outras). Isso sem contar uma infinidade de profissionais atuantes em outras funções, como roteiristas, figurinistas, montadoras e diretoras de arte. É impossível falar da história do cinema sem lembrar nomes como de Milena Canonero, Thelma Schoonmaker, Verna Fields, Polly Platt e por aí vai…
Como toda obra de arte “engajada”, “Pisque Duas Vezes” precisa se equilibrar entre os temas nos quais tem interesse (notadamente “esquecimento” e “perdão”, a relação entre homens e mulheres, mas também relações de poder econômico e luta de classes) e outros que seriam igualmente relevantes, mas que o filme precisa deixar de lado para não se perder no enredo (por exemplo, por que motivo os “nativos” da ilha comunicam-se apenas por balbucios ou expressões faciais, como se não dominassem idioma algum). “Engajamento” tem limite, né, Zoë?
No final das contas, a estreia da filha de Lenny Kravitz mostra-se um entretenimento descompromissado, que toca superficialmente temas delicados do convívio social sem se aprofundar. Não ofende nem aborrece, mas será facilmente esquecido.
Referências a um clássico e outros filmes recentes
No parágrafo seguinte, não haverá nenhuma revelação a respeito da trama, mas sim referência a outros filmes que influenciaram “Pisque Duas Vezes” e que, por isso, poderão dar spoilers indiretos. Se você não quer saber absolutamente nada sobre o enredo, pare de ler agora.
Como praticamente todo novo filme desde os primórdios é um jogo de espelho com filmes anteriores, aqui não seria diferente. Kravitz divide com Olivia Wilde (em “Não Se Preocupe, Querida”) uma referência comum no clássico dos anos 1970 “As Esposas de Stepford”, misturando um pouco a misandria do best-seller de Ira Levin com o clima “Twilight Zone” de Jordan Peele no brilhante “Corra!”. Além dessas duas referências, “Pisque Duas Vezes” mistura elementos já vistos em filmes como “O Círculo” (2017) e “Piscina Infinita” (2023), sendo mais provocativo e original que o primeiro, mas menos apelativo que o segundo. Se você ainda não entendeu a qual “ilha real” a “ilha fictícia” remete, procure por “Jeffrey Epstein” no noticiário policial.
A ironia final fica por conta da trilha musical (excelente, por sinal), que inclui ao menos duas canções de James Brown, não conhecido exatamente por sua correção no trato com mulheres. Kravitz não sabia disso, não deu importância ou quis ser novamente provocativa?
Crítica | Longlegs: Vínculo Mortal tenta ser um clássico, mas só é bom
Há algumas maneiras de diferenciar "suspense", "mistério" e "horror" dentro do cinema e não há consenso quanto a elas. Hitchcock brincava que suspense é quando o espectador sabe mais que os personagens e mistério quando ele sabe menos. Podemos jogar com o mestre da Hollywood clássica e ampliar seu conceito: suspense é uma "bomba" debaixo da mesa, horror é uma bomba em cima da mesa e mistério é não saber se aquilo é realmente uma bomba, quem colocou a bomba ali, etc.
Osgood Perkins (filho do lendário ator Anthony Perkins, do "Psicose" de Hitchcock, por acaso), diretor e roteirista de "Longlegs: Vínculo Mortal", um dos títulos mais esperados do ano, conhece um pouco de cada conceito e parece acima de tudo um estudante aplicado. Em seu filme anterior, "Maria e João: O Conto das Bruxas" (2020), exercitou sobretudo suas proezas visuais (a ponto de servir de clara inspiração para Alex Garland em seu "Men: Faces do Medo" (2022), ambos contos de fadas perversos e que possibilitam leituras contemporâneas com o pano de fundo da "floresta encantada" das histórias infantis).
Em "Vínculo Mortal', Perkins procura dar equilíbrio a um material que vai oscilar durante a metragem entre o suspense (que ele trabalha bem), o horror (que é sutil, presente sem apelar ao histrionismo que tanto contamina o gênero atualmente) e o mistério - e é aqui onde ele encontrar'as maiores dificuldades.
Na trama, a agente do FBI Lee Harker (interpretada por uma Maika Monroe que passa o filme inteiro atônita) é uma recruta com poderes aparentemente sensitivos designada para investigar um caso não resolvido de um serial killer que assina seus crimes como "Longlegs" - isso em algum lugar do noroeste dos Estados Unidos durante o governo de Bill Clinton. À medida que ela segue as pistas, descobre conexões com práticas ocultas e se vê pessoalmente envolvida na caçada ao assassino.
Perkins assina também o roteiro, o que lhe possibilita prestar verdadeiro tributo a ao menos três clássicos definitivos do subgênero de "serial killers": a referência mais evidente e que ele explorá à exaustão (na protagonista que tem traumas infantis, na sua relação com um mentor no FBI, em sua sexualidade amorfa, etc.) é a de "O Silêncio dos Inocentes" (1991). Mas estão ali também "Zodíaco" (2007), presente nas cartas codificadas pelo assassino e "Se7en - Os Sete Crimes Capitais" (1995), especialmente em um ponto específico e culminante do enredo que não se pode revelar aqui.
É certo que "fazer referências" tornou-se de 20 anos para cá um tiro meio certeiro que os cineastas podem disparar e também um mecanismo de proteção diante da cinefilia militante - como se a cada nova referência a um filme famoso do passado, o diretor do novo filme dissesse "Veja, eu também sou cinéfilo, eu também reverencio os mesmos filmes que você!".
Perkins, entretanto, filma com rara consistência e o tributo que presta é de um admirador estudioso e aplicado. Ao usar diversas vezes o recurso de centralizar a protagonista no quadro, por exemplo (uma característica que remete diretamente a Jodie Foster filmada por Jonathan Demme), ele demonstra compreender e dominar os recursos de narração que a linguagem cinematográfica possibilita, no jogo de olhares e ponto de vista, na imersão espacial do espectador nas cenas, nas rimas internas (que ele faz, por exemplo, ao repetir o padrão de quadro com alguns personagens e dispensar outros, e mais não se pode revelar porque se entregaria aqui informação da trama...). Há um cineasta de verdade por trás de "Vínculo Mortal", e não um cabotino implorando por atenção.
O esmero formal é certamente um dos maiores acertos aqui: o trabalho de câmera é excepcional, a iluminação é elaborada e extremamente sugestiva, a edição de som é um elemento vivo dentro do espetáculo, a música é perturbadora e ajuda a carregar as cores da jornada infernal de Lee Harker.
A partir de então, as qualidades do filme sofrem uma reviravolta e precisamos entender o que aconteceu para que o filme chegasse aonde chegou.
Longlegs quer ser um hit cult
É curioso notar como "Vínculo Mortal" tem pretensões de se equiparar ao nível dos melhores filmes de serial killer já feitos e o realizador não faz questão de esconder tal objetivo. A pretensão em si não é exatamente um problema, mas a dificuldade de entregar aquilo a que se propõe talvez seja. E uma das explicações para que este objetivo não seja atingido pode estar exatamente em suas fontes de referência.
Há uma diferença aparentemente banal, mas fundamental, entre o filme de Perkins e suas três maiores referências. "O Silêncio dos Inocentes" parte do best-seller de Thomas Harris na poderosa adaptação do roteirista Ted Tally e, embora Demme tenha feito cortes sutis na versão final, sua participação termina por aí. "Zodíaco" por sua vez é a versão cinematográfica de uma célebre história real, também parte de um best-seller de não-ficção (de Robert Graysmith) e foi roteirizado por James Vanderbilt. Finalmente, "Se7en" é um roteiro original de Andrew Kevin WAlker e até hoje de longe seu melhor trabalho.
Ou seja: o material dramático com que os três diretores trabalharam para criar suas obras-primas (e não é exagero usar tal expressão em nenhum dos três casos) tem de longe muito mais consistência que o roteiro próprio que o diretor filmou em "Vínculo Mortal". A história do cinema tem notáveis casos de gênios diretores que nunca foram exatamente roteiristas (pode-se citar Kubrick, Spielberg e Hitchcock para encurtar a conversa aqui). Há também brilhantes diretores-roteiristas (como Woody Allen, Tarantino, Fellini, Godard...), muito à vontade para levar às telas seu próprio texto. Mas não parece ser este último o caso de Osgood Perkins porque a grande fraqueza e a impossibilidade pela qual seu filme não atinge o mesmo nível das obras que o inspiraram é o roteiro, exatamente onde residem suas maiores fraquezas.
Não se pode aqui dar muitos detalhes a respeito da trama, uma vez que o "mistério" é parte importante de "Vínculo Mortal". Mas é sua parte mais fraca. A contrário do filme de Jonathan Demme, por exemplo, que quando observado em retrospectiva, tem uma trama muito simples, embora sofisticada na condução e nos temas, o roteiro de Perkins funciona como um quebra-cabeça complexo, excessivamente "enigmático", que quando completado revela uma imagem não exatamente "surpreendente", mas antes disso deslocada do conjunto.
O que se descobre finalmente - e tal descoberta envolve atabalhoadamente o "vilão ocultado", interpretado por um Nicolas Cage que parece o Bufallo Bill antagonista de Jodie Foster se este fosse interpretado por Mickey Rourke - de alguma maneira não encaixa com o que se assistiu antes com apreensão e curiosidade. No final, o espectador é conduzido por Perkins a um pesadelo que se inicia no grande cinema praticado nos anos 1990 (e está lá sua fonte de inspiração), mas despertado na banalidade solene, algo "litúrgica", dos mais repetitivos exemplares atuais do gênero.
Não é preciso muito esforço para se dar conta de que Perkins parece ser muito melhor diretor do que é roteirista (ou ao menos do roteirista que nos apresenta o decepcionante vilão Longlegs). Vamos esperar ansiosamente que seus próximos filmes encontrem um equilíbrio mais feliz entre drama e forma, sendo que esta última o cineasta já parece dominar como os mestres que admira e referencia.
Longlegs: Vínculo Mortal (Longlegs, EUA, 2024)
Direção: Osgood Perkins
Roteiro: Osgood Perkins
Elenco: Maika Monroe, Nicolas Cage, Blair Underwood
Gênero: Horror, Thriller, Crime, Mistério
Duração: 101 min
No aniversário de Alfred Hitchcock, reveja uma de suas cenas mais famosas
Nascido em Londres, Inglaterra, no dia 13 de agosto de 1899, Alfred Hitchcock é um dos mais celebrados diretores da história do cinema, responsável por clássicos que influenciam gerações de cineastas até hoje, tais como Janela Indiscreta, Psicose, Intriga Internacional, Os Pássaros, entre tantos outros.
Votado diversas vezes como o melhor filme já feito, Um Corpo Que cai resume o estilo de Hitchcock, que pode ser conferido na cena a seguir, onde estão presentes algumas de suas maiores qualidades: a precisão e economia dos quadros e dos movimentos de câmera, a encenação elegante, o uso das cores, a música de Bernard Hermann, a utilização dramática do cenário - enfim, o espetáculo cinematográfico completo e o tipo de conteúdo que fez do cinema a moderna "arte total".
https://youtu.be/tesqTwX7cpc?si=moHnwblvhCHkCTXH
7 melhores filmes de M. Night Shyamalan
M. Night Shyamalan é um diretor, roteirista e produtor norte-americano de origem indiana, conhecido por seu estilo único e narrativas envolventes. Ele começou sua carreira no final dos anos 1990 e rapidamente se destacou no cenário cinematográfico com seu talento para criar enredos de suspense e mistério.
Seu trabalho é frequentemente caracterizado por reviravoltas inesperadas e finais surpreendentes, o que se tornou uma marca registrada de seus filmes. Shyamalan tem uma habilidade notável para construir tensão e manter o público na ponta da cadeira, explorando temas como o sobrenatural, a fé e a fragilidade humana.
A evolução de um cineasta
Ao longo dos anos, Shyamalan enfrentou altos e baixos em sua carreira. Após um início promissor, ele experimentou uma série de projetos que não foram bem recebidos pela crítica, mas que ainda assim mantiveram um público fiel. Essa fase desafiadora não o impediu de continuar explorando novas ideias e abordagens em seus filmes.
Nos últimos anos, Shyamalan conseguiu recuperar parte do prestígio perdido, retornando às suas raízes de suspense e mistério. Ele também se aventurou na televisão, produzindo e dirigindo séries que receberam elogios por sua qualidade e inovação.
Além de seu trabalho como diretor e roteirista, Shyamalan é conhecido por sua dedicação ao cinema independente. Ele frequentemente financia seus próprios projetos, mantendo um controle criativo rigoroso sobre suas obras. Essa abordagem lhe permite experimentar e inovar, sem as restrições impostas pelos grandes estúdios de Hollywood.
Shyamalan também é um defensor da diversidade no cinema, frequentemente escalando atores de diferentes origens étnicas e culturais em seus filmes. Ele acredita que a representação é importante e que as histórias contadas no cinema devem refletir a diversidade do mundo real.
Ainda que seja mais lembrado pela originalidade como roteirista de suspense e mistério, Shyamalan é também um diretor de estilo elegante e olhar apurado, praticando um cinema que lembra o de alguns mestres de Hollywood como Woody Allen e Jonathan Demme pela precisão e economia de seu trabalho de câmera.
A seguir apresentamos uma lista com seus sete melhores filmes até 2024.
7 - Armadilha (2024): Aqui o Shyamalan roteirista dá all-in na inverossimilhança e na cooperação do público, enquanto o Shyamalan diretor usa (bem) todas as ferramentas do ofício para oferecer uma narrativa empolgante, absurda e que deixa a porta aberta para uma nova continuação.
6 - Vidro (2019): Os personagens de seus filmes anteriores encontram-se em um confronto final, explorando os limites entre realidade e fantasia. Para melhor compreensão da trama, é conveniente ver "Corpo Fechado" e "Fragmentado" antes.
5 - Fragmentado (2016): Um homem com múltiplas personalidades sequestra três adolescentes, enquanto uma de suas identidades mais perigosas começa a emergir. Está presente aqui a habitual destreza de Shyamalan em manipular os elementos do enredo de forma muito autoral.
4 - Corpo Fechado (2000): Um homem descobre que possui habilidades extraordinárias após sobreviver a um acidente de trem, explorando sua nova identidade. Esta é acima de tudo uma aula de direção de Shyamalan, repleta de cenas excepcionalmente conduzidas e dois ou três enquadramentos que deveriam estar presentes em qualquer bom curso de cinematografia.
3 - Sinais (2002): Típica família do interior norte-americano começa a encontrar misteriosos círculos nas plantações, levando-a a enfrentar uma ameaça extraterrestre. Sem precisar de muitos efeitos visuais e falsificações digitalizadas, o cineasta consegue provocar medo e manter a atmosfera de mistério até o final.
2 - O Sexto Sentido (1999): Um psicólogo infantil ajuda menino que afirma ver e falar com espíritos, levando a uma revelação surpreendente, no filme que tornou Shyamalan uma celebridade e que presta tributo a outro clássico do gênero ("O Parque Macabro", de 1962).
1 - A Vila (2004): Moradores de uma vila isolada vivem com medo de criaturas que supostamente habitam a floresta ao redor, até que segredos começam a ser revelados, naquele que é talvez o roteiro com o mais original plot twist da história do cinema.
Crítica | Armadilha mistura direção brilhante e roteiro inverossímil
A melhor palavra que caracteriza o cinema de M. Night Shyamalan é "invulgar": é fácil amar ou odiar seus filmes, mas dificilmente eles provocarão indiferença. E com "Armadilha", seu lançamento de 2024, não poderia ser diferente.
Na trama, Cooper (Josh Hartnett, brilhante) e sua filha adolescente (Ariel Donoghue) vão a um show de uma estrela da música pop (Saleka, filha do diretor) quando ele percebe uma presença excessiva de policiais ao redor. Rapidamente, Cooper se dá conta de que ambos estão no epicentro de uma armadilha montada para capturar um serial killer da Filadélfia apelidado de “The Butcher” (“O Açougueiro”).
Revelar mais do que isso traria spoilers inevitáveis, mas exporia também a grande deficiência do filme: para que a trama mova-se adiante como um relógio suíço, é preciso que a audiência aceite uma sucessão de eventos nem sempre críveis em conjunto. Tudo se encaixa perfeitamente para levar o filme aonde o diretor pretende. Vilões e mocinhos comportam-se de maneira irrealista, num balé de plots twists que tende à artificialidade.
Se o roteirista Shyamalan está disposto a comprometer totalmente a verossimilhança em nome do entretenimento, o diretor Shyamalan por outro lado exercita seu ofício de maneira singular. Poucos diretores na indústria ainda hoje se dispõem ao seu esforço formal e raríssimos usam o quadro tão bem. Acostumado à vulgarização contemporânea dos "planos fechados", o espectador atento irá perceber como, aqui, o close desempenha um papel dramático fundamental, servindo para intensificar os conflitos entre os personagens, por exemplo (e para que tal recurso funcione, o close não pode aparecer o tempo todo).
Mas nem só isso: Shyamalan sabe a importância de posicionar bem a câmera (outra raridade na indústria que acaba soando até como excentricidade) e é um dos poucos dispostos a filmar os atores olhando diretamente para a lente, num efeito arrebatador que é uma de suas marcas registradas. O resultado dessa decisão que, embora pareça banal, é bastante incomum, é permitir aos atores momentos de concentração e emoção crescente que normalmente perde-se em edições muitos entrecortadas (outro cacoete que Shyamalan sabiamente evita). Tal qual Jonathan Demme com o rosto de Jodie Foster em "O Silêncio dos Inocentes" e o próprio Shyamalan com o de Anya Taylor-Joy em "Fragmentado", os momentos em que a montagem se detém na expressividade comovente de Saleka Shyamalan correspondem a um ponto alto não só deste filme, mas como certamente de toda a safra de filmes de 2024. Filmar rostos é uma arte para poucos e Shyamalan é um deles.
Quem aprecia o trabalho do cineasta encontrará em "Armadilha" os elementos de sempre que parecem contribuir para seu prestígio duradouro dentro da indústria: roteiro elaborado e original, vilões marcantes e mocinhos(as) que provocam identificação imediata, sua generosidade com o trabalhos dos atores, além da direção elegante e do excepcional trabalho de câmera. Quem, por outro lado, irrita-se com seu estilo, com a confiança demasiada nas tramas, as reviravoltas vertiginosas e o imaginário cartunesco, quase infantilizado, também encontrará motivos para reclamar. A impressão que fica é que seu talento é também uma armadilha da qual ele talvez sequer esteja interessado em escapar, mas se optasse por uma narrativa menos rocambolesca - quem sabe - seus filmes seriam ainda melhores. Ou ao menos mais verossímeis e - portanto - mais adultos.
Armadillha (EUA, 2024)
Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan
Elenco: Josh Hartnett, Ariel Donoghue, Saleka Shyamalan
Gênero: Mistério, Crime, Suspense, Horror
Duração: 105 min
Os Melhores Filmes com Shelley Duvall
Atriz incomum, de uma beleza exótica, raro talento e brilho inconfundível na tela, Shelley Duvall nasceu no Texas em 7 de julho de 1949 e nos deixou hoje (11/07). Nos últimos anos, tinha estado um pouco afastada do cinema, mas seus principais filmes figuram em qualquer lista séria de produções de primeiro nível dentro da indústria.
Estes são seus cinco melhores filmes e que valem ser vistos e revistos:
5. Nashville (1975)
Considerado o filme definitivo de Robert Altman, é o típico caso de ame ou odeie: alegórico, frenético, entrecortado e vertiginoso, sobrevive até hoje como um retrato de uma época em que o cinema industrial era altamente experimental (para o bem e para o mal).
4. Retratos de uma Mulher (1996)
Antes de se consagrar com o Oscar de Ataque dos Cães, Jane Campion dirigiu Duvall e um elenco estelar nesta sensível adaptação da obra de Henry James. Excelente reconstituição de época e música do genial compositor polonês Wojciech Kilar (o mesmo de "Drácula de Bram Stoker").
3. Três Mulheres (1977)
A carreira de Duvall é fortemente determinada pelos papéis em filmes de Robert Altman. Se outros títulos do diretor hoje podem parecer levemente datados e maneiristas, este não é o caso do drama "Três Mulheres", um poderoso enredo com alta carga psicológica, clima etéreo e atuações femininas excepcionais. Indispensável.
2. Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977)
Conhecido no Brasil durante muito tempo por seu estapafúrdio título em português, "Annie Hall" é possivelmente a mais influente comédia dramática de todos os tempos. Seu estilo foi e continua sendo imitado e homenageado por seriados e novos filmes desde seu lançamento e recursos que hoje parecem banalizados (como os atores falando para a câmera) surgiram na época repletos de frescor e invenção. Uma mistura de Godard e Howard Hawks, encantador, melancólico e brilhante, não sentiu um dia sequer a passagem do tempo. O personagem de Duvall é reduzido, mas suas cenas são hilárias.
1. O Iluminado (1980)
Existem filmes de terror mais assustadores, mas poucos serão tão exuberantes, simbólicos e climáticos quanto esta obra-prima de Stanley Kubrick. Uma produção cercada de folclore e boatos (a maioria deles pode ser desvendada ao assistir aos bastidores do filme, em clima totalmente familiar, e que no máximo revelam um diretor minucioso no melhor exercício de seu ofício). Talvez apenas "Psicose" dentro do gênero seja ainda hoje tão influente e imitado quanto "O Iluminado" e o grito de Shelley Duvall figura entre os momentos mais marcantes do século do cinema.
Crítica | Um Lugar Silencioso: Dia Um - É melhor ficar em silêncio quando nada se tem a dizer
"Um Lugar Silencioso: Dia Um" é um spin-off do original "Um Lugar Silencioso" de 2018, este dirigido pelo também ator John Krasinski. O prólogo dirigido por Michael Sarnoski (de Pig - A Vingança) mostra a chegada dos alienígenas à Terra e o caos social imediato resultante da invasão. A protagonista Samira (interpretada por uma esforçada Lupita Nyong'o) é uma paciente terminal vivendo em Nova York que testemunha a chegada das criaturas e o massacre que se segue. Ela é acompanhada pelo tímido Eric (Joseph Quinn) e um gato de estimação numa fuga em círculos pela cidade arruinada.
A pergunta que um amante de cinema pode se fazer é: a premissa iniciada no primeiro filme teria fôlego para dois mais (ou sabe-se lá quantos ainda virão)? A resposta parece evidente na metade deste enredo, quando os protagonistas vagam em cenas que forçam um lirismo entrecortado por sustos gratuitos que aparecem para nos lembrar de que, afinal, se trata apenas de mais um filme de terror, apocalipse ou algo parecido.
Além de esticar ao limite uma premissa que não parece ter material dramático para se sustentar por uma hora e meia (e você já assistiu à uma situação semelhante com melhor sorte em Cloverfield - Monstro, por exemplo), o roteiro força a barra de maneira pueril, quando meia hora depois de a cidade ser atacada por um inimigo alienígena do qual rigorosamente nada se sabia até então, os habitantes já parecem plenamente convencidos (e mobilizados) de qual é a "regra do jogo" (ficar quietos para não atrair atenção das criaturas), o que é bastante inverossímil e só serve para conduzir a história aonde o roteirista quer.
Quando, evidentemente, seria muito mais razoável imaginar que a população levaria dias (ou ao menos umas boas horas) para entender o que estava acontecendo e aceitar a "regra de segurança" (que é a base de toda a franquia e, até por esse motivo, merecia ser mais bem trabalhada). Exigir realismo tampouco parece razoável, porque precisamos lembrar que este não é muito mais que outro filme de "monstro" e se comporta como tal.
O filme repete também o mesmo truque barato dos dois anteriores: nenhum deles é nada "silencioso", pois tanto aqui, como nos outros, a direção lança mão de todo tipo de intervenção sonora e música constante, de modo que os sussurros são compensados por uma barulheira bem exagerada. Seria surpreendente e realmente "inovador" conseguir provocar sustos sem efeitos sonoros, por exemplo. Mas esta é uma proeza que nem Krasinski, nem Sarnoski, sequer cogitariam.
No deserto de qualidades no qual se converteu a indústria de entretenimento nos últimos anos, a ideia do primeiro filme de Krasinski soou bastante original num primeiro momento (embora sorrateira fosse uma palavra melhor). Depois, entretanto, de mais de cinco horas de correria e monstrengos fazendo careta, a impressão que se sobressai é que se trata apenas de mais uma fórmula sendo reprisada. No fim do mundo, como Hollywood tem nos ensinado há décadas, não há muito que se dizer: o jeito é correr mesmo.
Um Lugar Silencioso: Dia Um (A Quiet Place: Day One – EUA, 2024)
Direção: Michael Sarnoski
Roteiro: Michael Sarnoski, John Krasinski, Bryan Woods
Elenco: Lupita Nyong’o, Joseph Quinn, Alex Wolff, Djimon Hounsou, Thara Schoon, Thea Butler
Duração: 100 min.
Momento do Contato: filme sobre caso famoso falha como documentário, mas reforça lenda urbana
Momento do Contato: filme sobre caso famoso falha como documentário mas reforça lenda urbana
Com o passar do tempo, o episódio do “ET de Varginha” vai deixando de lado sua dimensão histórica e adquirindo típicas características de uma lenda urbana
Fora das principais plataformas de streaming no Brasil, o documentário “Momento do Contato - O Caso Varginha” (2022), dirigido por James Fox, encontrou grande divulgação no meio ufológico nacional desde que foi divulgado pela primeira vez, e hoje pode ser assistido gratuitamente no Youtube e em outras fontes alternativas.
O filme explora um subgênero em crescimento há anos (o da especulação conspiratória que mistura eventos históricos com o imaginário da literatura fantástica e ficção científica), o qual parece ter se convertido em fonte de renda relativamente garantida para os produtores por causa da ativa e fiel comunidade ávida por tal tipo de conteúdo (percorrendo temas como “formato da terra”, “governo mundial”, “sociedades secretas”, “chegada do homem à Lua”, entre outros).
Conforme tipicamente ocorre com o formato, o filme lança mão de informações amparadas ou não por fontes verificáveis para construir sua própria “tese” a respeito do que poderia ter acontecido a partir de janeiro de 1996, quando o episódio em Varginha adquiriu repercussão nacional e internacional. O próximo parágrafo resume tais supostos acontecimentos, então ele poderá ser ignorado por todos que estão familiarizados com o caso.
Em 1996, a cidade de Varginha, em Minas Gerais, foi palco de um dos casos ufológicos mais famosos do Brasil, conhecido como o "ET de Varginha". Três jovens irmãs, Liliane, Valquíria e Kátia, relataram ter visto uma criatura estranha em um terreno baldio, descrita como baixa, marrom, com grandes olhos vermelhos e protuberâncias na cabeça. O avistamento ocorreu no dia 20 de janeiro, gerando uma onda de relatos de outros moradores que afirmaram ter visto fenômenos semelhantes. Alegações de movimentação militar e a captura da criatura pela Escola de Sargentos das Armas (ESA) em Três Corações aumentaram o mistério.
Testemunhas afirmaram que a criatura foi levada a um hospital local e depois transferida para a UNICAMP, em São Paulo. As autoridades brasileiras, incluindo militares e funcionários do hospital, negaram qualquer envolvimento com seres extraterrestres e apresentaram explicações alternativas, como operações militares rotineiras e a possível confusão com um cidadão portador de deficiência.
O caso atraiu a atenção da mídia e de ufólogos internacionais, mas a ausência de evidências físicas concretas, como fotos ou vídeos da criatura ou de algum OVNI, deixou muitas dúvidas. As testemunhas originais, no entanto, mantêm suas histórias, e o "ET de Varginha" permanece um dos maiores mistérios ufológicos do país.
Até hoje, o episódio como um todo (bem como seus quase infindáveis “desdobramentos”, que atravessam meses a partir da data inicial) apoia-se unicamente em testemunhos, sendo que a maioria deles é anônima (e muita vezes, sequer transcrita, sobrevivendo somente de forma oral no relato dos ufólogos, ou seja, “testemunhos de testemunhos”) ou notadamente indireta (alguém repete algo que, na data do testemunho, já era conhecido de forma pública ou por uma “fonte” anterior, de modo que ele pode ser simplesmente uma repetição de algo já divulgado), tornando a verificação de sua veracidade quase impraticável e fazendo com que a maior parte das “pistas” que poderia levar à elucidação do caso desemboque eventualmente num beco sem saída (uma suposta “testemunha” que jamais poderá ser identificada em nome de sua “segurança”, por exemplo, e cujo testemunho por sua vez não encontra respaldo em nenhum outro lugar - seja ele foto, filme, documento, carta, etc.).
Conforme qualquer distraído fã de tramas de investigação sabe, uma “testemunha anônima” (ao melhor estilo “Garganta Profunda”) só tem valor se o que ela alega ou informa leva a alguma informação que possa ser de alguma maneira confirmada - do contrário, tudo que ela diz permanecerá num moto-perpétuo de pura especulação. Mas o que esse “detalhe” poderia atrapalhar a cruzada quase religiosa dos fanáticos pelo caso?
“Momento do Contato - O Caso Varginha”, por sua vez, mirando esse público sedento de confirmação de crenças nas quais ele já acredita de antemão (pouco importando as evidências que se confirmam ou não), não questiona nem leva em conta nada disso, usando o habitual viés de confirmação que predomina na área, de modo que, inadvertidamente, reforça as características de lenda urbana que o caso apresenta desde que se transformou num autêntico fenômeno cultural dentro daquela ativa comunidade ufológica.
Quase 30 anos após os ocorridos, o caso do ET de Varginha revela essa natureza lendária, se observarmos que uma lenda urbana conforme é normalmente entendida apresenta origem incerta (uma boa parte dos testemunhos sobre Varginha é de natureza apócrifa ou vagamente determinada), alguma verossimilhança (muitos de seus relatos são críveis e, de fato, guardam relação com elementos da realidade), capacidade de disseminação (as histórias relacionadas espalham-se muito facilmente dentro da comunidade), temática universal (os relatos suscitam ansiedade, pavor e curiosidade) e uma moralidade presumida (no caso, a necessária desconfiança generalizada em autoridades e versões oficiais apresentadas à opinião pública).
Lamentavelmente, por optar pelo caminho da “lenda”, James Fox perde a oportunidade de confrontar as versões correntes do que, de fato, poderia ter acontecido em Varginha em janeiro de 1996 a partir do relato das três testemunhas iniciais (estas, bem identificadas e que mantêm o mesmo relato desde então), não analisa as inúmeras contradições e lacunas encontradas na sucessão de eventos até hoje e ignora informações cruciais para a compreensão de alguns dos eventos “misteriosos” descritos no documentários (como a provável e bastante realista causa da morte do policial envolvido na “captura” de uma criatura, facilmente encontrada na internet).
Não obstante, Fox incorre em erros de raciocínio também típicos do meio no qual o documentário está inserido: por exemplo, expandindo indefinidamente o horizonte objeto de sua reflexão (listando casos que não guardam qualquer relação com Varginha, por exemplo), confundindo a audiência e fazendo dela cúmplice involuntária da versão relatada (como se questionar objetivamente elementos relacionados ao caso do filme em si invalidasse ao mesmo tempo qualquer outro caso ou acontecimento similar: “Você duvida de Varginha, então acredita que todos que disseram ter visto OVNIs ao longo da história estavam mentindo?”, ou algo do gênero).
Quando o filme abre portas na narrativa, ele rapidamente desiste delas. Um exemplo (e que se refere especificamente a um dos maiores questionamentos que pode ser feito ainda hoje à versão “ufológica” sobre o caso) é a suposta queda de uma nave alienígena antes da primeira aparição das “criaturas”, que teria sido testemunhada por apenas uma pessoa (numa região com movimento e nada inacessível) e que não teria deixado qualquer vestígio material na área (exceto a lembrança do “papel de embrulhar frango” descrito numa passagem do documentário…).
Um outro problema que o filme herda da abordagem “ufológica” diante do caso é utilizar livremente suposições para preencher lacunas na própria pesquisa: quando uma testemunha recusa-se a falar, por exemplo, o realizador logo induz o espectador a tirar daquilo a “inevitável” conclusão de que ela “esconde algo”, eliminando a hipótese (no pior dos casos, igualmente razoável) de que o entrevistado não suporta mais responder as mesmas perguntas ou ser perseguido por desconhecidos por 25 anos, o que não é preciso ser nenhum investigador muito minucioso para imaginar o quão seria inconveniente e prejudicial, especialmente numa comunidade do interior do país e num estrato social visivelmente vulnerável.
Nenhum desses problemas do filme, entretanto, parece se comparar ao ridículo de levar a sério a lenda sobre os “homens de preto”, supostos agentes trabalhando para algum núcleo de poder misterioso e que eventualmente aparecem para testemunhas com o objetivo de intimidá-las (e que, no caso Varginha, teriam dado as caras para quatro testemunhas). No momento em que se afunda na fantasia típica da mitologia Sci-Fi, o documentário coloca em xeque a própria natureza do gênero que se dispõe a praticar e perde prestígio, descendo à especulação infantilizada predominante em “grupos de discussão” que ganham adeptos misturando irresponsavelmente dados da realidade, imaginário criado pela indústria do entretenimento e neuroses arraigadas - e, ato contínuo, contaminando qualquer questionamento dotado de razoabilidade que possa ser feito ao “sistema”, jogando tudo num mesmo saco de paranoia, delírio e mistificação.
Se de fato Fox quisesse cumprir seu papel de “documentarista”, ele poderia questionar, por exemplo: por que diabos “agentes secretos” em “missões ultrassecretas” agiriam como personagens de franquias de Hollywood, vestindo fantasias de Halloween e chamando o máximo possível de atenção para seu trabalho? Embora esta seja uma pergunta aparentemente óbvia, ignorá-la não é privilégio deste filme, sendo um padrão de comportamento observado em toda a comunidade ufológica estabelecida. Fox apenas replica uma “cultura de pensamento” predominante no meio para o qual ele pretende vender seu peixe.
Os questionamentos que “Momento do Contato - O Caso Varginha” demonstra desinteresse em fazer não são evitados por outros pesquisadores e interessados no tema. Um dos principais ufólogos da época dos acontecimentos e morador da própria cidade, Ubirajara Rodrigues escreveu dois livros sobre o assunto e, de 1996 até hoje, reviu boa parte de sua interpretação a respeito do que poderia ter acontecido, reconhecendo até mesmo que sua abordagem à época (tipicamente “ufológica”) não teria sido a mais precisa para muitos dos fatos observados (https://www.youtube.com/live/5jsDXic4DO8?si=Kskrl9Z8wrXbQsnf).
Em 2024, por ter retrocedido em alguns conceitos e feito comentários bastante pertinentes, em retrospectiva, a tudo que foi afirmado anteriormente, Ubirajara já é incluído na paranoia generalizada que cerca o caso, sendo eventualmente acusado de participação em operações de “acobertamento” - palavra esta repetida mecanicamente entre ufólogos sempre que as respostas obtidas não correspondem às expectativas alimentadas.
Embora recorrente no meio, tal paranoia não elimina contradições lógicas nem preenche lacunas essenciais para que a narrativa ufológica a respeito do caso faça sentido. O canal Fábrica de Noobs, por sua vez, apresenta uma bem fundamentada lista de questionamentos e contradições em tal narrativa (https://youtu.be/JHPc9vzE_CI?si=6-PdgNzkIOfiox7u), levantando pontos que seriam imprescindíveis para que a história como é contada hoje (e da qual o documentário acaba sendo mais um dos replicadores) faça sentido.
Um dos elementos que se observa e que James Fox confortavelmente deixa de lado é que, conforme os anos passam, ao mesmo tempo em que um maior número de “testemunhas” se apresenta para supostamente corroborar a versão aceita dentro do meio ufológico, mais testemunhos contradizem-se entre si (em termos de datas, horários, localidades ou cronologia dos eventos de forma geral), de modo que pouco interessa ter “500 testemunhos” para o mesmo caso se uns anulam ou colocam em dúvida os outros - e apontar tal falha de raciocínio é talvez o maior mérito da pesquisa desenvolvida pelo canal Fábrica de Noobs a respeito do caso.
O diretor do documentário prefere, por outro lado, gastar seu tempo e o do espectador com passagens que nada contribuem para uma melhor compreensão dos fatos que ele pretende descortinar, por exemplo na dispensável entrevista com um político ou na passagem do “povo-fala”, na rua, que por si só tem baixa importância, bastando se questionar: ao ser indagadas por um estrangeiro com uma câmera sobre um assunto que tornou a cidade onde moram conhecida internacionalmente, quantas pessoas responderiam que “nada sabem” sobre o ocorrido, ou mesmo que acham ser aquilo uma bobagem inqualificável?
O documentarista honesto sabe que é muito mais fácil arrancar de um entrevistado desatento algo como um “Sim”, “Concordo”, “Foi isso mesmo”, do que um “Não”, “Discordo” ou “Não foi nada disso que aconteceu”, e essa percepção é crucial na condução de depoimentos.
As entrevistas definitivamente não são o ponto alto do filme, mas ao mesmo tempo expressam uma abordagem que também é tipicamente “ufológica”. Quando se encontra com um ex-controlador de voo que teria presenciado alguns dos eventos incluídos na narrativa do documentário (e que afortunadamente está disposto a mostrar o rosto), Fox não esmiúça qualquer das alegações do entrevistado, que por sua vez dá um depoimento totalmente vago:
O que foi dito pra nós é…silence…total silence - afirma o entrevistado.
Quem disse isso a vocês? - poderia ser a réplica de Fox, mas ele convenientemente não “complica” a entrevista.
Na sequência, o mesmo entrevistado completa:
Eles (os americanos) pousaram sem autorização do governo brasileiro. Era uma missão secreta.
Fox poderia explorar tal alegação, perguntando por exemplo:
Como vocês sabiam que a missão era “secreta” (sendo ela secreta, como sabiam ser aquilo uma “missão”)?
Se não havia autorização do governo para o pouso, como o avião não foi abatido no ar?
Qual foi o procedimento dos controladores de voo durante a aproximação?
Em solo, quem deu autorização para que o avião (que supostamente teria pousado sem autorização) reabastecesse?
Mais uma vez, como não está concentrado em chegar a alguma verdade objetiva sobre o que realmente se passou, mas apenas em fazer crescer o bolo da mistificação em torno da lenda, Fox deixa tudo em suspenso, limitando-se a encenar uma repetitiva fisionomia de espanto.
Se para um espectador experimentado de documentários, tais lacunas enfraquecem o todo, para um aficionado do tema servem como elemento de “mistério” que “corrobora” a trama. No documentário ufológico, ironicamente, quanto menos se revela, mais se tem certeza.
Ao optar por sustentar ou fortalecer pontos já conhecidos, sem trazer informações novas ou investigar mais profundamente as lacunas e contradições, “Momento do Contato - O Caso Varginha” reforça a natureza do evento como uma lenda urbana, onde cada novo “causo” contado fortalece (sem, contudo, esclarecer coisa alguma) algo no qual vagamente já se acredita por “ouvir dizer”, ou simplesmente pela desconfiança (a qual, convenhamos, é muitas vezes justificada) diante de “autoridades”, “militares” ou “cientistas”.
Na verdade, o papel que James Fox desempenha aqui está longe de ser o do documentarista em sentido estrito, ou seja, do realizador que usa o cinema para criar um recorte onde o que importa é a apreensão da realidade objetiva ou sua impressão pessoal, “autoral”, a respeito dela. Fox assume outra função, hoje muito disseminada em diferentes modalidades ideológicas: a do cineasta de “agenda”, o “animador de torcida”, cujos filmes nada mais são que divulgação quase institucionalizada de universos de interesse e pensamentos, com a finalidade de manter determinada comunidade ativa ou angariar novos adeptos para ela.
Naquele sentido, Fox pode ser eventualmente encontrado na internet oferecendo “um milhão” por um vídeo do suposto “ET de Varginha” (https://youtu.be/r25kd8mdm5c?si=nJeAF1Juq9hBTaKS), vídeo este convertido em autêntico Santo Graal da comunidade ufológica (especialmente brasileira). Assim como as alegações envolvidas no caso como um todo carecem de esclarecimentos, tanto busca quanto proposta pelo “vídeo” deixam dúvidas bastante sensíveis: se tal vídeo aparecesse, como seria possível determinar que ele se referisse ao caso específico de Varginha e à época em ocasião dos fatos?
A criatura provavelmente não usaria um crachá identificando-se como “ET de Varginha”... Como seria possível afirmar com algum grau de confiança que o local de gravação do vídeo corresponderia aos locais constantemente citados pelas testemunhas? Exceto evidentemente se houvesse como identificar as instalações mostradas, comparando imagens reconhecidamente da época com as do vídeo…
Haveria “rostos humanos” visíveis num vídeo dessa natureza, de modo que as identidades ora reveladas pudessem ser checadas com civis ou militares em atividade na época? Tudo isso, evidentemente, sem deixar de lado as quase infinitas possibilidades de manipulação e falseamento que cada vez mais são difundidas e popularizadas no suporte audiovisual, nos fazendo crer que a obtenção desse “tesouro” teria menor relevância do que se imagina.
Apesar de suas falhas de princípio e execução, “Momento do Contato - O Caso Varginha” estimula a inquietude a respeito do que poderia, de fato, não só ter acontecido em Varginha, mas ainda (e aqui, o cinema desempenha papel crucial), o que poderia ser apreendido objetivamente, contado ou mostrado, e que fizesse sentido além da mera crença especulativa e paranoica que predomina na comunidade ufológica.
O que as três garotas realmente viram, por não mais de 10 segundos (pois teria sido este o tempo durante o qual elas avistaram a suposta criatura e tiraram todas as suas conclusões que sustentariam por décadas desde então), naquele dia em seu bairro?
Qual o real motivo para a movimentação de militares na região nos dias que se sucederam a este fato?
Qual a motivação de testemunhas para expor relatos que muitas vezes anulam uns aos outros?
E, finalmente, por que após quase três décadas não existe nenhuma imagem ou documento vazado, seja ele de que natureza for, para simplesmente nenhum dos supostos fatos entendidos como verdadeiros dentro da narrativa ufológica para o caso (convenhamos, a História mostra inúmeros “vazamentos” em episódios de importância igual ou maior que o de Varginha)?
São perguntas que permanecem e que ficarão penduradas até que, eventualmente, outro documentarista faça o trabalho que preguiçosamente James Fox deixou para trás.
Momento do Contato - O Caso Varginha (Moment of Contact, EUA/Brasil - 2022)
Direção: James Fox
Gênero: Documentário, Histórico
Duração: 100 min
ET de Varginha: Após 28 anos, muitas dúvidas e nenhuma evidência concreta
Há 28 anos, o Brasil foi palco de um dos episódios mais intrigantes da ufologia mundial: o suposto encontro com um ou mais seres extraterrestres na cidade de Varginha, Minas Gerais. Desde janeiro de 1996, o caso do "ET de Varginha" tem gerado debates, especulações e teorias, mas até hoje, nenhuma evidência concreta foi apresentada para confirmar a visita de vida extraterrestre ou esclarecer completamente os acontecimentos daquele dia.
Garotas veem algo inexplicável
O incidente começou na manhã de 20 de janeiro de 1996, quando três jovens - Liliane e Valquíria Fátima Silva e Kátia Andrade Xavier - alegaram ter visto uma criatura estranha em um terreno baldio. Descreveram-na como um ser de aproximadamente 1,60m de altura, com pele marrom, olhos vermelhos e três protuberâncias na cabeça. As meninas ficaram assustadas e relataram o avistamento para suas famílias e amigos, gerando rapidamente alarde na cidade.
Pouco depois, surgiram relatos de que o Corpo de Bombeiros e o Exército Brasileiro foram acionados para capturar uma ou mais criaturas. Testemunhas afirmaram ter visto veículos militares transportando uma carga incomum, levando a crer que ao menos um ser havia sido capturado e levado para uma base militar. À noite, um policial militar teria se envolvido num terceiro resgate, desta vez acompanhado apenas de seu parceiro, e sem testemunhas.
A partir desses relatos iniciais, a história como um todo abre uma infinidade de trilhas (muitas delas contraditórias) e não chega a lugar nenhum.
Investigações e Versões Oficiais
Desde o início, o caso atraiu a atenção da mídia e de ufólogos, tanto no Brasil quanto no exterior. Vários pesquisadores independentes e organizações de ufologia foram a Varginha para coletar depoimentos e tentar descobrir a verdade por trás do incidente. No entanto, as investigações logo se depararam com inúmeras contradições e falta de provas concretas.
Os militares negaram qualquer envolvimento com a captura de um ser extraterrestre. O Exército Brasileiro emitiu uma nota oficial afirmando que as operações conduzidas na região naquela época não tinham relação com seres de outro planeta. De acordo com os militares, os veículos vistos transportando uma carga eram parte de uma operação rotineira e a suposta criatura era, na verdade, um morador do bairro com necessidades especiais.
Além disso, a falta de fotografias, vídeos ou qualquer registro físico (incluindo documentos escritos) do suposto ET ou dos eventos relacionados levanta sérias dúvidas sobre a acuidade dos testemunhos. Em muitos casos, relatos dos envolvidos mudaram com o tempo, e algumas das pessoas que afirmaram ter visto o ser ou participado de sua captura admitiram posteriormente que poderiam ter sido influenciadas pela comoção e pelas histórias que circulavam na cidade.
Uma Abordagem Cautelosa dos Acontecimentos
É fundamental considerar a possibilidade de que o episódio do ET de Varginha possa ter sido um grande mal-entendido alimentado por coincidências, histeria coletiva e sensacionalismo midiático. Estudos de psicologia indicam que em situações de alta tensão e medo, é comum que as pessoas interpretem eventos ambíguos de maneira a se alinhar com suas crenças ou temores preexistentes.
A teoria de histeria coletiva é apoiada pelo contexto da época. Nos anos 1990, havia um grande interesse público em assuntos relacionados a OVNIs, impulsionado por programas de televisão, filmes e livros sobre o tema. Além disso, o impacto do caso Roswell, nos Estados Unidos, ocorrido décadas antes, ainda reverberava na cultura popular, predispondo o público a acreditar em contatos com extraterrestres.
Outra explicação plausível é a de que o suposto ET fosse, na verdade, um animal ou uma pessoa com alguma condição especial, que foi interpretada erroneamente pelas testemunhas devido às condições de luminosidade e ao estado de pânico em que se encontravam. Estudos sobre avistamentos de OVNIs e seres extraterrestres mostram que, frequentemente, fenômenos naturais ou humanos são confundidos com eventos extraterrestres por observadores não treinados.
Se observarmos os testemunhos originais, ou seja, aqueles colhidos nos dias seguintes ao desenrolar dos fatos, encontramos repetidas menções a elementos da religiosidade popular, como a citação de “demônios”, o que também reforça a tese de que parte da história (aquela que relaciona os episódios à cultura ufológica) foi sendo condicionada pela própria presença dos pesquisadores interessados no tema, que por sua vez descartaram imediatamente qualquer explicação que não fosse a de natureza “ufológica”.
A Falta de Evidências Concretas
Passados 28 anos, a principal crítica ao caso do ET de Varginha é a ausência de evidências concretas que comprovem qualquer das alegações feitas. Nenhum artefato, corpo ou material de origem extraterrestre foi apresentado. Isso é particularmente problemático em um campo de estudo onde a verificação empírica é essencial. Ademais, faltam documentos ou registros escritos dos órgãos envolvidos nos acontecimentos relatados. Nenhum material “vazou” de nenhuma fonte, o que seria esperado após tantos anos e pela quantidade de pessoas supostamente envolvidas nas “operações”. Caso a história contada pelos ufólogos fosse totalmente verdadeira, estaríamos diante da mais bem-sucedida operação de acobertamento empreendida por qualquer autoridade em qualquer época da História - o que, convenhamos, é também altamente improvável, até mesmo porque o relato dos próprios ufólogos envolve centenas de “testemunhas”, o que de forma alguma se encaixa numa operação secreta conduzida profissionalmente.
Os céticos insistem ainda que, sem provas físicas, é impossível diferenciar um evento genuíno de um mito ou engano. A ciência requer que afirmações extraordinárias sejam acompanhadas por evidências extraordinárias. No caso de Varginha, essas evidências simplesmente não existem.
Além disso, investigações posteriores feitas por órgãos independentes e por jornalistas não conseguiram substanciar as alegações iniciais. A falta de documentação oficial e a ausência de testemunhas credíveis que possam fornecer relatos consistentes e verificáveis reforçam a posição de que o incidente foi, na melhor das hipóteses, um engano e, na pior, uma fraude.
Ufólogos: “proteção às testemunhas” tenta justificar pobreza em evidências
O caso de Varginha é o mais célebre relato envolvendo discos voadores e criaturas alienígenas já registrado no Brasil e, por isso, atrai a atenção de centenas de ufólogos e pesquisadores do tema. Apesar dessa intensa atividade em torno do caso, a pobreza de evidências concretas e a dificuldade de encaixar os testemunhos existentes num relato coerente chama a atenção.
Confrontados com as lacunas do caso, os ufólogos brasileiros costumam atribuí-las à necessidade de manter suas principais testemunhas no anonimato, preservando seus nomes e papeis no desenrolar dos fatos. Entretanto, testemunhos anônimos não são um fim em si mesmos: eles precisam levar a algum lugar para serem reconhecidos. Do contrário, não passam de becos sem saída: uma testemunha anônima lista informações que não podem ser comprovadas ou negadas, não levando o caso a lugar nenhum. Ironicamente, quanto menos evidências verificáveis, mais os ufólogos alegam ter certeza de sua versão dos acontecimentos.
Muitos dos supostos envolvidos nos eventos negam repetidamente a versão sustentada pelos ufólogos. Neste caso, os pesquisadores não aceitam ou desqualificam tais testemunhos, alegando que aquilo que se afirma é falso ou parte de uma “operação de acobertamento”. Ou seja: descartam evidências contrárias ao que julgam ter acontecido e, ao mesmo tempo, tentam sustentar o caso com evidências inexistentes.
Uma das mais recorrentes alegações apresentadas pelos ufólogos é a de que a versão oficial das autoridades militares é bizarra - e, de fato, não é das melhores. Ocorre, no entanto, que ela é, na pior das hipóteses, tão improvável quanto aquela(s) defendida(s) pelos próprios ufólogos. A probabilidade de “ver um anão” (e esta é a base da explicação dos oficiais à época) não é menor do que a de “ver um disco voador” ou “ver um extraterrestre” com o agravante de que não há qualquer dúvida de que “anões existem”, enquanto por outro lado não há nenhuma certeza de que “discos voadores e extraterrestres existem”.
A abordagem ufológica para o caso parte de premissas enganosas. Por exemplo: “se a versão apresentada pelo Exército não é verdadeira, então só pode se tratar de um episódio de queda de nave espacial e a captura de criatura alienígena”. Tal premissa não tem lógica alguma: é perfeitamente possível que a versão apresentada pelo Exército não seja verdadeira e que não tenha havido qualquer disco voador ou criatura envolvida. De fato, é bem razoável pensar que o que realmente aconteceu está distante tanto da versão oficial quanto daquela defendida pelos ufólogos.
O suposto vídeo do ET de Varginha
Conscientes de que, após quase três décadas, o caso pouco saiu do lugar, em 2024 há um verdadeiro frenesi entre ufólogos em busca de sua “bala de prata”: um vídeo que mostraria uma das supostas criaturas capturadas em contato com médicos e militares brasileiros da época.
Até o momento, nenhum dos supostos vídeos que circulam na internet conseguiu provar minimamente qualquer relação com os eventos de 1996. Não obstante, qualquer vídeo que possa vir a surgir deverá superar a desconfiança da fraude digital e - não menos importante - demonstrar relação inequívoca com os fatos relatados. Qual seria a prova de que um “vídeo de criatura” refere-se especificamente à “criatura de Varginha”? Como saber que a criatura é a mesma dos relatos e que o local onde ela foi gravada é um dos locais citados nas pesquisas? São perguntas que os ufólogos envolvidos na busca ainda não conseguiram responder.
Mais dúvidas que certezas
O caso do ET de Varginha permanece um enigma na ufologia brasileira, alimentado por especulações e relatos não verificados. Embora tenha capturado a imaginação do público e se tornado um ícone cultural, a falta de evidências concretas e a presença de inúmeras contradições e inconsistências sugerem que o episódio é mais provavelmente um produto de histeria coletiva e interpretações errôneas do que um contato real com seres extraterrestres.
Para os investigadores céticos, o caso de Varginha serve como um lembrete da importância da análise crítica e da necessidade de provas empíricas para sustentar qualquer alegação extraordinária. Enquanto novas evidências não forem apresentadas, o incidente continuará a ser visto com ceticismo, como um mistério não resolvido, mas provavelmente explicável por fenômenos terrestres.
Crítica | Alex Jones: Uma Guerra contra a Verdade - Quando o doente morre de overdose de “red pill”
Imagine por um momento que você é pai ou mãe de uma criança de seis anos de idade que acaba de ser brutalmente assassinada na escola, durante um massacre ocasionado por um atirador. Provavelmente estamos falando de uma das piores situações que podem existir. Agora, pense melhor: isto não é o bastante. Depois de perder seu filho tragicamente, você terá de conviver por anos com a descrença e os ataques de centenas de milhares de pessoas que dirão que sua tragédia jamais existiu. Elas irão atacar você em público e privadamente, ofender a memória de sua criança morta e levantar suspeitas permanentes em relação ao que você sente e ao que pode ter acontecido.
Esta é a premissa do bom documentário “Alex Jones: Uma Guerra contra a Verdade”, disponível no Brasil na plataforma Max.
Para você se situar, vamos aos fatos. Em 2012, Adam Lanza, de 20 anos, arrombou a porta de uma escola primária localizada em Sandy Hook, na cidade de Newtown, Connecticut (EUA), portando rifle e pistolas, depois de ter assassinado a própria mãe momentos antes. Lá dentro, ele terminaria por matar outras 26 vítimas (entre crianças pequenas e funcionários), até finalmente se suicidar.
O que seria mais um trágico episódio de assassinato em massa ganharia contornos ainda mais chocantes quando o célebre comunicador da “alt-right” norte-americana, Alex Jones, iniciou sua própria cruzada de desinformação, ao insinuar para milhões de espectadores de seu canal Infowars que tudo não passava de uma encenação elaborada pelo próprio governo: um teatro sem vítimas, onde os pais das crianças seriam “atores contratados”, tudo com o suposto objetivo de criar um clima político propício para aumentar o controle sobre armas nas mãos de civis. Jones e seus seguidores chegam às mais absurdas conclusões lançando mão do que se poderia chamar de “ultraleitura” dos fatos, ou seja: “análise” exagerada e neurótica de gestos, expressões e declarações separadas, forçando um “todo” que se encaixa naquilo que eles já dizem saber de antemão (“Tudo isto não passa de uma farsa”). Pareidolia coletiva onde o objeto da observação não são nuvens, mas vídeos e declarações dos envolvidos no caso.
Embora seja uma figura deplorável da mídia (é possível encontrar Jones fazendo todo tipo de sensacionalismo na internet, desde a defesa do ditador socialista Hugo Chávez por ser “contra o sistema” até as mais estapafúrdias incitações de histeria coletiva), Jones tem grande apelo popular e se aproveita da crescente (e muitas vezes, legítima) desconfiança de extratos da população em relação ao governo para vender produto cuja publicidade depende do alcance de suas postagens - e não é preciso ser nenhum gênio das comunicações para imaginar que o alcance é maior quanto mais chocante é aquilo que ele declara.
O documentário narra a luta dos pais do massacre de Sandy Hook para provar que seus filhos foram, de fato, assassinados brutalmente, e para que Jones reconheça que mentiu e errou ao incitar seus seguidores e infundir neles suspeitas falsas. Não revelarei aqui o desfecho do processo e o estado atual do caso: assista e descubra por conta própria.
Embora desconcertante, o movimento social iniciado por Jones no caso específico do filme tem sido, cada vez mais, um problema disseminado e que encontra nas redes sociais território para prosperar indefinidamente. Embora não se aprofunde no fenômeno, o filme fornece pistas para compreender o que, de fato, tem acontecido. A História é farta em casos onde governos, autoridades e corporações atuam separadamente ou em conjunto para ludibriar a opinião pública. Ao longo do tempo, isso criou um débito de confiança das pessoas comuns em relação a tais instituições.
Com o advento da internet, a descentralização e a dispersão em rede das informações, criou-se também uma “cultura da descrença”, da qual se aproveitam espertalhões inescrupulosos como Jones - mas nem só ele, como se sabe. “Red pill” após “red pill”, chegamos a um ponto em que as pessoas de modo geral - em vez de cultivarem o senso crítico e a salutar desconfiança em relação a versões oficiais e ao que sustentam os poderosos - simplesmente não são mais capazes de discernir onde estão, de fato, as “mentiras” e “manipulações” diante das quais precisam se defender, misturando tudo num só pacote de delírio e acusação. “Acreditar em tudo” e “desacreditar de tudo” não são propensões tão diferentes.
Os pais de Sandy Hook são talvez as vítimas mais célebres desse fenômeno, que por sua vez - e ironicamente - provoca efeito contrário ao supostamente pretendido. Quanto mais desconfiados do “sistema”, mais propensos a acreditar e replicar versões falsas ou fantasiosas a respeito da realidade. Quanto mais falsas ou fantasiosas são tais versões, mais o “sistema” (que supostamente estaria sendo combatido) sente-se legitimado a usar seu poder de coerção para vigiar e punir o que as pessoas estão pensando e dizendo. Quanto mais o “sistema” faz isso, menor a chance de, na próxima oportunidade em que as autoridades realmente mentirem ou ocultarem (e isso eventualmente acontecerá), jornalistas e pensadores livres terem espaço na mídia e liberdade para alertar as pessoas.
Figuras como Alex Jones não são os herois “antissistema” como se vendem na internet, funcionando ora como fantoches, ora como agentes de desinformação, desviando a atenção da opinião pública do que realmente importa ao suscitar nela paranoia e abordagens fantasiosas de eventos reais (através de sua “ultraleitura”, atribuindo “significado oculto” onde ele não existe). O mal que provocam é interminável pois, ao mergulharem a audiência num lamaçal de mentiras, comprometem pautas legítimas (o questionamento de uma guerra, por exemplo) com pautas falsas (como no caso das insinuações contra as pobres vítimas de Sandy Hook e seus pais).
O audiovisual está repleto de casos em que a rotina “acontecimento>versão oficial>desconfiança>investigação>descoberta da verdade” é ficcionalizada tendo por base episódios reais. Dois exemplos são o clássico “Todos os Homens do Presidente” (sobre o Caso Watergate) e a minissérie “Chernobyl” (sobre o acidente na usina soviética). Muitos documentários, por sua vez, mostram personagens realmente envolvidos na resistência à tirania governamental e ao chamado “deep state”, tentando levar a verdade objetiva ao maior número de pessoas, como “Citizenfour” (a respeito do analista de sistemas Edward Snowden) e “Roubamos Segredos: A História do Wikileaks” (sobre o trabalho de Julian Assange no comando do site WikiLeaks).
O antídoto contra a doença da qual Alex Jones é um dos sintomas mais conhecidos não é, evidentemente, censura ou “aumento de controle”, mas sim informação de qualidade e - como no caso de Sandy Hook - a responsabilização pelo que se afirma na esfera dos tribunais. A sociedade moderna dispõe de recursos suficientes para mitigar os malefícios da overdose de “red pill” sem para isso ter de tornar a distopia do controle total de 1984 numa realidade.
Alex Jones: Uma Guerra contra a Verdade (The Truth vs. Alex Jones, Estados Unidos - 2024)
Direção: Dan Reed
Elenco: Alex Jones, Wolfgang Halbig, Dan Bidond
Gênero: Documentário
Duração: 118 min